urbanismo Usado geralmente como sinônimo de urbanização, este termo refere-se em particular aos efeitos socioculturais de uma parte crescente da população que vive em cidades, especialmente nas grandes metrópoles. Também é usado para indicar os traços específicos da vida urbana em contraste com os que caracterizam a vida rural. Nos Estados Unidos, o mesmo termo é freqüentemente empregado como sinônimo de planejamento urbano (town planning, tal como a palavra francesa urbanisme).
Urbanização em países industrializados
A urbanização tem sido um dos mais importantes fenômenos da idade industrial, não só porque envolve o deslocamento de milhões de indivíduos, mas também por significar radicais mudanças qualitativas nos modos e problemas da vida social. Em linguagem técnica, a urbanização é o efeito de dois fenômenos distintos: movimento para as cidades, ou seja, migração das áreas rurais para as urbanas, e taxas mais elevadas de crescimento demográfico natural entre a população urbana do que entre a população rural. Enquanto nos países industrializados a urbanização foi quase exclusivamente impulsionada pela migração para as cidades, em países subdesenvolvidos, sobretudo na África e na Ásia, a diferença nas tendências demográficas também desempenha seu papel.
Nos países industrializados, uma primeira e substancial onda de urbanização e crescimento urbano teve lugar no século XIX (A. Weber, 1899; Mumford, 1966). No Reino Unido, a população urbana subiu de 24% da total em 1800 para 77% em 1900. Manchester era uma aldeia com menos de 10 mil habitantes no começo do século XVIII; em 1801 havia um pouco mais de 70 mil e em 1851, mais de 300 mil. Londres já era uma metrópole em 1900, com 5 milhões de habitantes e uma população extremamente heterogênea em termos de origem étnica e nacional. Entretanto também na Alemanha, França e Estados Unidos a urbanização e o crescimento das grandes cidades no século XIX foram assombrosos. Por exemplo, a população de Berlim elevou-se de cerca de 200 mil habitantes no início do século para 1,5 milhão em 1890; a de Paris, de pouco mais de 500 mil em 1800 para 2,5 milhões no final do século. Não obstante, somente no século atual o urbanismo se converteu em uma experiência de escala mundial e atraiu a atenção crescente dos cientistas sociais. Em países industrializados, ¾ da população vivem agora em cidades com mais de 100 mil habitantes ou nas áreas suburbanas de grandes metrópoles de muitos milhões de pessoas, enquanto se calcula que no final do século a maioria da população do mundo estará vivendo em áreas urbanas (Hauser e Schnore, 1965; Davis, 1967).
A migração para cidades envolveu primeiro a população rural das regiões circunvizinhas e depois, com o crescimento dos modernos sistemas de transportes e comunicações, adquiriu proporções nacionais e internacionais. Concomitantemente, o aumento de tamanho das grandes cidades alterou radicalmente os problemas qualitativos da vida social (ver também SUBÚRBIO), comparados com as situações pré-industriais baseadas em comunidades estáveis, relativamente homogêneas e compactas.
Urbanismo e qualidade de vida social
A escola de sociologia de Chicago (ver ESCOLA SOCIOLÓGICA DE CHICAGO) (Park e outros, 1925), de caráter socioecológico, formulou uma interpretação baseada na experiência americana. Não só sublinhou a diferença entre o modo de vida urbano e o rural, mas também, no primeiro, salientou a distinção entre, por um lado, os bairros centrais densamente povoados, caracterizados pela mobilidade populacional, a heterogeneidade social e a relativa deterioração das condições de vida das camadas de baixa renda, e, por outro lado, os subúrbios mais homogêneos e estáveis, privilégio das camadas de renda mais elevada. A interpretação da Escola de Chicago foi ainda mais desenvolvida por Wirth, que concentrou sua atenção em fatores ambientais como a matriz fundamental para as diferenças entre a qualidade de vida urbana e rural e para as diferenças existentes entre várias espécies de cidades.
Podemos esperar que as características mais salientes da cena social urbana variem de acordo com tamanho, densidade e diferenças no tipo funcional de cidade (…) Para fins sociológicos, uma cidade pode ser definida como uma povoação relativamente grande, densa e permanente formada por indivíduos socialmente heterogêneos. (Wirth, 1938, p.7-8.)
As características fundamentais da vida social urbana são identificadas como anonimato, impessoalidade e superficialidade, atribuídas mais à natureza do meio ambiente urbano do que às características sociais.
O surgimento de irrefutáveis provas empíricas estimulou um vigoroso reexame da interpretação da Escola de Chicago. A experiência de cidades européias e o desenvolvimento de formas de suburbanização da classe trabalhadora também em cidades americanas lançam dúvidas sobre o levantamento socioecológico da Escola de Chicago. Além disso, a atenção está concentrada em variáveis sociológicas, contrapondo-se às variáveis ambientais identificadas por Wirth. Por exemplo, Gans sustenta que, “sob condições de transitoriedade e heterogeneidade, as pessoas só interatuam em termos dos papéis segmentares necessários para a obtenção de serviços locais. Assim, suas relações sociais exibem anonimato, impessoalidade e superficialidade” (1968, p.103). Dado que a instabilidade residencial não é exclusivamente uma característica típica da cidade ou de algumas cidades e está distribuída de forma desigual em várias áreas urbanas, as diferenças de modos de vida e comportamento social são interpretadas utilizando-se variáveis sociais clássicas, tais como classes sociais, ciclos vitais, estruturas de família e emprego etc. A partir dessas recentíssimas interpretações, formuladas pela nova sociologia urbana (Saunders, 1981; Lebas, 1982; Mingione, 1986), considera-se que o urbanismo está refletido em profundas mudanças sociais, nas quais, porém, o meio ambiente atua meramente como indispensável pano de fundo para a mudança nas relações sociais e estratégias de vida. O problema crucial nessa transformação é o progressivo enfraquecimento e adaptação de contextos e recursos recíprocos em conjunto com a expansão da economia de mercado e a concentração de seções cada vez maiores da população em áreas urbanas, ao lado do concomitante crescimento contraditório e desigual em recursos monetários e contextos associativos entre classes e grupos de interesses. Esses fatores estão originando novas e importantes eclosões de conflito social, desigualdade e áreas sociais que são penalizadas e marginalizadas pelos novos métodos de distribuição de recursos sociais e de organização da representação de interesses políticos. A persistência da “questão habitacional” ou das áreas de pobreza e marginalização, o surgimento de crescentes problemas ecológicos, as dificuldades cada vez maiores em controlar, dirigir e adaptar sistemas socialmente complexos de serviços e transportes cada vez mais dispendiosos que abrangem áreas territoriais progressivamente mais vastas são apenas outros tantos aspectos dessa transformação, mais evidentes do que outros aspectos nas cidades contemporâneas, mas que não podem ser principalmente, ou apenas atribuídos a diferenças ambientais.
Urbanismo e desenvolvimento industrial
Uma das questões básicas mais amplamente debatidas do urbanismo em países industrializados é o grau em que esse fenômeno é um efeito praticamente exclusivo, inevitável e progressivo do desenvolvimento industrial. O pressuposto implícito do “industrialismo” é que o desenvolvimento industrial ocasiona economias de escala continuamente crescentes através da progressiva concentração em grandes cidades. A razão disso é que as últimas atraem recursos econômicos e mão-de-obra para promover o crescimento da produção industrial e, por seu turno, o recrudescimento da população e da atividade econômica da cidade atua como base para atrair novos recursos e incentivar níveis cada vez mais elevados de crescimento e concentração. Esse pressuposto é agora o alvo de toda uma série de críticas. Observou-se que, em muitos casos, as características do urbanismo dependem de condições e fatores históricos preexistentes ao desenvolvimento industrial, como é o caso na maioria das cidades da Europa continental, e de elementos amplamente independentes de concentração industrial e crescimento de emprego na manufatura — o caso de cidades capitais. Em seguida, é claro que existe toda uma série de limites técnicos, sociais e econômicos à idéia de uma interligação progressiva entre a INDUSTRIALIZAÇÃO e o crescimento das grandes cidades. Esses limites, que variam consideravelmente em diferentes contextos e épocas, são o custo e o tempo necessários para construir a rede de transportes, a dificuldade de solucionar a congestão urbana e os problemas ambientais em cidades já superpovoadas.
Por todas essas razões, o desenvolvimento industrial pode ser considerado a mais importante fonte para a difusão do urbanismo, mas sob condições variáveis e descontínuas e em conjunto com outros fatores. Entre estes, é importante considerar as políticas de bem-estar, sobretudo as que se relacionam com habitação e transporte, mas também a maior ou menor concentração de serviços em geral e a variabilidade no tempo e no espaço de combinações socioeconômicas específicas; depois há a persistência de pequenas e médias empresas em contraste com as grandes concentrações industriais e financeiras, a diversificação da economia urbana em contraste com a presença de indústrias que, pelo alto nível de especialização, se mantêm únicas no mercado, o impacto de estratégias de economia de mão-de-obra e descentralização econômica em contraste com as economias de escala, assim como o possível papel de condições ambientais como poluição, tráfico, congestão, o elevado custo de moradia e de vida em geral.
Ao adotar abordagens mais requintadas que a do “industrialismo”, é possível explicar as características que o urbanismo vem adquirindo nestas últimas décadas e a experiência de países sob o “socialismo real”. No primeiro caso, foi apresentada a idéia de contra-urbanização (Berry, 1976, Perry et al., 1986), uma vez que, nas duas últimas décadas, a população das áreas metropolitanas centrais esteve declinando ou aumentando mais lentamente do que nas cidades de pequeno e médio porte e no interior. Acredita-se que esse fenômeno seja resultado da reestruturação industrial, do declínio no sistema de grandes indústrias manufatureiras e da nova fase de terceirização, em que trabalhadores autônomos e pequenas firmas dotados de tecnologia atualizada, mas também potencialmente emancipados da necessidade de se localizarem em grandes áreas urbanas, estão adquirindo crescente importância (Castells, 1989). Na realidade, o declínio na importância e atração das grandes áreas metropolitanas não foi além de uma queda no emprego industrial e da descentralização de algumas indústrias para cidades menores e países em processo de industrialização. Em contrapartida, a fisionomia das cidades globais (Sassen, 1991), centros nervosos para o controle das atividades políticas e econômico-financeiras, está se tornando o padrão predominante. Onde isso ocorre, o custo dos terrenos nos centros das cidades aumenta continuamente, porquanto estes constituem o ponto focal para a competição entre os vários usos reivindicados pela localização administrativa, o setor terciário avançado e a homogeneização residencial em termos de classe social, o estabelecimento de atividades econômicas e de supervisão avançadas e a presença de oportunidades de trabalho tanto de elevada quanto de baixa renda, assim como informais. Nesse sentido, a desurbanização é o efeito da expulsão das camadas de renda média ou baixa dos centros metropolitanos para a periferia e outras áreas menos dispendiosas, e a crescente dificuldade com que se defrontam para sobreviver e resistir a essas forças nas áreas metropolitanas centrais. Isso é contrabalançado, contudo, pelo fato de as grandes cidades estarem mantendo sua importância e ampliando sua influência a uma área cada vez mais vasta.
Quanto aos países de “socialismo real”, falava-se muito de síndrome de sub-urbanização (Konrád e Szelényi, 1977), desencadeada pela política redistributiva que favorecia o investimento destinado à expansão industrial em detrimento de custosos programas de habitação e infra-estrutura urbana. Assim, uma parcela importante da população empregada nas novas indústrias e no setor terciário urbano foi incapaz de encontrar moradia e serviços nas grandes cidades e se viu forçada a viajar diariamente entre o local de trabalho e suas residências em pequenas cidades-satélites, que podiam estar situadas a uma boa distância, a inscrever seus nomes em extensas listas de espera em razão da insuficiente oferta de moradia nos bairros econômicos ou encontrar outras soluções insatisfatórias que refletiam cada vez mais as desigualdades sociais (Szelényi, 1983).
Urbanização e urbanismo em países subdesenvolvidos
No século XX a urbanização e o gigantismo urbano assaltaram irresistivelmente quase todos os países subdesenvolvidos, onde hoje se localizam vastas áreas metropolitanas que ainda crescem de forma incontrolável (Breese, 1969; Abu-Lughod e Hay, 1977; Gilbert e Gugler, 1982). Nesses países, além da irreprimível migração para as cidades de gigantescas massas expelidas do campo pela agricultura extensiva de plantation, a concorrência internacional e a crescente pressão pela racionalização da lavoura, há ainda o efeito de elevadas taxas de natalidade urbana e das condições de higiene e saúde geral nas cidades, as quais, embora muito inferiores aos níveis médios dos países desenvolvidos, são superiores às do campo e se refletem nos acentuados aumentos em termos de probabilidades e expectativas de vida.
O urbanismo em países subdesenvolvidos é caracterizado por dois fenômenos muito salientes. O primeiro consiste na acentuada e incontrolável polarização entre um número limitado de camadas de média e alta renda, que desfrutam de condições de vida semelhantes às das camadas mais abastadas dos países industrializados e de serviços fornecidos por uma população disponível para trabalho muito mal pago, e uma enorme e heterogênea população com renda monetária extremamente baixa. O segundo fenômeno é formado pelas estratégias de sobrevivência deste segundo grupo, vivendo em sua grande maioria em condições miseráveis, barracos e cortiços, em terrenos ocupados ilegalmente e trabalhando no chamado setor informal: um misto de serviços, artesanato e camelotagem, mão-de-obra não-qualificada para a construção civil, trabalhos domésticos e outras atividades legais e ilegais (Hart, 1973; Gerry, 1987; Mingione, 1991). Seu estilo de vida urbano também leva para as grandes cidades do Terceiro Mundo numerosos elementos de estratégias de subsistência rural, desde a criação de animais domésticos até a importância do parentesco, das redes étnicas e comunitárias, e de uma solidariedade entre amigos e vizinhos que é indispensável à sobrevivência onde a renda individual é extremamente baixa.
Leitura sugerida: Abu-Lughod, J.L. e Hay, R., orgs. 1977: Third World Urbanization • Ball, M., Harloe, M. e Maartens, H. 1988: Housing and Social Change in Europe and the USA • Berry, B.J.L., org. 1976: Urbanization and Counterurbanization • Bookchin, Murray 1987: The Rise of Urbanization and the Decline of Citizenship • Breese, Gerald, org. 1969: The City in Newly Developing Countries • Castells, Manuel 1989: The Informal City • Davis, K. 1967: “The urbanization of the human population”. In Cities • Gans, H. 1968: “Urbanism and suburbanism as ways of life”. In Readings in Urban Sociology, org. por R. Pahl • Gilbert, Alan e Gugler, Josef 1981: Cities, Poverty and Development • Hauser, Philip M. e Schnor, Leo F., orgs. 1965: The Study of Urbanization • Mingione, Enzo 1986: “Urban sociology”. In The Social Reproduction of Organization and Culture, org. por Ulf Himmelstrand º 1991: Fragmented Societies • Mumford, Lewis 1966: The City in History • Park, R.C., Burgess, E.W. e McKenzie, R.T. 1925: The City • Perry, R., Dean, K. e Brown, B. 1986: Counterurbanization • Sassen, Saskia 1991: The Global City • Saunders, P. 1981: Social Theory and the Urban Question • Szelényi, Ivan 1983: Urban Inequalities under State Socialism • Weber, Alfred 1899: The Growth of Cities in the Nineteenth Century: a Study in Statistics • Wirth, L. 1938: “Urbanism as a way of life”. American Journal of Sociology 44, 1-24.
ENZO MINGIONE
utilitarismo A tradição em teoria moral, política e social que avalia a retidão de atos, escolhas, decisões e políticas por suas conseqüências em relação ao bem-estar humano (e possivelmente animal) tem sido especialmente influente. Associada há muito tempo aos nomes de Jeremy Bentham e John Stuart Mill, ainda tem eminentes adeptos entre filósofos, economistas e cientistas sociais, e ocupa um lugar central na teorização moral, política e social. Mas talvez o maior testemunho do impacto do utilitarismo esteja no extraordinário número de críticos que tentaram, e continuam tentando, e de todas as maneiras possíveis, refutá-lo ou, de alguma forma, livrar-se dele.
A versão clássica de utilitarismo, tal como exposta em Bentham e Mill, era uma forma de utilitarismo do ato (act utilitarianism), de acordo com a qual um ato é correto se produz as melhores conseqüências, ou seja, conseqüências para o bem-estar humano que sejam, pelo menos, tão boas quanto as de qualquer alternativa. Embora os críticos, com freqüência, ainda se concentrem nessa versão de utilitarismo, outras versões têm sido dela distinguidas, como o utilitarismo da regra (rule utilitarianism), a generalização utilitária, o utilitarismo de motivo e o utilitarismo cooperativo. Até que ponto algumas dessas versões são realmente distintas do utilitarismo do ato e até que ponto todas elas estão livres de dificuldades ainda é matéria de controvérsia.
De fato, “utilitarismo” é o nome de um grupo de teorias que constituem variações sobre um tema, do qual podemos distinguir três componentes.
Componente conseqüência
De acordo com o componente conseqüência, a retidão está vinculada de algum modo à produção de boas conseqüências. À noção de que só as conseqüências tornam os atos certos ou errados dá-se o nome de conseqüencialismo; é o componente conseqüência do utilitarismo do ato e pode, neste contexto, ser tratado como a noção de que um ato é correto se acarreta melhores conseqüências. O conseqüencialismo tem sido muito criticado pelos que favorecem diferentes explicações do que faz com que sejam certos os atos certos. Por exemplo, alguns sustentam que o conseqüencialismo evoca uma mente corrupta, na medida em que não pode proscrever certos atos (por exemplo, mentir) independentemente de suas conseqüências. Se as conseqüências é que fazem dos atos certos ou errados, então até mesmo o mais repreensível dos atos poderia, em certas circunstâncias, resultar correto. Afirmam outros que uma preocupação em produzir as melhores conseqüências em cada ocasião pode deixar de produzir as melhores conseqüências globais e, portanto, ser contraproducente. Ainda outros sustentam que uma explicação impessoal de retidão, como as melhores conseqüências, pode não ser compatível com a realização pelo indivíduo de seus projetos, compromissos e relações, e assim, em certa medida, pode afastá-lo de sua própria integridade. Em termos mais gerais, as descrições impessoais de retidão são acusadas de não considerar seriamente a distinção entre pessoas, ou seja, de não tratar as pessoas como indivíduos autônomos, com suas individualidades, projetos e méritos próprios. Discute-se até que ponto essa acusação procede — é, por exemplo, vigorosamente refutada por R.M. Hare —, mas ela instigou o recente desenvolvimento de esquemas de direitos morais individuais para a proteção de pessoas.
Componente de valor
De acordo com o componente de valor, o caráter benévolo ou malévolo das conseqüências será avaliado por algum padrão de bondade intrínseca, cuja presença no mundo tem que ser maximizada. Esse bem, no caso do utilitarismo do ato, foi o bem-estar humano; em que deve exatamente consistir o bem-estar humano, contudo, tem provado ser uma questão controversa Por exemplo, os primeiros utilitaristas eram hedonistas; os mais recentes, como G.E. Moore, têm sustentado que outras coisas, além do prazer e/ou da felicidade, são boas em si mesmas.
Uma tendência recente tem sido o afastamento dos padrões de bondade que fazem referência a estados mentais e a preferência pelas concepções de bem-estar humano que se baseiam na satisfação de desejos e predileções. Um problema, neste caso, consiste em isolar os desejos em que temos de nos concentrar. A reflexão sobre as dificuldades em torno do que fazer com desejos atuais ou futuros forçou os teóricos na direção do seu esclarecimento, isto é, dos desejos que teríamos se estivéssemos plenamente esclarecidos, despreocupados, livres das pressões do momento etc. O pressuposto parece ser que, sob condições apropriadas, os desejos informados tornam-se reais, ao passo que aqueles de nossos desejos que não são aceitos como informados são abandonados (ou, pelo menos, não são corretamente materializados). Mesmo sem introduzir problemas relacionados com a fraqueza da vontade, os detalhes dessa troca de desejos, em termos de psicologia moral individual, permanecem um pouco obscuros.
Os críticos da teoria de valor utilitarista são inúmeros, e certamente essa continua sendo uma área de imensa controvérsia, não só quanto à natureza das coisas que aceitamos como dotadas de valor intrínseco, mas até no que se refere à possibilidade de existirem VALORES impessoais ou mediadores neutros. Os valores, sustenta-se cada vez mais, são subjetivos, no sentido de serem relativos ao agente; são os valores dos agentes. Entretanto o utilitarismo requer que os desejos sejam agregados, ponderados e equilibrados em termos de algum princípio mediador neutro relacionado, por exemplo, com o bem-estar geral, ainda que reste a esclarecer por que um agente qualquer tem razões para valorizar a busca do bem-estar geral. Se uma pessoa é abastada, pode adquirir tal razão; mas se lhe for requerido que, não sendo abastada, realize profundos e sistemáticos sacrifícios para maximizar o bem-estar geral?
De acordo com o componente de alcance, o que tem de ser levado em conta na determinação da retidão são as conseqüências de atos que afetam a todos. A menos que as conseqüências de um ato possam ser suprimidas, a classe de todos os afetados pelo ato, uma vez que as conseqüências se prolongam no futuro, parece expandir-se constantemente, com possível efeito sobre a retidão. Mas o principal problema que o componente de alcance apresentou aos utilitaristas foi a exigência de, para o êxito do utilitarismo, sermos capazes de realizar comparações interpessoais de prazeres e dores ou desejar satisfações. Só seremos capazes de maximizar a satisfação do desejo em todos os afetados pelo ato se pudermos comparar o efeito desse ato sobre os conjuntos de desejos de cada um dos envolvidos, avaliar a extensão e a força desse efeito e comparar os diferentes resultados. Os primeiros utilitaristas pensaram que poderíamos somar prazeres e dores em diferentes pessoas, mas essa idéia já deixou há muito de ser levada a sério. Quanto à satisfação de desejo ou de preferência, muitos economistas e cientistas sociais escrevem como se as comparações interpessoais nada tivessem de problemáticas; os críticos, porém, insistirão em que se faça o exame detalhado de suas teorias e de seus argumentos em apoio da bitola específica que lhes permite comparações de satisfação de desejo em diferentes pessoas.
Utilitarismos indiretos
Finalmente, uma inovação recente foi o desenvolvimento de utilitarismos indiretos. Por exemplo, R.M. Hare desenvolveu uma explicação em dois níveis do pensamento moral, que é utilitarista de regra no plano da prática, mas utilitarista de ato do domínio da teoria (ou domínio de definições institucionais ou de normas). O pensamento utilitarista de ato no campo da teoria selecionará os guias no plano da prática cuja aceitação geral nos dará a melhor oportunidade de produzir as melhores conseqüências. Assim, Hare afirma que a sua explicação em dois níveis lhe permite evitar muitos dos problemas que os críticos dizem assediar o utilitarismo de ato em termos da prática. Outros teóricos dos dois níveis, cumpre assinalar, consideram estar desenvolvendo uma forma plausível de utilitarismo e não montando novas alegações em defesa do utilitarismo de ato, a cujo destino são indiferentes.
Ver também ÉTICA; BEM-ESTAR SOCIAL.
Leitura sugerida: Bentham, J. 1793 (1948): An Introduction to the Principles of Morals and Legislation, org. por J. Harrison • Brandt, R.B. 1979: A Theory of the Good and the Right • Hampshire, S., org. 1978: Public and Private Morality • Hare, R.M. 1981: Moral Thinking • Mill, John Stuart 1863 (1957): Utilitarianism • Moore, G.E. 1903 (1959): Principia Ethica • Regan, D.H. 1980: Utilitarianism and Co-operation • Scheffler, S. 1982: The Rejection of Consequentialism • Sen, A. e Williams, B., orgs. 1972: Utilitarianism and Beyond • Smart, J.J.C. e Williams, B., orgs. 1973: Utilitarianism: For and Against.
R.G. FREY
utopia A palavra descreve uma comunidade ideal, livre de conflitos, que incorpora um conjunto claro de valores e permite a completa satisfação das necessidades humanas. As utopias envolvem normalmente um retrato sistemático da vida na sociedade imaginada ou, por vezes, a sua descrição em um romance. No século atual o ritmo da mudança social, política e tecnológica e as divisões políticas entre capitalismo e socialismo levaram a novos temas no pensamento utópico em que os proponentes de utopias se defrontaram, por vezes, com antiutopias projetadas para desacreditar seus esquemas de aperfeiçoamento social.
O termo utopia, do grego designando “nenhum lugar”, foi inventado por sir Thomas More (1516). Entretanto muitas formas de pensamento possuem um elemento utópico. Descrições de uma “idade de ouro” remontam aos gregos, se bem que, diferentemente das utopias, elas sejam localizadas no passado. A noção cristã do milênio também apresenta um aspecto utópico, enquanto que numerosos teóricos políticos têm delineado constituições ideais. De fato, o pensamento contendo elementos utópicos é muito mais comum do que a descrição coerente da própria utopia.
A análise sistemática da utopia como modo de pensamento começou com a publicação de Ideologia e utopia (Mannheim, 1929). Karl Mannheim estabeleceu uma distinção entre o pensamento ideológico, que descreve uma versão idealizada da realidade corrente, e o pensamento utópico, que almeja uma nova espécie de sociedade. Entretanto o termo “utopia” vem sendo geralmente usado hoje em dia para abranger esses dois significados.
O pensamento utópico parece florescer em épocas de insegurança social e colapso da autoridade estabelecida. As utopias refletem freqüentemente as fronteiras de possibilidade estabelecidas por uma sociedade existente, incluindo sua capacidade produtiva, sua concepção do grau de maleabilidade da natureza humana e a ênfase relativa atribuída à ESFERA PÚBLICA em contraste com a particular. As utopias também refletem a localização social do estrato cujo ideal está sendo representado. Assim, a utopia das autoridades é, geralmente, uma utopia da ordem enquanto que a do povo é, com freqüência, a de uma terra de abundância e prazer.
O pensamento utópico do século XX tem se baseado na idéia de progresso que o século XIX incorporou à utopia ao lado da ciência. A mais característica forma de utopia do século XX foi a idéia de socialismo, embora o liberalismo também tenha uma dimensão utópica. Apesar de seus protestos em contrário, o pensamento de Marx e Engels é profundamente utópico (Ollman, 1977). A tradição utópica socialista foi desenvolvida no século XX, em estilo fabiano, nos numerosos livros de H.G. Wells, que também ajudou a estabelecer a ficção científica como elemento importante do moderno pensamento utópico (Hillegas, 1967). Outro aspecto importante do pensamento utópico do século XX pode ser encontrado na área da arquitetura e do planejamento urbano, embora isso possa levar-nos de volta ao ideal cristão da cidade celestial (Fishman, 1977).
Antiutopia
No século XX antiutópicos como George Orwell têm exercido considerável influência. Eles descrevem sociedades de modos que espelham o pensamento utópico ao refletirem uma imagem execrável dos efeitos de experimentos utópicos empreendidos em um nível dessas sociedades. Projetam um pesadelo em que grupos governantes estabelecidos perderam o controle do poder e foram substituídos por agentes bárbaros de uma nova ordem. Em parte, as antiutopias são uma resposta à ameaça do socialismo e aos imperfeitos experimentos socialistas do século atual. O antiutopismo também tem se apoiado em pontos de vista que enfatizam as raízes biológicas do comportamento, tais como o freudismo, que sublinha o papel dos fatores instintivos. A SOCIOBIOLOGIA é a corrente mais recente de um gênero similar.
A utopia hoje
Modelos gerais de funcionamento sociológico, político e econômico contêm, com freqüência, elementos utópicos, uma vez que retratam a implementação abrangente de princípios fundamentais. Os exemplos incluem o modelo funcionalista plenamente integrado do sistema social, vários modelos de democracia, como o que foi desenvolvido pela escola pluralista, e o modelo de mercado inteiramente auto-regulador desenvolvido pela ciência econômica neoclássica (Ver FUNCIONALISMO; PLURALISMO, MERCADO).
O período do pós-guerra no Ocidente deu origem a um novo surto de pensamento utópico. O prolongado boom econômico e o ritmo do avanço tecnológico serviram de esteio a uma nova versão da utopia “científica” na forma de SOCIEDADE PÓS-INDUSTRIAL (Kumar, 1978). Essas utopias antevêem uma transformação iminente da sociedade em conseqüência do avanço científico e, cada vez mais, do desenvolvimento da informática (ver INFORMAÇÃO, TECNOLOGIA E TEORIA DA). A disciplina da FUTUROLOGIA também possui uma dimensão utópica.
O desenvolvimento da crise cultural do Ocidente nas décadas de 60 e 70 também originou um ressurgimento de elementos utópicos no pensamento. Experiências utópicas como o movimento de “comunas” nos anos 60 foram uma resposta (ver CONTRACULTURA). Outra que ainda está em desenvolvimento é a “ecotopia”: uma sociedade onde o homem e a natureza poderiam, finalmente, viver em harmonia (ver ECOLOGIA). Esta continua a tradição da utopia baseada no conhecimento científico, se bem que, agora, na forma de tecnologia “alternativa” ou “utópica”. Uma dimensão utópica também está presente no seio do FEMINISMO (Kumar, 1981), ligada à crença em que “o pessoal é político” e à preocupação com o “prefigurativo”. Isso descreve a idéia de que elementos de uma melhor sociedade podem ser estabelecidos aqui e agora para formar um modelo de relacionamento e de instituições no futuro.
Tem sido apontado que a utopia está agora ao nosso alcance. Pode tomar a forma de uma solução puramente interior para as tensões da sociedade, envolvendo o uso de drogas psicotrópicas, conforme descrito por Aldous Huxley em sua última obra. A questão da utopia pode até ser dissolvida, como na obra de Nozick (1974), que indica já estar realizada a utopia do direito libertário. Nessa utopia, não existe uma só comunidade ou modo de vida que seja prescrito: a utopia consiste simplesmente em uma sociedade onde cada um tem o direito de estabelecer a forma de comunidade que escolheu, seja ela qual for.
Leitura sugerida: Bauman, Z. 1976: Socialism: the Active Utopia • Dickson, D. 1974: Alternativa Technology • Fishman, R. 1977: Urban Utopias in the Twentieth Century • Hillegas, M.R. 1967: The Future as Nightmare: H.G. Wells and the Anti-Utopians • Kumar, K. 1978: Prophecy and Progress º 1981: “Primitivism in feminist utopias”. Alternative Futures (USA) 4, 61-7. º 1987: Utopia and Anti-Utopia in Modern Times • Mannheim, K. 1929 (1960): Ideology and Utopia • More, Thomas 1516 (1965): Utopia • Nozick, R. 1974: Anarchy, State and Utopia • Ollman, B. 1977: “Marx’s vision of communism: a reconstruction”. Critique 8,4-41.
TOM BURDEN