Por uma estética contra a ordem: dois contos de Jorge Luis Borges sobre o nazismo
Beatriz Sarlo afirma, em seus estudos sobre Borges, que ele sempre Bresistiu a um uso político da literatura2. No entanto, na trama de alguns de seus relatos é evidente uma resistência e uma desconstrução da ordem que é imposta cultural e politicamente. Para Sarlo, a literatura é uma das armas contra o poder consolidado pela arbitrariedade de decisões incompreensíveis ou por força de mitos que reforçam uma situação de dominação e esse é um tema reiterado em Borges.
A partir desse ponto de vista, alguns textos borgianos se colocam em um campo histórico de forças que enfrentam ideologias políticas totalitárias, a fim de redefinir espaços e dar, pela ficção, voz a culturas que foram silenciadas e, às vezes, até esquecidas. Borges expõe, através da sua literatura, a lógica de um mundo onde prevalece a desordem e o princípio da lei está oculto ou ausente. O escritor, que sempre confessou sua aversão a uma literatura que fosse presa a pressões ideológicas, no prólogo ao livro de contos O informe de Brodie, pronuncia uma espécie de manifesto à liberdade de escrever:
Só quero esclarecer que não sou, nem jamais fui, o que antes se chamava um fabulista ou um pregador de parábolas e, atualmente, um escritor comprometido. Não aspiro a ser Esopo. Meus contos, como os d’As Mil e Uma Noites, pretendem distrair ou comover e não persuadir. Este propósito não quer dizer que me encerre em uma torre de marfim. Minhas convicções políticas são demasiadamente conhecidas; filiei-me ao partido conservador – o que é uma forma de ceticismo – e ninguém me taxou de comunista, nacionalista ou antissemita. Acredito que com o passar do tempo mereceremos que não existam governos. Nunca dissimulei minhas opiniões, nem mesmo nos duros anos, mas não permiti que interferissem em minha obra literária, a não ser quando fui assaltado pela exaltação da Guerra dos Seis Dias3.
Esse texto poderia bem anteceder e ser uma chave de leitura dos contos “O milagre secreto”4 e “Deutsches Requiem”5. Neles, a intervenção e a reversão da ordem estabelecida dá-se, reiteradamente, através de desdobramentos, imagens especulares, ambiguidades e reversibilidade de papéis quando se refere à representação da realidade.
Na medida em que Borges, pela ficção, entrelaça, aos abusos e desmandos que intentam obliterar a voz e o direito, as ambíguas e sutilíssimas formas de se burlar o poder e a força, ele efetua a transformação da ordem em espetáculo, minando, dessa forma seus tentáculos. As estratégias da ordem – que são instauradas para negar o direito e a memória dos homens – são esgarçadas, submetidas a saques, trocas e apropriações e o discurso totalitário é atravessado por artimanhas, plágios irônicos e desvios deslegitimadores.
Um milagre urdido em segredo
No conto “O milagre secreto” a reversão do silêncio e da morte, dáse, sobretudo, pela imposição de um tempo mágico que insurge dentro da história e instaura a desconstrução através de recursos irônicos que trazem para o texto o excesso de lucidez que causa males e infortúnios.
Segundo alguns críticos, instaura-se nesse conto um tempo sagrado que emerge do tempo profano – o tempo do relógio e do calendário, a que o ser humano classifica como passado, presente e futuro6. O tempo sagrado seria, por essa perspectiva, uma brecha criada pela ficção no tempo profano. Um tempo da irrupção de uma outra instância que iria, em transcendência, recriar possibilidades diversas de formas paralelas.
No conto de Borges, a janela que se abre no discurso e que instaura um outro tempo de natureza fantástica abre uma brecha na máquina de morte e de esquecimento representada pelo nazismo. Ítalo Calvino, anos depois, nas Seis propostas para o próximo milênio, na sua primeira conferência dedicada à leveza, de uma certa forma, reescreve esse outro olhar que Borges parece instaurar nesse conto: “às vezes, o mundo inteiro me parecia transformado em pedra: mais ou menos avançada segundo as pessoas e os lugares, essa lenta petrificação não poupava nenhum aspecto da vida. Como se ninguém pudesse escapar ao olhar inexorável da Medusa7.
O espetáculo do mundo e o ritmo picaresco e aventuroso da escrita, afirma Calvino, procuram retirar o peso, a inércia e a opacidade do mundo. Tais características aderem à escrita, quando não se encontra um meio de se fugir a elas. O reino do humano condenado ao peso necessita de uma mudança do ponto de observação. Na literatura sempre se abrem outros caminhos a explorar, novíssimos ou bem antigos, estilos e formas que podem mudar nossa imagem do mundo8.
Este modo é a leveza. Para Calvino, uma forma de se escrever o mundo fundamentada em outra lógica que não a imposta e preestabelecida. O escritor ou artista que salta ágil sobre os obstáculos e sobreleva o peso do mundo demonstrando que sua gravidade detém o segredo da leveza e se contrapõe àquilo que muitos julgam ser a vitalidade dos tempos e que pertence ao reino da morte, como, diria Calvino, um cemitério de automóveis enferrujados9.
Configuraria, portanto, “O milagre secreto” um exemplo de narrativa que se utiliza de estratégias as quais Calvino chamou de leveza, de dissolução da opacidade e do peso do mundo através da escrita e da memória. No conto, o personagem Jaromir Hladík, ao saber que vai ser executado pelos nazistas que invadiram Praga, pede a Deus que lhe conceda um ano de vida para terminar a escrita de uma peça que estava escrevendo.
A epígrafe do conto é um fragmento do versículo (259 ou 261) do Alcorão: “E Deus o fez morrer durante cem anos e depois o animou e lhe disse: – Quanto tempo estiveste aqui? – Um dia ou parte de um dia, respondeu”10. Esse resíduo do Alcorão, além de colocar o leitor diante de um enigma, referenda a construção poética de Borges através de fragmentos esparsos dos mais inusitados acervos culturais.
Ao trançar esse texto ao relato da morte de um escritor judeu, Borges parece ter em vista a construção de um tecido amplo, tão amplo que pode fazer convergir, sem conflito, sem superposição, as vozes que, fora da ficção, muitas vezes se elevam como inimigas. No discurso literário, a riqueza cultural das nações coopera para o enriquecimento do tecido literário. No relato muçulmano, entabula-se uma alegoria a propósito do poder de Deus. Recorre-se a uma disputa entre Nemrod, um monarca que reinou na Babilônia, e o patriarca Abraão11 .
Esse conflito reverbera no conto através da metáfora do jogo de xadrez e também da peça inconclusa do personagem escritor intitulada Os inimigos. Esse jogo de espelhos entre as peças do jogo de xadrez e os personagens, na ficção e dentro da ficção, o teatro dentro do conto, busca, sobretudo, embaralhar as referências e perder o mapa da origem das citações. Ao reduplicar os acervos culturais através das disputas que são contrapostas na narrativa, Borges efetua um deslocamento da condição linear e, talvez, irreversível, salvo pela ficção, de algumas dessas disputas milenares e compõe, dessa maneira, uma rede em que o leitor se vê irremediavelmente preso.
A introdução do conto “O milagre secreto” é notável por sua precisão nas referências a lugar e tempo:
Na noite de catorze de março de 1939, num apartamento da Zelnergasse de Praga, Jaromir Hladík, autor da inconclusa tragédia Os inimigos, de uma Vindicação da Eternidade e de uma interpretação das indiretas fontes judaicas de Jakobe Boehme, sonhou com um extenso xadrez12 .
Os fragmentos textuais que se espelham na narrativa de Borges contrastam com a exatidão da introdução. Essas referências quase sempre revelam também complexas apropriações da realidade que funcionam como pontos estruturantes da narrativa. A começar pelo prenome do protagonista – não muito comum em espanhol –, que estabelece um diálogo com um texto pertencente à literatura de língua alemã. Jaromir é o nome de um personagem do romance Der Golem, de Gustav Meyrink13 .
Sabe-se que Borges começa a estudar alemão em Genebra em 1916, logo depois da publicação do romance que se deu em 1915. Anos mais tarde, publicou o poema “O Golem”. No arquivo literário do escritor argentino, o texto de Meyrink foi acessado algumas vezes de forma notável, para a construção ficcional desse poema e dos contos “O milagre secreto” e “As ruínas circulares”.
Tanto no poema quanto nas narrativas reitera-se a condição de reversibilidade do homem enquanto criador e criatura e a possibilidade da construção da realidade a partir de um espelhamento entre o sonhado e o vivido. Nesses textos, um sonhador cria um homem para finalmente descobrir que ele mesmo é também o sonho de um sonhador. No poema, o espelhamento entre o criador e a criatura promove essa atmosfera onírica em que o indivíduo encontra-se preso num tempo cíclico e num destino de aparências e simulações.
O sobrenome Hladík, segundo Daniel Balderston, é referência a um obscuro romancista tcheco da virada do século, Václav Hladík (1868– 1913)14 . Entre escritores canonizados e conhecidos em todo o mundo ocidental, Borges embaralha outros não tão conhecidos, mas que, no entanto, estão presentes nos verbetes da Enciclopédia Britânica ou em histórias falsas ou ficcionais da literatura. Essa é uma estratégia comum da narrativa borgiana que não se furta a inventariar verbetes falsos, proliferar conhecimentos simulados e inventar bibliografias de escritores inexistentes.
A mais importante rua de Praga, em que Hladík vive, cujo nome alemão é Zeltnergasse, agora conhecida como Celetná, foi onde, no número 3, residiu a família de Kafka de 1896 a 1906. Nessa mesma rua, no número 12, foram localizados os negócios de Hermann Kafka de 1906 a 1912. Ao entrelaçar ruas, números e escritores, Borges redesenha a cidade de Praga encenada na escritura e a eleva à condição de ficção, fazendo-a ser atravessada por escritores que se encontram no terreno virtual da literatura.
O uso dos nomes alemães para muitos dos lugares no conto é resultado de um conhecimento de Borges dos acontecimentos históricos e sociais que marcaram a cidade. Durante muito tempo, Praga e o resto da Boêmia fizeram parte do Império Austro-Húngaro e, ao fim da II Guerra Mundial, era substancial a população que falava alemão, como foi o caso de Kafka, Max Brod e Franz Werfel, por exemplo. Durante o período republicano, por vontade da maioria da população, os nomes alemães foram substituídos por nomes tchecos.
Borges utiliza outros nomes próprios como Jaroslav, que pode ser uma referência, segundo Balderston, a outro romancista tcheco, Jaroslav Hasek (1883-1923), autor do romance The adventures of the good soldier Svejk in the World War (1921-1922). Esse mesmo nome reaparece no protagonista da peça de Hladík, Los enemigos, como Jaroslav Kubin. O sobrenome, Kubin, pertenceria a um artista de Praga Alfred Kubin, amigo de Kafka e de Max Brod, informa Balderston.
Numa série de espelhamentos, repetições e referências cruzadas entre ficção e realidade, Borges homenageia personalidades austríacas, como Meyrink, e tchecas, como Kafka, Max Brod e Alfred Kubin. Tecer uma rede literária com esses nomes certamente é uma homenagem, mas também é, antes de tudo, a construção de uma vibrante tradição literária de escritores e artistas que, em meio à adversidade, edificaram suas obras multiculturalmente, e minaram o poder das instituições. Assim, além da língua, ou da condição de anexado – como Praga e Áustria – numa literatura menor, os textos foram se configurando enquanto resistência15 .
Apesar da insistência de alguns teóricos, como a sueca Zheyla Henriksen, na afirmação de que é um tempo sagrado que emerge do tempo profano no conto de Borges, destaco, sobretudo, a possibilidade de, em meio à adversidade, criar-se um espaço/tempo, como diria Calvino, uma tentativa de reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço16 .
Esse espaço/tempo criado pelo personagem-escritor, no momento em que está para ser fuzilado pelos soldados nazistas, poderia ser uma intervenção divina. O milagre secreto, então, prefiguraria uma possível redenção do escritor e de sua obra. No entanto, algo da ordem do humano se urde sob os desígnios da escritura borgiana. Transcorrido o instante fugaz do que se pensa ser um ano, a inevitável descarga da bala atinge o escritor. Para esses personagens que desafiam a morte, um outro tempo, um outro espaço precisa ser vislumbrado.
Em “O milagre secreto” o que parece sobreviver à morte é a memória literária do personagem. Sua obra inconclusa espelhada no jogo de xadrez contrapõe “os inimigos”. Há para o leitor um impasse entre uma inimizade que atravessa as instâncias narrativas e caminha inevitavelmente para a morte e para o fim de todas as narrativas possíveis.
No drama inconcluso de Jaromir Hladík, os personagens que aparecem na primeira cena e morrem na segunda reaparecem na terceira. Um homem que já havia sido morto na primeira cena retorna na terceira e assim, infinitamente. O cenário final é o mesmo em que se começou a peça: o relógio marca as mesmas sete horas, o sol se reflete nos cristais e o ar traz de novo uma apaixonada música húngara. A repetição anula o desenvolvimento da narrativa e demonstra, como queria Hladík, que o tempo é uma falácia17 .
Se o tempo é uma falácia à disposição do argumento, na narrativa esse tempo só pode se dar através de uma vindicação da eternidade, um tempo sem futuro e sem passado. Por isso, a exatidão na referência ao tempo e ao espaço no princípio do conto estabelece conexões entre Borges, Kafka e outros tantos escritores que permeiam o universo, que, tal qual uma biblioteca, é infinito e especular.
Ligam-se, portanto, os livros escritos por Hladík ao projeto borgiano de solapar, através da narrativa, a transcendência do “milagre secreto”. A tragédia inconclusa Os inimigos, a Vindicação da Eternidade e uma análise das fontes judaicas indiretas de Jakob Boehme constituem provas inquestionáveis do exercício intelectual judaizante de Hladík.
Além disso, seu sobrenome materno era judaico, seu sangue era judeu, ele havia assinado um protesto contra a anexação da Áustria à Alemanha, conseguida por Hitler em 1938 e desfeita em 1945, após o término dali Guerra Mundial. Hladík traduziu o Sepher Yezirah – o livro judaico da criação. Enfim, Jaromir Hladík é um homem marcado para morrer. E ele morrerá mil mortes antes que o tiro fatal o atinja. A estrutura desse e de outros relatos de Borges cria, sob a forma de inclusão, reflexão ou bifurcação, a repetição, que é cíclica e impiedosa, mas que no instante fugaz de sua manifestação se apresenta como uma possibilidade.
A identidade judaica de Hladík é denunciada e Julius Rothe o condena à morte. Não existe, segundo a narrativa, homem que fora de sua especialidade não seja crédulo. Assim, ao folhear um catálogo da editora que publicara o livro judaico traduzido por Hladík, Rothe reafirma a culpa e a identidade do personagem. O efusivo catálogo exagerou comercialmente o renome do tradutor e ele, ironicamente, é condenado como judaizante.
A tarefa de tradutor, seu nome e suas preocupações em relação ao texto judaico o conduzem à morte. No entanto, esse mesmo texto judaico dará a ele a possibilidade de burlar a morte, mesmo que imaginariamente.
A obra inconclusa será aberta eternamente, mas o seu criador se contentará com o tempo que remonta às Escrituras para circunscrever e enganar a morte. O tema do milagre urdido secretamente no conto de Borges remete ao episódio da doença do rei de Judá, Ezequias, filho de Acaz, e sua cura milagrosa. Ele tinha 25 anos quando começou a reinar e reinou por 29 anos em Jerusalém. De acordo com a narrativa bíblica, foi vitorioso nas batalhas e em todos os empreendimentos obtinha êxito18 .
O Livro de Reis afirma que Ezequias guardava os antigos mandamentos de Moisés, sob esses mandamentos reinava sobre Judá e vencia poderosos inimigos. Além disso, Ezequias fez construir o açude e o aqueduto que levava água para dentro de Jerusalém. Esse empreendimento, em caso de guerra, era fundamental à sobrevivência. Então, ele adoece. Uma úlcera mortal lhe aflige o corpo. Isaías, o profeta, entrega-lhe a dolorosa mensagem de que Deus ordenara que ele colocasse em ordem a sua casa porque morreria. O rei, no entanto, era obstinado e cria nas promessas que tanto prezava. Orou, pois, e pediu a cura para a úlcera. Antes mesmo que o profeta saísse da parte central da cidade, lhe é ordenado que voltasse e profetizasse a cura do rei, porque Deus lhe havia ouvido as preces e visto as suas lágrimas.
Ao rei é ordenado, então, que vá à casa do Senhor para dar graças tanto pelos 15 anos que seriam acrescentados à sua vida, quanto pela vitória sobre os assírios que lhe seria concedida. Ezequias pede ao profeta um sinal de que tudo isso se cumpriria. Este responde ao rei que a sombra do relógio podia adiantar ou atrasar. Ezequias escolhe que o sinal seja que a sombra do relógio se atrase: “Então o profeta Isaías clamou ao Senhor; e fez retroceder dez graus a sombra lançada pelo sol declinante no relógio de Acaz”19 .
O apego e a fé na tradição dos pais – a observação dos mandamentos de Moisés – garantem ao rei a sobrevivência diante da morte. O tempo, marcado pelo relógio de sol construído pelo pai, retrocede e lhe confirma o milagre da cura e do adiamento da morte. A casa de Ezequias necessitava ser posta em ordem. Deus lhe concede esse tempo para o trabalho, para a tarefa de terminar os empreendimentos iniciados.
Em Borges, no entanto, o milagre secreto não é apenas o apego à tradição dos pais, mas uma especulação sobre a possibilidade de se deter o tempo petrificado e introduzir nele um outro tempo, o tempo fluido da memória, da atualização da tradição. Não para terminar materialmente a peça inacabada, mas para construir uma espécie de fantasmagoria ou desejo de viver e trabalhar os vestígios da memória. O tempo concedido ao escritor judeu é, portanto, o tempo da memória. Memória da leitura dos livros, não só a do seu livro especificamente, a peça Os inimigos – que como uma caixa chinesa ou o jogo de xadrez duplica ao infinito as possibilidades de sobrevivência à morte pela lembrança – mas também de outros tantos textos que se urdem no tempo possível da ficção.
O milagre secreto em Borges parece ser, então, não um milagre de Deus, do Deus que prolonga o tempo de Ezequias, mas o milagre da memória que mantém precariamente vivas as narrativas do mundo. Nesse sentido, a memória – com suas perdas irreparáveis e os seus vestígios passíveis de serem narrados – é o triunfo do escritor nesse tempo de morte, é trabalho do homem e para o homem.
A literatura poderia, assim, ser vista como um trabalho sempre inconcluso que não se manteria por milagres secretos, letras perdidas entre as páginas de uma biblioteca, um arquivo morto que parece só poder levar a ensaios equivocados sobre a cegueira, mas no sutil e fugaz momento em que a memória permite acessar resíduos e pegadas de textos passados e revitalizá-los no presente.
O último suspiro do carrasco
Como uma espécie de narrativa especular, o conto “Deutsches Requiem” reelabora o tema da morte e da escrita a partir de um ponto de vista, no mínimo, inusitado. Contrapondo-se à voz do personagem judeu Jaromir Hladík, do conto “O milagre secreto’’, a voz narrativa desse outro conto é de Otto Dietrich zur Linde – um torturador nazista – que, na noite que precede a sua execução, rememora sua vida e sua luta pela construção do Terceiro Reich comparando-as à construção da Alemanha e ao futuro do mundo.
Como responsável por um campo de concentração, coube-lhe a tortura e o testemunho do suicídio de um poeta judeu chamado, emblematicamente, David Jerusalém, a quem, segundo afirma, admirava profundamente. Esperando a morte sem nenhum temor ou remorso dos atos praticados, Otto Dietrich zur Linde acredita que o nazismo impôs uma nova ordem ao mundo e, a partir dessa condição, um novo homem foi produzido graças às suas ideias e atuações. O seu destino é visto por ele como heroico. Ele concebe o nazismo como uma missão e, dessa forma, pode morrer serenamente porque está convicto de que a ordem sonhada pelo nazisocialismo triunfou.
O título é uma explícita referência a Ein Deutsches Requiem, (O Réquiem Alemão, 1868) de Johannes Brahms. O vocábulo latino “réquiem” diz respeito à parte do ofício dos mortos, na liturgia católica, que principia com as palavras latinas requiem aeternam dona eis, ou seja “dai-lhes o repouso eterno”. A palavra também se refere à música executada nesse ofício. Nessa concepção, o réquiem é uma oração pela paz dos mortos que esperam angustiados a terrível ameaça do juízo final.
O Réquiem Alemão se dirige aos vivos para convencê-los de que o fim da existência terrestre não deve ser temido, já que traz consigo a paz e a libertação definitiva de todos os males e preocupações mundanas. Trata-se de um canto de felicidade e de serenidade absolutas. As trombetas do Juízo estão despojadas de todo horror apocalíptico, e integradas como um signo feliz e glorioso de uma vida nova20 .
Os versos do réquiem de Brahms foram retirados da Bíblia. São versos do livro do Profeta Oséias, capítulo 13, verso 14: “Tragada foi a morte na vitória. Onde está, ó morte, o teu aguilhão? Onde está, ó inferno, a tua vitória?”21
A composição de Brahms é o primeiro ofício dos mortos escrito em língua alemã, mas não se trata da tradução literal do serviço fúnebre tradicional da Igreja Católica. Brahms escolheu e recortou os textos entre os versos da tradução da Bíblia de Lutero. Os textos provêm do chamado Antigo Testamento (Oséias 13: 14) e do Novo também (I Co. 15:55), incluindo referências do Livro da Revelação ou Apocalipse (Ap. 14:13). Numa espécie de mosaico, o réquiem de Brahms reitera a fé como meio de sobrevivência e de redenção universal.
A universalidade dessa composição assume, certamente, em Borges uma reflexão ainda maior. O mistério da morte tal como ela se apresenta através da ficção, é condição de todos os homens. Nesse sentido, as humilhações, os fracassos ou a morte de Otto zur Linden, ou dos nazistas, por extensão, não é a morte de todos os alemães, assim como a sua imaginada vitória não pertence a ideia do nazismo, mas também, de forma assustadora, ao poeta David Jerusalem.
A ironia da narrativa borgiana está presente na epígrafe retirada do Livro de Jó, Capítulo 13, verso 15: “Ainda que me tire a vida, nele confiarei”. Nesse capítulo do famoso livro, o fiel Jó é arrasado por intrigas diante de Deus, que permite ao inimigo tocar na carne, flagelando-o com doenças, matando-lhe os filhos, e nos bens do sincero e temente Jó. Nesse trecho, Jó declara sua confiança em Deus: “Ainda que Ele me mate, n’Ele esperarei; contudo, os meus caminhos defenderei diante d’Ele. Também isso será a minha salvação porque o ímpio não virá perante Ele. Ouvi com atenção as minhas razões, e com os vossos ouvidos a minha demonstração. Eis que já tenho ordenado a minha causa, e sei que serei achado justo”22 .
Tal como Jó, Otto Dietrich julga-se justificado. Não conhece nem a esperança nem a angústia e vive o presente. Afirma o narrador que esperava ser um soldado de uma guerra inexorável e, no entanto, ferido por duas balas quando passava por trás de uma sinagoga, amputaram-lhe as pernas: tudo, naqueles anos, era diferente, afirma, inclusive o sabor do sonho. Eu nunca fui plenamente feliz, acrescenta, mas é sabido que a infelicidade requer paraísos perdidos23 .
A liturgia católica, a música de Brahms e os textos bíblicos juntamente com a história factual e a filosofia são reelaborados por Borges e esse discurso da tradição ocidental, da morte e da finitude é reencenado por indivíduos que são atravessados pela memória de todos esses textos. O personagem Otto Dietrich é civilizado, culto, artista, e sua fé no nazismo o justifica. Borges percebe que admirar a música, a filosofia e a arte e ser um torturador e assassino é um projeto estético nazista e não uma contradição.
Susan Sontag em “Fascinante Fascismo” adverte que, embora comumente se pense que o nacional-socialismo represente somente a brutalidade e o terror, isso não é bem verdade. O nacional-socialismo e o fascismo representam um ideal, ou ideais que persistem até hoje, em maior ou menor grau sob outros rótulos. O ideal de vida como arte, o culto à beleza, o fetichismo da coragem, a dissolução da alienação em sentimentos extáticos de comunidade, o repúdio ao intelecto, a concepção de uma família do homem (sob a paternidade de líderes) são ideais que sobrevivem e comovem muitas pessoas24 .
O “novo homem” do conto de Borges é engendrado, segundo o narrador, por um fato moral, um despojar-se do velho homem, que está viciado, para vestir o novo que é tentado, em um torpe calabouço, por antigas ternuras da piedade. O novo, sem afeto nem compaixão, é a manutenção da ordem até a morte, a qualquer preço e a configuração de uma estética que Borges, de uma certa forma, anteviu.
Nesse sentido, a narrativa de Borges é denunciadora. Ela evidencia a desumanização do homem e a sua consequente transformação em autômato que se autojustifica. Daí a busca em muitos dos seus textos, como nesse, das raízes da violência. Não obstante, Borges não se detém na descrição pormenorizada, não faz catálogo nem inventário da inscrição do sofrimento no corpo do indivíduo; ao contrário, reserva a referência do domínio da violência ao silêncio ou ao território estético.
A tortura à qual é submetido o poeta David Jerusalem não passa de um gesto. A relação de Otto Dietrich com o escritor judeu é pautada pela luta contra a compaixão que seria, nesse contexto, o único elo possível entre os seres vivos e, para o torturador, retorno a um passado selvagem. Dessa forma, o discurso do torturador nazista é contraposto, em discrepância, com a sua simpatia pelo escritor judeu e o afastar de si a piedade, que seria, para ele, a mácula que deveria ser esquecida pelo novo homem:
Era este um homem de cinquenta anos. Pobre de bens deste mundo, perseguido, negado, vituperado, havia consagrado seu gênio a cantar a felicidade. Acredito recordar que Albert Soergel, na obra Dichtung der Zeit, o equipara com Whitman. A comparação não é feliz; Whitman celebra o universo de um modo prévio, geral, quase indiferente; Jerusalem alegra-se de cada coisa, com minucioso amor. Jamais emprega enumerações, catálogos. Ainda posso repetir muitos hexâmetros daquele profundo poema que se intitula Tse Yang, pintor de tigres, que está como que raiado de tigres, que está como carregado e atravessado de tigres transversais e silenciosos25 .
David Jerusalem conseguiu em seus textos a captação de uma ordem múltipla, o infinito em cada individualidade metaforizada pelos tigres transversais e silenciosos, elementos que, no campo do imaginário, como a escrita, atravessam a ordem. Assim, no discurso do seu algoz, David Jerusalem não é referência a um indivíduo, mas a todos os homens vitimados pela violência. Ao simbolizar todos os homens num único homem, vítimas e algozes de si mesmos, sua voz não é unívoca, mas plural. A tortura infligida por Otto Dietrich a David Jerusalem – um ponto cego no texto que omite sua descrição e penúria – transparece no desejo de civilização e na violência. O escritor judeu enlouquece e, nesse território do desespero, suicida-se.
Suicidando-se, o escritor judeu impôs sua vontade e se liberou da tortura, a partir disso, acabou por se inscrever no discurso e na memória do seu carrasco. Otto Dietrich pensa que o suicídio de Jerusalem representa o triunfo do nazismo, mas a morte, nesse círculo infinito e insondável, a pirueta final, o suicídio da vítima que desse modo se vê livre da tortura, é uma vitória, sob o ponto de vista da vontade, mas, no reino solitário da loucura, em que o personagem vislumbrou o único ato de autonomia, emerge, paradoxal, a liberdade na morte.
O testemunho da morte do escritor judeu transmigra, ironicamente, para a narrativa do seu torturador e ali se inscreve como uma força subliminar, silenciosa. O réquiem construído por Borges arma textos, dilui fronteiras, rearranja acervos inusitados e, sob os auspícios da literatura, deixa confluir citações, nomes falsos, arquivos nefastos e registros da memória.