O padre António Vieira (1608-1697) e os judeus: as referências a São Paulo
Como se sabe, contra o padre António Vieira (1608-1697), o célebre jesuíta e missionário, foi intentado um processo da parte do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição (entre 1663 e 1667). Vieira era acusado de judaísmo.
Não me aplicarei a mostrar os signos do seu judaísmo – o que já foi feito de maneira brilhante pela Professora Anita Novinsky. Minha comunicação está focalizada sobre a importância da figura de São Paulo para o Jesuíta, nomeadamente no que respeita às suas ideias sobre a conversão universal, condição necessária ao advento do Quinto Império, Reino de Cristo sobre a terra, que tanto esperou durante a sua vida inteira o padre A. Vieira.
Vieira nunca afirma uma opinião ou uma certeza sem se referir às “autoridades”, a principal das quais é a Bíblia, as Escrituras Sagradas (tanto o Velho Testamento como o Novo). Ora, lendo e relendo os escritos de Vieira, reparei quanto São Paulo o influenciou, tanto quanto São Francisco Xavier – a quem, aliás, dedica sermões panegíricos. Embora não dedique sermões panegíricos a S. Paulo, manifesta, em vários lugares da sua obra, sua admiração pelo “apóstolo”. Este é qualificado de “o grande apóstolo”2; “o grande Paulo”3; “aquele grande homem, por antonomásia chamado o Apóstolo” (S. da Epifánia)4 ,. “o maior de todos os pregadores” (S. da Sexagésima)5; “o maior pregador do mundo” (S. da 2ª Dominga da Quaresma, 1651)6; “famosíssimo orador” (S. de Sta Catarina)7; “o grande mestre das gentes” (S. da Quinta Dominga da Quaresma, 1651)8.
Com efeito, São Paulo foi “o vaso de eleição para a conversão universal, assim de Gentios como de Judeus, e primeiro modelo e exemplar dos ministros e obreiros do Evangelho9“. Compreendemos então porque Vieira quase se identifica com São Paulo
A conversão universal
Retomando o que escreve S. Paulo, Vieira lembra que todos descendem de Abraão e que “do delito dos Judeus, diz S. Paulo, se seguiu a salvação de todas as gentes. E se do seu delito e infidelidade se seguiram as riquezas do Mundo, que será de sua fé, e da sua obediência a Cristo?10“
Vieira refere-se aqui, e em vários outros trechos da sua obra (Defesa, Clavis Prophetarum, Apologia das Coisas Profetizadas, História do Futuro), ao capítulo 11 da Epístola aos Romanos que corresponde particularmente ao seu pensamento e às suas convicções profundas.
Se os Judeus caíram, esta queda não é definitiva, antecipa um erguer e uma ressurreição. Caíram na medida em que não creram no Evangelho. O qual estava destinado em primeiro lugar aos Judeus, aos Gentios em segundo lugar. Com efeito, nos Atos dos Apóstolos (13, 46-47) está escrito:
Vobis opportebat primum loqui verbum Dei; sed quoniam repellitis illud, et indignos vos iudicatis aeternae vitae: ecce convertimur ad gentes, sic enim praecepit nobis Dominas.
Assim como o predestinado quando está em pecado está caído da graça sanctificante, mas não está caído da graça da eleição, e é certo que se há de converter e salvar, assim o Povo judaico, no presente pecado, obstinação e cegueira em que está, é certo que está fora da graça de Deus e caído da graça sanctificante; mas, ainda que os particulares do dito povo que morrem no tal pecado e cegueira, se condenem, o mesmo povo, que não morre e se tem conservado e conserva, é certo que se há de levantar do pecado, em que está caído, e se há de converter a Cristo, e a sua fé, para que todo se salve, como conclue o mesmo S. Paulo: et sic omnis Israel salvas fiat11 .
Reparemos nesta citação quantas vezes Vieira usa da palavra “certo”: três vezes. Pode-se perguntar donde ele tira esta certeza. É uma certeza fundada nas palavras de S. Paulo, mas também nas profecias do Antigo Testamento, o que não é contraditório, pois o Antigo Testamento prefigura o Novo. (Isto afirma muitas vezes Vieira, e pode-se ver também em inúmeras asserções nas quais ele interpreta o Antigo Testamento em função do Novo). Aliás, como o nota Vieira, o mesmo S. Paulo reivindica sua filiação judaica: “Não reprovou Deus o seu povo, que tanto amou; porque eu, a quem ele depois de sua paixão elegeu por seu apóstolo, sou israelita, descendente de Abraão, da tribo de Benjamim”. (Ep. Rom. 11, 1)12
A conversão futura dos Judeus, “com que a Igreja há de acabar de aperfeiçoar sua grandeza”13, é profetizada nas trovas de Bandarra, assim como no Velho Testamento e no Novo. No Velho Testamento, trata-se do Capítulo 4 do Deuteronômio, dos capítulos 11,11; 14, 1 e 59 de Isaías. Aliás, S. Paulo traduz este trecho de Isaías (Cap. 59): “Virá de Sião o libertador e afastará de Jacob a impiedade. E terão de mim esta aliança, quando eu tirar os seus pecados” (Rom. 11, 26-27).
Vieira comenta estas profecias dizendo:
Assim que a conversão do povo Judaico não só está decretada por Deus ab aeterno, e anunciada pelos Profetas, senão prometida também aos antigos Patriarcas por pacto expresso de Deus, o qual assim como lhes prometeu que havia de livrar seus descendentes do cativeiro temporal do Egipto, e metê-los de posse da terra de promissão, assim lhes prometeu igualmente que os havia de livrar do cativeiro e miséria espiritual em que hoje vivem, e passd-los à liberdade de filhos de Deus, unindo-os ao grémio de sua Igreja. E isto é o que disse em palavras mais escuras Isaías, e declarou expressamente S. Paulo14 .
Outros profetas falaram da conversão futura dos Judeus:
Oséias (3, 4-5):
Depois disto os filhos de Israel voltarão e buscarão o Senhor seu Deus e David, seu rei, e no fim dos tempos olharão com respeitoso temor para o Senhor e para seus bens.
Ezequiel (37, 21-24):
Isto diz o Senhor Deus: “Eis que vou tomar os filhos de Israel do meio das nações, para onde foram, juntá-los-ei de todas as partes e os tornarei a trazer para a sua terra; formarei deles uma só nação na terra, sobre os montes de Israel, e será um só rei que os comande a todos, e nunca mais formarão duas nações, nem se dividirão para o futuro em dois reinos. Não se mancharão mais com os seus ídolos, nem com as suas abominações, nem com todas as suas iniquidades; tirá-los-ei salvos de todos os lugares em que pecaram e os purificarei; serão o meu povo e eu serei o seu Deus. O meu servo David reinará sobre eles, e será um só o pastor de todos eles; observarão as minhas leis, guardarão os meus preceitos e praticá-los-ão”15 .
Finalmente, S. Paulo confirma tudo isto na Epístola aos Romanos – cujo objetivo era ensinar aos Romanos que não deviam aborrecer aos Judeus, porque “da cegueira, e miséria presente em que viam os Judeus, não deviam tirar jactância, desprezo, nem aborrecimento, senão humildade, temor e compaixão”16. Com efeito, S. Paulo pergunta assim: nunquid Deus repulit Populum suum? e responde de maneira categórica: Absit. (em conformidade, aliás, com o Salmo 94, 14: “O Senhor não repelirá o seu povo. Nem abandonará a sua herança.”). Notemos que Vieira comenta essa Epístola aos Romanos da mesma maneira que S. Agostinho, nomeadamente.
O povo judaico / o povo gentílico
Por outras palavras, Vieira afirma frequentemente que o povo judaico é o povo eleito por Deus, baseando-se sobre o Velho Testamento. Porém, num mesmo movimento, diz que os Judeus recusaram o Evangelho e que terão que o aceitar e converter-se. Assim serão unidos os dois povos até agora distintos: o povo judaico e o povo gentílico. Como outros escritores barrocos, Vieira usa de metáforas emprestadas do teatro: o palco do mundo é representado por duas figuras: o povo judaico e o povo gentílico. Permito-me citar um trecho cumprido da Apologia das Coisas Profetizadas porque o estilo de Vieira se revela aí particularmente brilhante:
E assim como vemos nas representações das nossas comédias que aquelas figuras que têm dito o seu papel, e não hão de tornar ao teatro, se despem logo; porém as outras que hão de representar até o fim e conclusão da comédia esperam com os mesmos vestidos e com as mesmas insígnias; assim tem acontecido e se tem visto nesta grande comédia de Deus. Os Romanos, os Cartagineses, os Suevos, os Alanos, os Citas, os Geias, e muitas outras nações de que não há’ hoje mais que a memória, e se extinguiram totalmente, são figuras que representaram o seu papel nesta comédia, e despiram o nome e o vestido, porque não hão de tornar mais ao teatro. Porém o Povo Judaico, e o Povo Gentílico, a Sinagoga, e o Gentilismo, que são aquelas figuras principais que se hão de dar as mãos no fim da comédia, necessariamente se hão d.e conservar no mesmo estado, na mesma representação, e na mesma figura, e essa é a razão porque hoje se conservam distintos estes dois Povos, e quando no fim se desatar o enredo, e se descobrir a traça do supremo Autor desta comédia, então pasmaremos todos, e pasmará o mundo à vista da admirável Providência deste segredo, e mistério; e então exclamará com São Paulo no mesmo lugar em que se refere esta maravilha: O altitudo sapientiae, et scientiae Dei, quam incomprehensibilia sunt iudicia eius, et inuestigabiles uiae eius17 .
Com a lógica que o padre Vieira costuma praticar, ele afirma que estes dois povos têm que ser distintos para unirem-se depois. O problema consiste em que o povo judaico foi esmagado e em consequência podia-se pensar que tinha perdido as suas características. Mas, pelo contrário, Vieira consagra muitas páginas dos seus escritos a demonstrar que o povo judaico, sendo uma Nação, não pode extinguir-se. Como reparou o Professor Nathan Wachtel na sua aula sobre Vieira, no Collège de France, em 2000, a argumentação de Vieira, aqui, é quase etnológica e pretende, pelo menos, ser científica. Remeto para vários trechos: Apologia das Coisas Profetizadas, p. 158, Defesa I, p. 317, Defesa II, p. 112. Na verdade, ele empresta o seu raciocínio de Justo Lipsio18:
Até aqui Justo Upsio, o qual como tão erudito e versado em todas as histórias do mundo, tem por uma das maiores maravilhas dele que vivendo a nação Hebreia sem pátria, nem lugar certo, antes envolta e misturada com todas as nações da África, da Ásia, e da Europa, no meio desta mesma união, se conserve tão dividida, e no meio desta confusão tão distinta, que nem em Itália falando Italiano sejam Italianos; nem em Holanda falando Holandês sejam Holandeses {...), senão que entre todas se conservem sempre distinta e separadamente Judeus, sendo conhecidos não só entre si, senão para com todos por tais19 .
E tudo isto permite também afirmar, primeiro, a existência das dez tribos perdidas num lugar escondido e incógnito – A Terra Austral, provavelmente –, segundo, que essas tribos perdidas voltarão e serão restituídos à sua Pátria20 .
Uma das causas de reprovação pelo Tribunal da Inquisição está no fato de Vieira afirmar que a conversão do povo judaico devia ser anterior à do povo gentílico, em vez de dizer, segundo os cânones da Igreja, que devia ser universal. Na verdade, como sempre se pode reparar no processo de Vieira, os inquisidores são de má fé e simplificam o pensamento do réu, no fim de o culpar de “erro judaico”, apesar de Vieira ter matizado o melhor possível as afirmações ou argumentações que lhe são censuradas. Com habilidade, os inquisidores argumentam referindo-se também à S. Paulo que citam: “Porventura Deus só o é dos Judeus? Não o é ele também dos Gentios? Sim, certamente ele o é também dos Gentios” (Rom. 3, 29); “Não há distinção entre judeu e grego” (Rom. 10, 12)21 .
Vieira, respondendo às críticas dos inquisidores, explica, com bastantes pormenores, que, conforme a doutrina de São Paulo, “primeiro havia de procurar, e mandar Cristo, que a lei Evangélica se pregasse ao povo Judaico, e depois ao Gentílico; e que por os Judeus não aceitarem a dita lei, como consta dos Atos dos Apóstolos, não se lembra em que lugar, ficaram entrando no primeiro lugar da conversão os Gentios: e que depois deles entrarão no segundo, e último, os Judeus, como expressamente afirma São Paulo no capítulo 11 na Epístola aos Romanos.22“ Com algumas metáforas, tenta provar isto – metáforas que também não são do gosto dos Inquisidores:
Esaú e Jacob
Esaú e Jacob representam duas gentes e dois povos, como é escrito na Génese 25. Estes dois povos são o povo judaico e o povo gentílico. Vieira refere-se à S. Paulo para dizer que o segundo, o povo gentílico, menor, “teve tanta graça com Deus que foi escolhido por ele, sendo o outro reprovado, e o venceu e lhe levou o morgado, como Jacob a Esaú.”23 No entanto, sabe-se que a aversão de Esaú contra Jacob, acabou ao fim de muitos anos: abraçaram-se. Donde conclui Vieira que “assim virá também tempo em que o Povo Judaico chorando muitas lágrimas de arrependimento, se abrace com o Gentílico em verdadeira união de fé e amor, conhecendo, adorando e servindo, conformemente e sem distinção alguma, a Cristo, e vivendo, como filho maior, na casa do mesmo Pai.24“
-O filho pródigo
Com a parábola do filho pródigo, Vieira tenta demonstrar a mesma anterioridade do povo judaico que finalmente será acolhido com festas na Igreja.
-Raquel e Lia
Como escreve António Saraiva, a narração de Raquel e Lia é interpretada por Vieira num sentido favorável aos Judeus: “Jacob é Cristo, apaixonado pela bela Raquel, o povo judeu; Labão é o diabo; Lia, indesejada, mas finalmente fecunda, é o povo gentio que se transforme na Igreja, pela sua introdução subreptícia e fraudulenta no leito de Jacob Cristo25.”
Vieira distingue o povo e a Igreja. Do ponto de vista da Igreja, a Igreja dos Gentios é representada em Raquel, por ser mais moça, e a dos Judeus em Lia, por ser mais velha; “Pois é certo que primeiro foi a Igreja da lei escrita, que a da Graça; e pelo contrário, enquanto povo, o povo hebreu é representado em Raquel mais moça e o povo Gentílico em Lia mais velha, porque nesta consideração também o povo Gentílico é mais antigo, e o Hebreu mais moderno26”.
No Processo, Vieira explica que, de um certo ponto de vista, o povo judaico é o mais antigo, mas que de um outro ponto de vista, é o contrário. Ou seja, o povo judaico é o mais antigo quanto à Fé e conhecimento do verdadeiro Deus; o povo judaico é o mais moderno quanto a natureza e nascimento.
A parábola da oliveira
Para provar a futura conversão dos Judeus, Vieira apoia-se essencialmente em São Paulo. Além das parábolas que acabamos de ver, serve-se abundantemente da parábola da oliveira (Ep. Rom. 11, 16-25). Vamos ver agora como e por que razões isto foi censurado pelo Tribunal da Inquisição.
Encontramos os desenvolvimentos relativos a esta parábola em três lugares: na Apologia das Coisas Profetizadas, na Defesa II e nos Autos do Processo.
Vieira comenta a parábola enunciada por S. Paulo, trecho por trecho.
-“Se as primícias são santas, também a massa, e se a raiz é santa, também os ramos”:
Para Vieira, “são dois exemplos, um legal, outro natural, com que o Apóstolo demonstra a futura santidade dos convertidos Judeus, ou a possibilidade conatural dela.27“ Isto conforme ao Levítico, 15. Portanto, Vieira comenta assim o exemplo “legal”:
As primícias da lei da graça foram os Apóstolos de Cristo, pois se estas primícias foram da mesma nação, do mesmo sangue e da mesma massa de que hoje são os judeus, que muito será que recebendo eles a mesma fé que receberam os Apóstolos, e mais depois de ensinados com tantos castigos, e alumiados com tantos desenganos, e provocados com tantas emulações, venham a ser tão santos como eles foram, ao menos mui parecidos e mui chegados na santidade a eles28 .
O segundo exemplo, natural, Et si radix sancta, et rami, quer dizer que as raízes foram os Patriarcas e os Profetas, e os ramos os Apóstolos. S. Paulo, a seguir, compara o povo hebreu de que os Patriarcas foram as raízes à oliveira mansa, frutífera, e o povo gentílico ao aleastro ou zambujeiro, árvore estéril, agreste. Porém, não se devem ensoberbecer os Gentios porque “não sois vós os que sustentais e dais a virtude às raízes, senão as raízes a vós.” E, se Deus castigou e não perdoou aos ramos naturais da oliveira, aos enxertados e estranhos pode suceder a mesma desgraça. E podem vir a ser ramos cortados. “E se vós (continua o Apóstolo) que hoje sois ramos unidos podeis vir a ser ramos cortados, e de Cristãos podeis vir a ser hereges, da mesma maneira os Judeus, que hoje são hereges, podem vir a ser Cristãos, e de ramos que hoje são cortados da Igreja, ramos unidos a ela. E de citar S. Paulo: “Pois Deus é poderoso para os enxertar de novo. (Rom. 11, 23)29”.
Segue-se o trecho que foi criticado pela Inquisição:
E finalmente (que é o principal intento do Apóstolo) se aqueles em quem era natural a infidelidade, e a fé contra natureza, se fizeram fiéis, e tão fiéis, estes em quem a fé é como natural e que a herdaram hd tantos mil anos de seus avós, por que não serão tão fiéis como eles, e não só tanto, senão muito mais? Quanto magis30 ...
Os inquisidores não aguentaram esta argumentação. Repreendem o réu por ter afirmado que a fé, religião e santidade nos Gentios eram não naturais, ou contra Natureza, e nos Judeus, eram próprias, e naturais, como também nos ditos Gentios, o era a Infidelidade, torcendo para isto violentamente o verdadeiro sentido da figura de que ali usa o sagrado Apóstolo, dos ramos do azambujeiro enxertado na oliveira31 .
O réu responde dizendo que traduziu ao pé da letra as palavras usadas por São Paulo: contra naturam e secundum naturam; o que não quer dizer que ele acha natural a fé nos Judeus, nem natural a infidelidade nos Gentios, mas porque havendo os Judeus herdado a Fé, e Religião dos Patriarcas seus progenitores, destes, como das raízes aos ramos, se lhes comunicava a Fé, não natural, mas como natural, ou conaturalmente, e da mesma maneira aos Gentios se comunicava a Idolatria e Infidelidade de seus progenitores, não por lhe ser natural ou conforme à natureza, mas por ser mais conforme a ela, que os filhos herdem os vícios dos pais32 .
Na verdade, Vieira quer chegar, como São Paulo, à revelação de “um segredo ou mistério da Providência divina”:
que uma parte de Israel caiu na cegueira até que tenha entrado a plenitude dos Gentios, e assim todo o Israel se salve” (Rom.11, 2526)33 .
Por outras palavras, Deus quis que os Judeus e os Gentios recebessem a fé não junta, senão alternadamente, de sorte que primeiro fossem fiéis os Judeus e infiéis os Gentios, como sucedeu no tempo da lei escrita, e que depois fossem fiéis os Gentios, e infiéis os Judeus (posto que não todos eles, senão parte) como hoje vemos, e que finalmente depois que todos os Gentios receberem a fé, e entrarem por ela à Igreja, então se converterão também, e se unirão a ela todos os Judeus, para que todos se salvem34 .
No entanto, subsiste uma contradição: como se pode conciliar a conversão dos Judeus e a sua esperança “material” de serem restituídos à sua Pátria ? Vieira poderia ser chamado “o grande conciliador” (é de reparar que, por seu lado, Menasseh ben Israel escreveu um livro intitulado O Conciliador). Na Defesa perante o Tribunal do santo Ofício, ele explica que esta esperança é totalmente justificada, dado as inúmeras misérias (“afronta, cativeiro, miséria”) dos Judeus ao longo dos tempos, ligadas à dispersão e ao desterro. Se esta esperança pode ser considerada como “ímpia, herética e blasfema” na medida em que os Judeus esperam ser restituídos à sua Pátria “não pela fé e conhecimento do Messias, que já veio, senão pela potência do Messias, que dizem há de vir”, é “lícita e louvável” a partir do momento em que os Judeus crerão o que crêem os católicos. Ou seja, quando os Judeus já não forem cegos. Com efeito, o que preexiste a tudo o que acabamos de ver é o pressuposto segundo o qual os Judeus são cegos.
A cegueira dos judeus
Numerosos são os lugares em que Vieira fala da cegueira dos Judeus, tanto na História do Futuro como na Defesa. Cegueira simbolizada pelo véu de Moisés. Com efeito, no Êxodo (34, 27-35) diz-se que Moisés, depois de ter recebido as Leis, quando falava ao povo de Israel, punha um véu sobre o rosto, porque os filhos de Israel tinham medo do esplendor que irradiava do rosto de Moisés. Mas Vieira não interpreta esse ato desta maneira. Retoma a interpretação de S. Paulo (2ª Epístola aos Cor. 3) segundo a qual o véu de Moisés simboliza a cegueira dos Judeus, que só terminará com a sua conversão a Cristo:
Usque in hodiernum diem, cum legitur Moisés, velamen positum est super cor eorum; cum autem conversi fuerit ad Dominum, auferetur velamen. Alude ao véu com que Moisés cobria o rosto, porque os Judeus não podiam ver a luz dele, e diz que o mesmo véu se passou ao coração dos Judeus, e que por isso não entendem a Moisés, quando o lêem, mas que o entenderão e o véu se lhe tirará, quando se converterem ao Senhor; Cum autem conversi fuerit ad Dominum, auferetur velamen. Ambas as clausulas vêm a dizer o mesmo, porque uma diz que se há de acabar a cegueira do Povo Judaico, e outra que se há-de converter35 .
Nos vero omnes, revelata facie, gloriam Domini speculantes, in eamdem imaginem transformamur a claritate in claritatem. Falava o Apóstolo do véu da infidelidade com que os Judeus têm cobertos os olhos para não ver a Cristo, e diz que nós, os Cristãos, que somos os membros de que se compõe a Igreja, temos tirado pela Fé aquele véu e, com os olhos abertos e desempedidos por meio da própria especulação e estudo, imos crescendo de claridade em claridade, não já passando das trevas à luz, senão de uma luz para outra, sempre maior e mais clara, transformando-se por este modo a Igreja na imagem do seu mesmo esposo, Cristo36 .
Nos Autos do Processo, encontra-se a mesma ideia, mas com uma precisão que permite assegurar a dita conversão dos Judeus, depois deles terem tirado o véu, a saber a “eficácia da divina graça”:
(...) porque ainda que no princípio não quiseram receber a Cristo, por não vir ao mundo com potência temporal, a causa principal, e mais alta, foi o castigo de seu pecado, e a cegueira, que lhe estava profetizada, na qual hão de durar obstinadamente enquanto tiverem os olhos cobertos com o véu de Moisés, e sua lei, mas que postquam ablatum fuerit velamen, como diz São Paulo, hão de crer, e receber a Cristo pelos (mesmos) motivos, e razões, por que ao principio não quiseram crer, e receber, convertendo-se então pela eficácia da divina graça o escândalo judaico da Cruz, em motivo da Fé e adoração37 .
A cegueira dos Judeus é sinônimo de “erro”, erro consistindo em crer na vinda de um Messias, em vez de crer em Cristo. Vieira repete isto muitas vezes, explicando que o erro dos Judeus é olhar adiante em vez de olhar para trás:
Para acharem o seu Deus e o seu Rei (que é Cristo Deus e Rei juntamente) hão de buscá-lo os Judeus, tornando para trás: revertentur filii Israel et quarent38 . E esta é a razão porque o não acharam nem têm achado até agora, porque o buscam para diante, no tempo futuro, sendo que o hão de buscar para trás, no tempo passado39 .
No entanto, reconhece que os Judeus e os Cristãos esperam ambos um Messias (porque Messias e Cristo, ambos, significam ungido). Aplica-se a enumerar as diferenças entre um e outro, para concluir:
De maneira que este fingido Messias dos Judeus de nosso tempo é total e essencialmente diverso do verdadeiro Messias em que cremos os Cristãos40 .
Na História do Futuro (p. 278), a propósito da pedra que derruba a estátua sonhada por Nabucodonosor, pelo contrário, Vieira escreve o seguinte:
Assim o dizem conformemente neste lugar não só todos os Padres e expositores católicos, senão também os hereges e até mesmo Rabinos, os quais acertam em dizer que nesta Pedra está profetizado o Reino do Messias, e erram somente em não crerem que o Messias é Cristo.
A nação hebreia
Os juízos emitidos por Vieira sobre a Nação Hebreia são muito positivos, como se pode ler no texto intitulado “Memorial a favor da gente de nação hebreia” (Obras Várias, II, Sá da Costa) e atribuído a Vieira:
Que nação, por mais belicosa e celebrada que seja no Mundo, chegou a conseguir as vitórias e triunfos de tão bárbaras e feras nações como a hebreia, sujeitando a seu império e obediência por armas, trinta e um reinos e reis, como refere a Escritura Sagrada, na história de Josué? (p. 120)
Mas já ficamos longe de São Paulo... Talvez não tanto, porque se pode dizer que a maioria das argumentações e convicções de Vieira em torno dos Judeus é baseada sobre a crença profunda em Cristo. Ora, ao mesmo tempo em que se reivindica como Judeu, São Paulo tenta converter os Gentios e os Judeus à lei da Graça. Nunca fala do Messias, porque para ele, como para Vieira, já chegou.
Conclusão
Então, como explicar o “filojudaísmo” expresso por Vieira quando aborda a questão dos velhos e dos novos cristãos ? Não posso, dentro do tempo que me é outorgado, falar disto. Portanto, minha conclusão é a seguinte: reparemos numa grande ambivalência no discurso de Vieira sobre os Judeus. Por um lado, manifesta uma admiração indubitável pela Nação hebreia (cf. Memorial a favor da gente de nação hebreia), apoiando-se quase sempre sobre as palavras de São Paulo, por outro lado não se cansa em falar da cegueira do povo judaico, e retoma alguns estereótipos, tal como a sua cobiça, o seu gosto do comércio, etc. Mas, o raciocínio é dialético, e a contradição resolve-se precisamente na solução que se impõe e que é o que Vieira quer demonstrar, a saber a necessária conversão do povo judaico à fé de Cristo.