Homenagem ao intelectual judeu Jacó Guinsburg

Berta Waldman1

No pensamento judaico, sábio e culto são conceitos equivalentes, e quem possui cultura e sabedoria é conhecido como talmid chacham (discípulo de sábios), título que carreia uma verdadeira honraria, pois representa o máximo em valorização e reconhecimento social. É interessante observar que o ponto alto do conhecimento é marcado pelo título talmid, aluno, aquele que tem sempre diante de si o horizonte do que há para aprender e não aquilo que já sabe. Observe-se, ainda, que conhecimento e sabedoria caminham juntos e marcam um patamar acima do mero entendimento, pois impõem a obrigação maior de partilhá-los com os que sabem menos ou são menos afortunados.

O talmid chacham sempre foi o herói ideal da tradição judaica; ele tem na mira a sabedoria máxima, isto é, a virtude. Por isso, do chacham espera-se não apenas que seja culto, mas que leve em conta as pessoas, tenha um comportamento ético e busque a justiça. Este padrão foi estabelecido por Moisés e pelos profetas e tem por fim ancorar o conhecimento à ação – lugar da justificativa para o conhecimento. É a transitividade do conhecimento em ação que confere autoridade ao chacham e é esse tipo de autoridade que se prende ao nome do professor Jacó Guinsburg, conforme se pode auferir a partir de vários fatores, dos quais vamos lembrar alguns.

O conjunto das atividades do homenageado desenha o perfil de um intelectual “anfíbio” e ubíquo que, enquanto interfere na produção intelectual brasileira, mantém um interesse vivo pela cultura judaica, tentando construir uma ponte entre ambas. É essa tentativa que marca, a meu ver, a particularidade desse trajeto intelectual, que vou tentar delinear em suas grandes linhas.

Filho de imigrantes, ele próprio imigrante nascido na Bessarábia, o professor Guinsburg chegou ao Brasil com três anos de idade, pouco depois da Revolução de 1924, tendo levado uma vida de garoto pobre, no bairro do Bom Retiro, São Paulo.

Como todo garoto judeu, aos treze anos cumpriu o rito religioso de ingresso na comunidade (bar mitzvá), datando dessa época sua iniciação no hebraico. O iídiche certamente foi aprendido em casa, como aconteceu com todos nós, filhos de imigrantes de origem ashkenazita, tendo sido essa nossa língua materna.

Desde cedo, o prof. Guinsburg interessou-se por atividades políticas, tendo participado de movimentos estudantis de esquerda, opondo-se imediatamente ao integralismo, consciente da ameaça que esse movimento representava para ele como cidadão e como judeu. Tinha dezoito anos quando estourou a II Guerra Mundial. Nesse período, a livraria Elo, dos Irmãos del Picchia, na Rua Senador Feijó, foi um dos lugares que frequentou, junto com estudantes de Direito que faziam oposição ao regime getulista, escritores e poetas, como Oswald de Andrade, Rossini Camargo Guarnieri, Domingos Carvalho da Silva, e ainda pesquisadores de música e folclore, como Rossini Tavares de Lima, e muitos outros. Ali, segundo depoimento seu, conversava-se e debatia-se sobre tudo – particularmente sobre literatura, arte e política. Esse foi, na opinião do homenageado, um dos cadinhos da Esquerda Democrática, e um dos quartéis generais da atuação dos acadêmicos de Direito contra Getúlio Vargas, reprimida violentamente por Coriolano Góes.

Sua presença quase diária nessa livraria não o impediu de envolver-se simultaneamente com atividades sociais e políticas na comunidade judaica, marcando sua relação não só com as lutas do povo brasileiro pela democracia e pela renovação da sociedade, como também seu vínculo com aqueles que estavam sendo chacinados no grande Reich alemão.

Presidente do Departamento Juvenil do “Centro Cultura e Progresso”, o prof. Guinsburg dedicou-se à política, à literatura, ao estudo do marxismo, e também à literatura e à história judaicas, proferindo palestras e dirigindo debates no mencionado Centro, sem descurar, por outro lado, dos temas universais.

A formação da Editora Rampa, em 1947, foi um marco em seu caminho. Esta aventura de mocidade teve como saldo positivo a publicação de quatro títulos: Antologia Judaica, Joias do Conto Iídiche, A Mãe, de Scholem Asch, e Contos, de I.L.Peretz, que alcançou repercussão junto à crítica, tendo merecido comentários estimulantes de Otto Maria Carpeaux, Osório César, e, através de correspondência particular, de Carlos Drummond de Andrade e Tristão de Athayde.

Em 1954, convidado a trabalhar na recém criada Difusão Europeia do Livro – DIFEL, o prof. Guinsburg cooperou com alguns projetos de grande importância cultural e editorial: a publicação da série Saber Atual, a coleção Clássicos Garnier, uma “Brasiliana” moderna, sob o título Corpo e Alma do Brasil, Presença da Literatura Brasileira, Presença da Literatura Portuguesa, entre outros. Em função desse trabalho, manteve contatos com Sérgio Buarque de Holanda, Antônio Cândido, Sérgio Milliet, Haroldo de Campos, Gerard Lebrun, Florestan Fernandes, Maria José Werebe, Octavio Ianni e outros expoentes da inteligência brasileira, ao lado de figuras internacionais, como Sartre e Simone de Beauvoir.

Enquanto estava vinculado à DIFEL, o prof. Guinsburg entra em contato com Anatol Rosenfeld, intelectual dotado de espírito crítico aguçado e grande mestre, que aglutinou ao seu redor um círculo de amigos que compreendia além de Guita e Jacó Guinsburg, Regina e Bons Schnaiderman, Roberto Schwartz, Zulmira Ribeiro Tavares, Giselda Leirner, entre outros, a quem ministrava aulas de filosofia, que se estendiam a questões que aconteciam no Brasil e no mundo, nos mais variados terrenos.

Ainda neste período, a convite de Décio de Almeida Prado, tornou-se colaborador do “Suplemento Literário” de O Estado de São Paulo, responsável pela seção de Letras Judaicas. Tal incumbência permitiu-lhe abordar e difundir valores e nomes da literatura judaica em iídiche e em hebraico. Foi na redação desse jornal que conheceu Sábato Magaldi, com quem acabou travando sólida amizade.

O contato com Anatol Rosenfeld, Sábato Magaldi e, anteriormente, Ruggero Jacobbi avivaram no professor Guinsburg outro foco de interesse: o teatro. Tendo acompanhado desde a juventude espetáculos de teatro amador em língua iídiche e portuguesa, sofreu o impacto das representações do “Grupo Universitário de Teatro”, de Décio de Almeida

Prado, de “Os Comediantes”, e também da moderna arte de encenação trazida por Jacob Rotbaum, diretor e professor de teatro judeu, que mais tarde trabalhou com Ida Kaminska na Polônia, tendo antes permanecido em São Paulo por longo período, quando dirigiu os grupos de teatro amador do Centro Cultura e Progresso, onde realizou montagens de excelente nível artístico. Foi sob o impacto dos trabalhos apresentados pelo TBC, bem como das temporadas paulistas de grupos cariocas e das leituras mais específicas feitas por iniciativa própria ou por sugestões de Anatol Rosenfeld e Sábato Magaldi, que começou a se familiarizar com aspectos mais profundos da história e da teoria dramáticas, sem esquecer sua passagem pela França, de onde veio o impulso fundamental neste processo que o conduziria para pontos centrais dos estudos da cena contemporânea.

Assim começou a escrever sobre teatro e a traduzir peças teatrais, tornando-se professor de Crítica Teatral e mais tarde de Estética Teatral na Escola de Arte Dramática, tempos depois incorporada à USP.

Em 1965, funda, com um grupo de amigos, a Editora Perspectiva, com vistas a concretizar um programa bastante ambicioso. O primeiro item compreendia a edição de uma Judaica, que abarcaria quatro mil anos de criação cultural do povo judeu. Seriam doze volumes – que depois se tornaram treze – dispostos segundo uma diacronia que se detinha nos pontos altos de expressão coletiva e individual. A execução desse projeto representou um insano trabalho de pesquisa, tradução, organização e redação de ensaios e análises, coordenado e realizado em grande parte pelo prof. Guinsburg, embora tenha contado com numerosas colaborações de nível, como as de Anatol Rosenfeld, Zulmira Ribeiro Tavares, Bons Schnaiderman, Rifka Berezin e outros.

Apesar de esses volumes serem muito utilizados por professores e alunos do curso de Língua e Literatura Hebraica, aqui da USP, e por muitos outros leitores de fora da Universidade, curiosamente, não houve, até hoje, uma manifestação de peso sobre o conjunto da coleção, ao contrário do que ocorreu com a Antologia Judaica, que mereceu diferentes artigos na imprensa iídiche, além da brasileira, e o mesmo se diga em relação à publicação das Joias do Conto Iídiche e dos Contos de I.L.Peretz. A questão é que a imprensa judaica em iídiche se desativou com o tempo, pontuando o empobrecimento da vida cultural judaica, daí, talvez, o pequeno impacto comunitário de publicações da importância dos treze volumes da coleção, e mesmo de outras obras básicas sobre o judaísmo. Se o impacto comunitário não se fez sentir, o caso de Guershom Scholem serve de exemplo da importância da publicação junto ao público brasileiro que reconhece, hoje, a relevância deste pesquisador.

Outro caso importante, que o professor Guinsburg costuma mencionar, diz respeito a Agnon. Trata-se, sem dúvida, do maior ficcionista de língua hebraica, não só do século XX, mas de todos os tempos. Ele é um escritor profundamente expressivo, não só de sua geração, como da vida judaica nas encruzilhadas espirituais da modernidade. Esse autor foi lançado pela Editora Perspectiva, por coincidência justamente na época em que lhe atribuíram o Prêmio Nobel (em 1966). Na ocasião, o Professor Guinsburg já havia organizado a coletânea de relatos que denominou Novelas de Jerusalém e aconteceu que logo depois a Academia Sueca distinguiu o autor. Em seguida, foram editados mais relatos seus no Brasil. Assim mesmo, fora do âmbito universitário lê-se este ou aquele conto de Agnon, mas ele ainda não tem circulação efetiva entre os leitores de língua portuguesa, nem mesmo na comunidade.

O projeto da Editora Perspectiva não se cinge, no entanto, à mera divulgação de uma cultura específica. Constituía já seu objetivo, além de continuar ampliando a Judaica com outras obras de importância, desenvolver, em outra etapa, a publicação de textos de vanguarda e da bibliografia fundamental em Humanidades, particularmente os títulos que vieram à luz nas correntes renovadoras dos anos 50 e 60, tanto no Brasil como no exterior. Nasceu assim a coleção Debates. Outras coleções vieram juntar-se a ela, sempre com uma diretriz mais ou menos parecida: unir qualidade e importância do texto à qualidade da edição.

Outra atividade que exigiu os esforços do Prof. Guinsburg, além do ensino de teatro, consistiu no trabalho realizado no âmbito do então recém-criado Centro de Estudos Judaicos, ligado à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo. Chamado a colaborar em sua formação, participou de seu primeiro Conselho como diretor de publicações. Nessa posição coordenou a edição de textos universitários de interesse do Centro. Além disso, coube-lhe a responsabilidade pelo curso de Literatura na área de Hebraico, cujos programas organizou, tendo no início ministrado as aulas pessoalmente e, ao fim, delegado o magistério a outros professores, sob sua orientação. Desligado dessa atividade, o programa de pós-graduação de Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaicas conta ainda com a participação do professor na tarefa de orientação, mantida até hoje.

Em 1996, publicou uma obra da maior importância – Aventuras de uma Língua Errante: Ensaios de Literatura e Teatro Iídiche, que tem por protagonista o iídiche, língua em extinção a partir do extermínio de seus falantes durante a II Guerra Mundial, livro muito bem recebido pela crítica. Embora o ponto de partida dessa obra tenha sido seu doutorado, o resultado final apresenta-se como o roteiro de uma viagem pessoal, feita de idas e vindas que atam sua atividade crítica pelos territórios do iídiche e de suas criações, pontuada principalmente por seus autores e atores.

Quero observar, ainda, que o Professor Guinsburg está vivendo a década de seus setenta anos escrevendo uma prosa cada vez mais viva, com parte de sua obra por reunir em livro, e outra parte ainda na cabeça, por redigir. Vai entrando assim para a companhia reduzida e admirável dos escritores para quem a idade foi ocasião de desdobramentos intelectuais novos, tão insubstituíveis quanto os anteriores. Penso nos seus colegas e amigos, exemplos de todos nós, Sérgio Buarque de Holanda, Décio de Almeida Prado, Antônio Cândido, Bons Schnaiderman.

Não posso fechar essa saudação sem antes evocar o primeiro livro de ficção do Professor Guinsburg, O que aconteceu, aconteceu, publicado no ano 2000. Nele, as águas da cultura iídiche, hebraica e brasileira confluem, amarrando uma história de vida pessoal marcada pelo compromisso com a palavra. Se for verdade que há aí o esforço de se deslocar do lugar da crítica, do ensaio, da tradução, para se implicar no universo ficcional, é também verdade que o peso dessas três atividades está presente na construção de um processo peculiar de línguas calcadas, em que uma língua se faz ouvir através de outra. O tom do suporte oral, como da escrita da literatura iídiche, são mimetizados em alguns contos. Mais do que isso: os idiomas em contato (português e iídiche) intercambiam signos, contexto linguístico e semântico, a ponto de o modo de ser de uma língua transportar-se para outra, criando, tradução encoberta, um texto iídiche escrito em português. A visão de mundo, o modo de ser das personagens, a forma de perguntar e de responder, a ironia, confrontos que fazem faísca e produzem humor, a solução para os conflitos, enfim, o autor alcança explorar, na primeira parte do livro, um potencial expressivo de linguagem tal, que fica depositada nas vozes das personagens imigrantes em coro com a do narrador uma história da imigração dos judeus no Brasil. Também o hebraico ressoa em algumas narrativas de Guinsburg. Ao contrário do iídiche, o hebraico manterá uma distância da intimidade do idioma falado, por ter sido historicamente escrito e fundamentalmente litúrgico, até o momento de sua revitalização. Assim, os ecos de cada uma dessas línguas, na coletânea de contos, têm a ver com sua própria história. A primeira aparece em seu suporte oral, marcando o tom das falas, o brilho das imagens. A segunda deixa, no uso lexical rebuscado e na sintaxe erudita, o rastro de uma língua de base escrita, que soa estranha em português. Menciono esses elementos e não outros da coletânea para apontar um certo denominador comum entre os demais trabalhos do professor Guinsburg e seu texto ficcional, pois nele o autor alcança, no nível da expressão, inscrever a ponte entre o Brasil e o judaísmo buscada em suas outras atividades.

Como arrematar a saudação a uma vida de constante trabalho, de compromisso com a palavra, e que tem como expectativa mais trabalho ainda?

Permitam-me citar a adaptação de uma agadd (lenda judaica) que conta o seguinte:

O jovem estudioso do Talmud, tendo completado um profundo estudo, procurou rabi Elias, o Gaon de Vilna, e pediu-lhe a sua opinião. Rabi Elias olhou para o visitante com grande carinho:
– Filho – disse ele – você tem de enfrentar a dura realidade. Se quiser ser um escritor de livros profundos, terá de resignar-se a oferecê-los de porta em porta, como um vendedor de panelas, e a passar fome até os 40 anos.
– E depois que fizer 40 anos? – quis saber o jovem autor, cheio de esperanças.
Rabi Elias deu-lhe um sorriso encorajador:
– Quando chegar lá, você estará acostumado!