Mulheres da nação cristã-nova:
as marranas do Rio de Janeiro (século XVIII)

Lina Gorestein1

Desde o final do século XVI no Rio de Janeiro se estabeleceu uma comunidade cristã-nova ativa e solidária, que se manteve unida especialmente através de casamentos endogâmicos e da discriminação a que esteve submetida.

No início do século XVIII, quando o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Portugal investiu contra essa comunidade, 300 2 cristãos-novos foram presos e enviados para Lisboa para ser julgados como hereges judaizantes. Mais de 1000 foram denunciados, mas, por variadas razões, não chegaram a ser presos3.

Mais da metade dos prisioneiros eram mulheres, e a documentação deixada pela Inquisição, especialmente os processos a que foram submetidas – milhares de páginas manuscritas – é fonte riquíssima e praticamente a única em que a voz dessas mulheres pode ser escutada.

Os Inquisidores consideravam as mulheres como um dos maiores perigos para a sociedade católica, uma vez que acreditavam que o Judaísmo, a religião dos antepassados dos cristãos-novos, era transmitido às novas gerações pelo sangue, pela memória feminina e até mesmo através do leite materno.

Os cristãos-novos estavam isolados do Judaísmo tradicional e imersos em um mundo cristão; sua crença sofrera alterações profundas; não tinham livros judaicos, ninguém para instruir seus filhos no hebraico, sem as tardes de sábado para o estudo e debate. O Judaísmo não era nem profundo nem ortodoxo, era uma transmissão oral de conhecimentos daqueles que melhor lembravam as tradições judaicas. Mesmo os que escolheram manter o Judaísmo, tinham que ser ao mesmo tempo católicos praticantes4.

Muitas das práticas que permaneceram eram de domínio doméstico: os hábitos alimentares, de higiene e purificação, o shabbat e as celebrações tinham todas que ser realizadas dentro das casas “a portas fechadas”. O cripto-judaísmo era praticado no lar, era uma religião secreta, e era também uma religião de domínio feminino, ao contrário do Judaísmo tradicional, praticado e transmitido principalmente nas sinagogas, domínio masculino5.

O cripto-judaísmo foi um dos elementos constitutivos da identidade das marranas fluminenses, e é esse aspecto que abordarei nesta comunicação. O título desta mesa – “Uma identidade errante” – engloba não somente o sentido de movimento, de migração desses marranos, mas especialmente o fato de não haver uma só identidade, ou seja, a identidade dos cristãos-novos era composta por várias facetas e variou de acordo com a época e a região onde viviam. O fenômeno cristão-novo, como bem o mostrou nossa mestra Anita Novinsky, não foi homogêneo, nem no tempo nem no espaço.

Os cristãos-novos tinham que conhecer o Judaísmo; não o Judaísmo tradicional, não a ética, a moral, a religião e os costumes judaicos, mas o Judaísmo do Santo Ofício; quem tinha “mancha de sangue” tinha que saber o que declarar no Tribunal.

O estigma do sangue “impuro” significava discriminação, exclusão6. Houve a necessidade dos cristãos-novos de formar uma comunidade, de se integrar com os seus “iguais” comunidade que no Rio de Janeiro se baseou principalmente na endogamia (casamentos entre cristãos-novos); comunidade formada por um duplo movimento: o interno e o externo: os cristãos-novos se uniam por vontade própria e por imposição da comunidade ampla, cristã-velha.

Esses fatores contribuíram para a formação de uma identidade particular, cristã-nova, baseada na ancestralidade e na exclusão7. Ancestralidade significava uma origem comum que não era esquecida e nem era permitido esquecer – e uma religião – praticada ou não, real ou não, mas que tinha que ser conhecida e confessada na mesa do Santo Ofício.

No Rio de Janeiro setecentista, sabia-se quem era cristão-novo e por que via o sangue judeu chegara até aquela pessoa: pela família materna ou pela família paterna. Na primeira metade do século XVII uma parcela significativa da população livre da cidade era reconhecida como cristã-nova; no início do século XVIII, ao menos 25% dessa população era sabidamente cristã-nova. Cronistas contemporâneos assinalaram a presença “judaica” na região e no final do século XVII um viajante francês, Froger dizia que cerca de três quartos dos brancos do Rio de Janeiro eram judeus8.

Definir o que é um judeu e o que é identidade judaica é uma questão complexa; as categorias sociológicas convencionais, como religião, nacionalidade e grupo étnico não são suficientes; por exemplo, embora a religião tenha sido um componente importante da vida judaica, é claramente inadequado descrever os judeus simplesmente como um grupo religioso; a dificuldade em descrever os judeus como grupo se reflete na dificuldade paralela para descrever a identidade judaica9.

Quando falamos em identidade judaica, sabemos que está fundamentada em vários fatores, construída sem dualidades fundamentais durante a vida do judeu enquanto indivíduo e enquanto membro de um grupo, não foi destruída ou modificada pela discriminação.

Já o cristão-novo, de origem judaica, educado como cristão, porém excluído como “novo” e tendo que saber – e muitas vezes assumindo o cripto-judaísmo – não tinha mais a identidade judaica (não me refiro àqueles que haviam sido judeus, à primeira geração de conversos, nem a seus descendentes imediatos, cujos pais e avós haviam sido judeus).

Assim, as dificuldades para definir o que é a identidade judaica multiplicam-se quando se tenta compreender qual era a identidade dos cristãos-novos. Era uma identidade judaica? Uma identidade cristã-nova? Ou somente um ethos10 – não tendo chegado ao estágio de internalização suficiente para construir uma identidade?

Nossas pesquisas indicam que as cristãs-novas fluminenses apresentavam uma identidade cristã-nova e não somente um ethos. Não mais a identidade judaica, mas uma identidade própria – uma vez que além do ethos – a parte externa de seu comportamento também estava internalizada a consciência de que eram cristãs-novas, não judias e nem cristãs.

Anita Novinsky afirma que os inquisidores criaram uma novo conceito de identidade, sem qualquer prática religiosa como indício de Judaísmo: caracterizavam os cristãos-novos suspeitos através do comportamento ou através da “identidade”. O comportamento era a prática do cripto-judaísmo; a “identidade” não implicava nem em práticas nem em comportamentos, mas somente no fato de admitir que cria na Lei de Moisés11 .

A identidade judaica pode ser considerada como uma identidade étnica condicionada por dois fatores, o religioso e o nacional (enquanto povo e não um estado). Na identidade cristã-nova, esses fatores também estão presentes; são considerados uma “nação” pelos cristãos-velhos: “nação dos cristãos-novos” e não dos judeus – e por eles próprios como uma comunidade – ou nação – que antigamente estivera conectada a outra nação – a dos judeus.

Izabel de Barros Silva12, cristã-nova do Rio de Janeiro, depois de presa e reconciliada pelo Santo Ofício recebeu licença para voltar ao Rio de Janeiro. Preocupava-se com sua família, especialmente com seus filhos e com seus sobrinhos, filhos de sua irmã Catarina Marques, que havia morrido em 1712, no navio em que ia presa para Lisboa. Moravam com seu tutor, o padre Matias Gonçalves, cura da freguesia de Jacarepaguá, no engenho em que haviam nascido e se criado.

Ela teve com esse padre um conflito, quando este aconselhou sua tutelada Maria da Silva a se casar com Manoel do Vale, também cristão-novo. Isabel foi contra esse casamento desejando que a dita sua sobrinha, suposto fosse da nação dos cristãos-novos, não casasse com pessoa da mesma nação pela não desencaminhar, e fez com que os sobrinhos fossem morar com ela.

Através da documentação fluminense, é possível perceber que os cristãos-novos consideravam-se como uma comunidade, uma “nação”, porém, uma nação cristã-nova, e não judia, embora conectada ao Judaísmo pela ancestralidade, pela memória e pela discriminação que existia contra eles tanto na esfera oficial como entre a população cristã-velha.

Assim, quando falamos em “nação cristã-nova”, em identidade cristã-nova, o fator religioso não é mais a religião judaica – é a crença na Lei de Moisés para a salvação da alma; é uma religião sincrética e secreta e nem sempre é uma religião vivenciada (embora sempre admitida). Uma religião fruto da educação cristã, da memória judaica e da intolerância. Essa identidade cristã-nova muitas vezes resultou na personalidade que Anita Novinsky chamou de “homem dividido”13 .

Sua crença declarada era o cripto-judaísmo, intimamente relacionado à memória judaica14. A memória judaica das mulheres fluminenses já havia esmaecido no século XVIII. A história judaica era pouco conhecida por elas, inclusive o êxodo do Egito – pouquíssimas comemoravam Pessach15 .

Um dos aspectos fundamentais do Judaísmo são as orações e para as mulheres cristãs-novas do Rio de Janeiro, entre mais de 60 processos, somente quatro mulheres confessaram conhecer algumas orações: Catarina Soares Brandoa, Izabel Gomes da Costa, Joana de Barros e sua sobrinha Ines de Oliveira; uma irmã de Ines, Izabel de Barros, declarou que rezava orações judaicas, sem no entanto, especificá-las16 e não encontrei menção ao Shemd. Eram orações já muito distanciadas das orações judaicas tradicionais, e muitas vezes, resultavam em orações que podemos considerar no mínimo, confusas.

Por exemplo, a cristã-nova Izabel Gomes da Costa havia sido ensinada na Lei de Moisés por sua avó, também chamada Izabel Gomes da Costa, quando tinha 13 anos, que lhe disse que rezasse duas orações; a primeira deveria rezar às sextas-feiras e sábados à noite17:

Bendito, louvado, exaltado, glorificado seja o nome de Ds
para sempre dos sempre jamais sem fim,
Aqui venho Senhor deitar-me aos vossos pés arrependidamente a
chorar meus pecados Perdoai-me por Vosso Divino Amor, por Vossa
Divina Misericórdia meus pecados, Não atendais ao rigor de
minhas grandes culpas e pecados
Os peixes do mar com seus saltenhos,
As águas com os marmúrios de suas sombras,
As fontes com suas correntes,
Os animais com seus grandores,
As águas com os marmilrios de suas sombras,
As árvores com suas flores,
Assim Rei Senhor Meu
Mandai um anjo que nos de a mão
Anjos, arcanjos, querubins, cheros, dominações, potestades, gerarquias
Sois aquele Senhor que fizestes o céu, a terra e o mar, e as areas e
todas as causas criadas nos santos meninos e nos santos homens, nos
santos sol, nos santos lua, nos santos céu, nos santos estrelas, nos santas p(..•)
nos santos mar, nos santos areas, nos santa terra,
nos santos jardins dos santos lares nos santos jasmins,
raios que abrazam cielos que abraza a tocar as campainhas, a tocar
las trombetas que o senhor a(...)

As primeiras frases dessa oração remetem aos Salmos de David: exaltação ao nome de Deus e um pedido de perdão pelos pecados como no Miserere; segue-se o louvor do milagre da criação, a exaltação da natureza; nas orações vespertinas, louva-se Deus como criador da noite; a natureza é louvada geralmente nas orações matutinas18. A última frase da oração – que está em espanhol – não parece pertencer a ela e devemos notar também a grafia da palavra Deus – está escrito somente D’s, à maneira judaica.

A outra oração deveria ser rezada nos demais dias da semana:
Por aquela obra tão maravilhosa que fizestes olhos do vosso servo Abraão
Mandeis Rei meu um anjo lhe a mão e a sentença contra ele,
Para aquela era tão maravilhosa que fizestes olhos do vosso servo Arão,
Mandai Senhor um anjo dar-lhe dar a mão e a sentença contra ele;
E com as mesmas palavras nomeava Elias, Moisés, Adão, Labão, Ozias, Abacut, Absalão, David, Sansão, Faraó, Judá, Benjamim, Esaii, Abel, Caim, Josué, Jacob, Noé, Daniel, Job, Jonatas, Salomão, Amão, Elizeu, Lot
Mandai Senhor vosso servo Noé e vosso servo Eliseu
tirar da irada Bibolina de Jerusalem,
Assim mandais Senhor um anjo lhe dar a mão e a sentença contra ele

Nessa oração, que vem sem a indicação de a que horas deveria ser rezada – talvez à noite, como a anterior – há a referência explícita ao episódio bíblico do sacrifício de Isaac, que era um assunto popular entre os cristãos-novos19. Segue-se um apelo para que Deus envie um anjo e uma enxurrada de nomes de personagens bíblicos: vinte e cinco. Em algumas orações de cristãos-novos foram identificados personagens bíblicos; Schwartz apresenta orações em que eles aparecem, às vezes três ou quatro, porém sempre dentro do contexto de uma história da Bíblia20, nem sempre a história está de acordo com a Bíblia, mas sempre tem uma lógica.

Na oração de Izabel Gomes não há nem história, nem lógica. Entre os personagens que louva, dois vilões da história judaica: o Faraó (da história de Moisés) e Amão (da história de Ester), o que mostra a enorme confusão que ela fazia, identificando sua ignorância da história judaica. Entretanto, não era a única que desconhecia a história bíblica; Giglitz indica que Amão fora considerado algumas vezes como um santo por cristãos-novos21 .

Izabel havia sido ensinada pela avó, Izabel Gomes da Costa; que era filha de Beatriz da Costa, irmã de Izabel Mendes, a primeira e única moradora do Rio de Janeiro a ser presa no século XVIII, convicta criptojudia e conhecedora da religião, da história judaica e que declarou inclusive saber hebraico. Assim, em três gerações, todo o conhecimento de história judaica, toda crítica ao cristianismo presente na antepassada desapareceram. O fato de ser uma das poucas cristãs-novas a conhecer orações criptojudaicas – ainda que certamente muito modificadas – revela que nessa família a memória judaica continuava presente.

Para as cristãs-novas fluminenses acredito que se possa considerar a memória judaica como pertencente a uma comunidade – e não somente aos núcleos familiares; há uma uniformidade em suas declarações que indicam um denominador comum; a memória judaica, parte constitutiva de sua identidade, também uma identidade híbrida e uma identidade “dividida”, capturada entre dois mundos.

Estavam assimiladas à sociedade fluminense; eram senhoras de engenhos, donas de partido de cana, proprietárias de escravos, casadas com médicos, advogados, mercadores e homens de negócios.

Realizavam negócios com cristãos-velhos, comprando, vendendo, cuidando da manutenção de suas propriedades.

Relacionavam-se com seus vizinhos cristãos-velhos, que sabiam de seus movimentos e de suas vidas. Um familiar do Santo Ofício, vizinho de Catarina Gomes Pereira, declarou que sabia que a dita mulher era muito retirada no governo de sua casa, não visitando nem sendo visitada22 .

Muitos cristãos-velhos conheciam as mulheres presas desde a infância, sendo vizinhos e amigos de seus pais e maridos; declararam ter com as presas muita comunicação.

Eram externamente boas católicas, iam as igrejas, davam esmolas, e faziam todas as obras de boas cristãs.

Os cristãos-velhos sabiam perfeitamente qual a origem das pessoas: quem era ou não cristão-novo e por que via – se havia ou não rumor ou fama de cristão-novo nas famílias e até mesmo se algum parente já havia sido reconciliado pelo Santo Ofício23 . Mantinham relações de compadrio com cristãos-velhos; batizavam seus filhos, e eram batizadas por eles; cristãos-velhos de destaque na sociedade colonial eram padrinhos de cristãs-novas.

Casavam-se também com cristãos-velhos; cerca de 36% das mulheres cristãs-novas eram casadas com cristãos-velhos; a documentação examinada até o momento indica que as mulheres se casavam fora da comunidade cristã-nova mais do que os homens cristãos-velhos, diversamente do que acontecera na Bahia, onde mais homens cristãos-novos casaram-se com mulheres cristãs-velhas24 .

Assimiladas à sociedade colonial, porém não integradas25. As cristãs-novas que foram denunciadas, mas não chegaram a ser presas, especialmente as que eram casadas com cristãos-velhos, ou os filhos de casamentos com cristãos-velhos, assimilaram-se mais rapidamente e atingiram a integração também mais rapidamente quando esta foi possível com o final da distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos.

A documentação do Rio de Janeiro indica que a transmissão da memória judaica não era tarefa exclusiva das mulheres, e os casamentos de homens com cristãs-velhas não foram em número expressivo O sincretismo era parte integrante da religião confessada por todos os cristãos-novos da colônia (como indicam as pesquisas realizadas até o momento).

As cristãs-novas fluminenses viviam divididas entre o cristianismo e o judaísmo; porém, sem contato com judeus – não sabiam que os judeus as considerariam como cristãs e consideravam-se cristãs – embora novas.

A identidade cristã-nova não dependia do cripto-judaísmo vivenciado; todas as cristãs-novas do Rio de Janeiro confessaram a crença na Lei de Moisés para salvação de suas almas, e conheciam algumas práticas e cerimônias. Poucas revelaram um conhecimento maior.

Todas tinham uma identidade cristã-nova fundada em uma memória judaica; e todas elas viviam entre dois mundos: o católico e o judaico.

Com o correr do tempo, desenvolveram uma identidade própria, forjada em grande parte pelos fatores que fizeram com que sobrevivessem como grupo: a “pureza de sangue”, que manteve a discriminação contra os cristãos-novos e a perseguição do Santo Ofício, tornando essencial a continuidade de um judaísmo, considerado enquanto crença e práticas religiosas, e, certamente, um judaísmo bastante distanciado do ortodoxo.