Individual dactiloscópica: Bruno Wiczer, a trajetória de um imigrante
Durante os três anos em que me dediquei à pesquisa relativa a atuação do Embaixador Luiz Martins de Souza Dantas na Europa durante a II Guerra Mundial, tive a oportunidade de recolher uma vasta documentação específica sobre a entrada de estrangeiros no Brasil durante o Estado Novo, época de rígido controle dos residentes alienígenas – termo corrente na época – temporários e permanentes2.
Especialmente a documentação relativa aos estrangeiros que entraram no Brasil nesse período, em centenas de casos, foi convertida em extensos prontuários. Se por um lado, tais papéis registram para a posteridade a desconfiança das autoridades para com certos grupos de estrangeiros – além da opressão – e as demoradas tramitações burocráticas daqueles que, em algum momento, optaram por viver ou apenas se refugiar no país; por outro, se converteram em registro e fonte única de apuração das origens e trajetórias de vida de milhares de pessoas.
Por uma série de fatores culturais, a maioria dos brasileiros (incluem-se aí também as gerações descendentes de imigrantes), salvo raras exceções, não possui exatamente a tradição de registrar as suas mais remotas origens e demais histórias familiares. Essas acabam resguardadas na frágil história oral, quando não são perdidas por completo.
Em se tratando de experiências traumáticas, tive a oportunidade de me deparar com diversos casos em que o imigrante refugiado das perseguições antijudaicas europeias – em especial, do nazismo –, uma vez chegado ao Brasil, propositadamente, tratou de contar a respeito do seu passado de forma seletiva aos seus descendentes diretos3.
Isso se deu pelos mais diferentes motivos. Entre outros, em razão do trauma, pela ideia de não mencionar lembranças desagradáveis; pela lógica de “apagar o passado” e reconstruir uma nova vida ou até assumir nova identidade ou religião; ou ainda, pela simples crença de que tais experiências em nada contribuiriam para a felicidade dos filhos e netos, quando por aqui constituíam família. Muitos preferiram não contar as histórias de terror que protagonizaram àqueles sob a sua proteção.
Providenciei a microfilmagem de centenas desses prontuários, visando não só a pesquisa daquele momento, mas também um estudo micro e macroscópico relacionado ao tema da entrada de estrangeiros durante o Estado Novo. Dessa forma, em muitos casos, encaminhava o pedido de cópia da documentação após uma leitura superficial de cada processo, com a intenção de uma análise mais atenta em um momento posterior. Tal procedimento fez com que a leitura e o estudo mais completo da documentação existente em meu próprio arquivo particular revelassem, em muitas oportunidades, absolutas “surpresas”. Relatos extraídos não dos próprios refugiados, mas sim da documentação oficial, que, por mais estranho que possa parecer ao estudioso não habituado ao exame desse tipo de fonte, em muitos casos revelam registros impressionantes e de todo não anotados pela história.
O tema do presente artigo trata exatamente de uma dessas “surpresas”. Em uma das muitas madrugadas de trabalho no ano 2000, li o prontuário do Serviço de Vistos do MJNI (Ministério da Justiça e Negócios Interiores) de número 234/43, relativo ao refugiado Bruno Wiczer. Impressionou-me de tal forma a trágica vida daquele jovem austríaco – a documentação data do início da década de 1940 – que não pude mais dormir aquela noite, imaginando que fim teria tido o refugiado que havia passado por tantos episódios traumáticos em sua vida. Imaginava que Wiczer se teria suicidado ainda nos anos 40.
Com o nascer do sol e o adiantado da manhã, tratei naquele mesmo dia de buscar localizar alguma informação que pudesse complementar a documentação para esclarecer que fim teria tido aquele protagonista de tantos sofrimentos. E pude descobrir.
As informações que descrevo a seguir obedecem a trajetória de vida de Wiczer, de forma a buscar induzir o leitor às mesmas dúvidas, surpresas e reflexões que tive.
Bruno Wiczer nasceu no dia 12 de julho de 1917, em Viena, Áustria. Filho de Elkan (Elkuna) Wiczer e Toni (Antônia) Wiczer – nascida Grun (ou Gruen)4. Seus documentos informam que ele tinha “cor branca, cabelos e olhos castanhos”. E que a sua profissão era a de alfaiate, embora em outros registros também apareçam as de técnico tecelão, contramestre e, ainda, representante de confecções da empresa Sporting L. Lukes.
Para chegar ao Brasil, teve o passaporte visado pelo consulado em Zurique, Suíça, em 28 de fevereiro de 1939. O visto n.° 76 foi assinado “J. Fabrino”, forma com a qual o cônsul José Fabrino de Oliveira Bayão, desde 13 abril de 1935 naquele posto, assinava os vistos que concedia. Ao escrever no passaporte de Wiczer que o visto obedecia ao artigo 25, letra A, do Decreto 3.010, de 20 de agosto de 1938, Fabrino deixava claro às autoridades brasileiras que aquele estrangeiro entraria no país em caráter “temporário”. Dessa forma, poderia ficar por seis meses no Brasil.
Em abril de 1939, Wiczer se dirigiu ao porto francês de Marselha e embarcou para o Brasil a bordo do navio Alsina, o mesmo que ficaria retido pelas autoridades militares responsáveis pelo bloqueio inglês, com carga e centenas de passageiros, por cinco longos meses no porto de Dakar, norte da África, no primeiro semestre de 1941 5.
No dia 21 de abril de 1939, Bruno Wiczer chegou ao Rio de Janeiro. No mesmo dia, obedecendo às normas vigentes, os burocratas do MJNI iniciavam o prontuário do estrangeiro recém-chegado. Foi nesse período que Wiczer providenciou a sua carteira de estrangeiro, a de número “8.704”.
Da mesma forma que outros milhares de refugiados, Wiczer obteve um visto temporário, unicamente pelo fato desse tipo de visto, até então, poder ser obtido com maior facilidade do que o permanente. Sua intenção, como comprovaremos adiante, não era a de regressar imediatamente à Europa. Assim, em 31 de maio de 1939, requereu a transformação do seu caráter de permanência de “temporário” para “permanente”.
O pedido seguiu os trâmites burocráticos. No dia 3 de julho de 1939, Ociola Martinelli, que fora pouco antes nomeado como delegado de estrangeiros da Capital, oficiou ao então secretário geral do MRE, Cyro de Freitas Valle, consulta sobre a existência de “quota” para a nacionalidade alemã.
Por meio da observação de centenas de prontuários e demais correspondências assinadas por Martinelli, posso afirmar, sem margem de dúvida, que o homem nomeado para assumir a recém criada delegacia de estrangeiros possuía convicções antissemitas. Alguns de seus procedimentos nessa época, especialmente os relacionados à expulsão de refugiados, revelam uma crueldade que tem poucos paralelos entre os burocratas estado-novistas. A conduta judeófoba do diplomata Cyro de Freitas Valle foi amplamente registrada pela historiografia que se debruçou sobre o assunto6.
A nacionalidade de Wiczer foi apontada como sendo alemã pelo fato de a Áustria, naquele momento, ter sido anexada à Alemanha, por mais que Wiczer seguisse afirmando e se apresentando como austríaco.
A “quota” a que fez referência Martinelli obedecia aos percentuais de absorção de imigrantes permitidos pelo governo. Esses percentuais, surgidos a partir da Constituição de 1934, naquele momento eram controlados pelo CIC (Conselho de Imigração e Colonização), a quem competia o aumento das quotas, entre outras atribuições.
Entretanto, o encaminhamento do pedido de Martinelli tinha como razão principal sua má vontade em relação ao que era solicitado. Obedecia aos sempre recorrentes fins protelatórios. Dirigir o assunto a Freitas Valle, que o enviaria ao CIC, era certeza de obter uma negativa em relação ao assunto, em razão do proponente não ser “ariano”, termo largamente utilizado na época. Outros cidadãos alemães, comprovadamente “arianos”, não sofriam com os mesmos percalços burocráticos em suas tentativas de transformar seus “status” de permanência.
Durante o ano de 1938, o MJNI tratou de regularizar a permanência de todos os estrangeiros que ingressaram legal ou ilegalmente no Brasil. Mesmo daqueles chegados portando visto de turista e que haviam estendido a permanência de forma irregular. Se não possuíssem registros policiais, recebiam parecer positivo da “Comissão de Permanência de Estrangeiros”, criada naquele mesmo ano. A ideia do governo era a de legalizar e fichar todos os estrangeiros, para melhor controlá-los e tratar de expulsar os que fossem criminosos (crimes políticos ou comuns). O projeto da burocracia consistia em, a partir dessa organização, não mais permitir a estratégia, tão recorrente por parte dos refugiados, diante da dificuldade de obtenção do visto permanente, de entrar no Brasil como turista e mudar essa condição já em terras tropicais. Estratégia essa, justamente, a ainda utilizada por Wiczer. Nos anos seguintes, o governo tratou de restringir ao máximo a emissão de vistos temporários aos judeus ainda em território europeu7.
Wiczer tivera sorte em conseguir entrada em território brasileiro, mas o processo de fechamento a novos refugiados, assim como o controle e expulsão desses indesejáveis, já estava sendo incrementado desde meados de 1937, cada vez com maior rigor. O conflito na Europa e a recusa das representações diplomáticas estrangeiras em emitir títulos de viagens ou autorização de regresso aos países de origem para os seus nacionais de ascendência judaica – especialmente romenos, russos, húngaros e alemães – fez com que essas expulsões não pudessem ser viabilizadas8.
Em 25 de outubro de 1939, atendendo a nova solicitação de Wiczer, Martinelli oficiou pedido de transformação de visto, dessa vez ao ministro do MJNI, Francisco Campos. Era uma época na qual os departamentos e ministérios se acusavam mutuamente pelo que apontavam como entrada excessiva de refugiados judeus, e a decisão sobre o tema da permanência e entrada no Brasil se tornava objeto de disputa política intensa entre diversos ministérios9.
Em 3 de janeiro de 1940, o pedido de Wiczer foi indeferido pelo DNI (Departamento Nacional de Imigração), pois, segundo anotou o diretor Dulphe Pinheiro Machado, “falta a individual dactiloscópica e o interessado não justificou o pedido de permanência, na forma da lei”.
Machado, que durante o Estado Novo ocupou interinamente o MTIC (Ministério do Trabalho Indústria e Comércio) e, por muito tempo, foi membro do CIC, também estava inserido no grupo do qual fazem parte Labieno Salgado dos Santos, Ernani Reis e os demais judeófobos já aqui mencionados. Da mesma forma que os outros, tratou de impedir a regularização da permanência de Wiczer, por julgá-lo indesejável.
O parecer de Machado foi encaminhado à Comissão de Permanência de Estrangeiros e ao MJNI. Em 4 de março de 1940, o pedido de Wiczer foi indeferido, dessa vez com uma rubrica de Francisco Campos. Como se pode notar, nesse período, os mais importantes membros do governo tratavam pessoalmente ou estavam envolvidos com os pedidos individuais de cada um dos estrangeiros que desejavam permanecer no Brasil. O controle dos que tentavam entrar no país tinha uma atenção ainda maior. O tema da entrada e permanência dos refugiados no Brasil passava a ser uma questão de máxima importância.
Wiczer insistia. Em 28 de outubro de 1941, em um momento histórico no qual tampouco o governo alemão – que desde 1935 já relegara a uma condição inferior de nacionalidade os apontados como judeus – conferia aos israelitas nenhum tipo de reconhecimento em relação a sua nacionalidade ou cidadania alemã, Wiczer novamente solicitou ao governo brasileiro sua permanência a “título precário”. Uma vez mais, seu processo não foi concluído em virtude de não ter atendido todas as exigências.
Era uma época difícil para Wiczer. Antes de chegar ao Rio de Janeiro, esteve internado por um período no Campo de Concentração de Dachau, próximo à cidade de Munique.
Nos primeiros meses no Brasil, teve que se submeter a uma operação – seria a terceira, desde que saiu de Dachau – e tinha a saúde debilitada. Não pude apurar exatamente a forma ou as origens de seus ferimentos. Ele afirmou que adoecera em decorrência de sequelas de seu período de internação.
Em 1941, seus tios e primos, no total de 40 pessoas, ainda na Europa e buscando uma fuga desesperada, embarcaram a bordo do navio “Struma”. A viagem desse navio, entre a Romênia e a Palestina, ficou famosa em decorrência de seu trágico fim. Impedidos de chegar ao seu destino pelo bloqueio inglês, todos os 769 passageiros acabaram mortos, pois o navio foi “torpedeado por um submarino alemão nas águas do mar Negro”10 .
Em 1° de julho de 1942, o pai dele, Elkan Wiczer, que fora “cônsul Geral da Áustria e do Paraguai em Bucarest”, foi executado em Paris pelas tropas nazistas. Completando essa tragédia pessoal, no dia 19 de setembro de 1942, a mãe de Wiczer morreu em Londres, vítima do bombardeio alemão sobre a capital inglesa.
Em 19 de outubro de 1942, Wilson Lima, diretor do DNI (Departamento Nacional de Imigração), solicitou que se providenciasse a “individual dactiloscópica”, forma corrente de identificação individual, já arguida pela burocracia anteriormente. Em 31 de outubro de 1942, o DNI remeteu o passaporte de Wiczer com o indeferimento e o pedido da “individual dactiloscópica”.
No dia 2 de dezembro de 1942, os funcionários do DNI informavam que o estrangeiro, mesmo “chamado por memorandum”, não havia comparecido àquele serviço. Cinco dias depois, o chefe do serviço da delegacia de estrangeiros, Climério Belo, encaminhou ao delegado Theobaldo Neumann um ofício sugerindo que a “individual datiloscópica” de Wiczer poderia ser obtida por meio de uma cópia fotostática da que ele havia deixado registrada no Instituto Felix Pacheco.
E dessa forma procederam. Em 7 de janeiro de 1943, o diretor do Instituto Felix Pacheco, Cláudio de Mendonça, encaminhou a cópia solicitada. A polícia da Capital estava preocupada e fazia questão que Wiczer “tocasse piano”11. Sem sucesso, copiou o registro de outro instituto, onde o estrangeiro havia realizado tal procedimento na época em que emitiu a sua carteira de residente temporário, anos antes, logo que chegou ao Brasil.
Em 4 de março de 1943, o policial Climério Belo pediu ao então delegado de estrangeiros Theobaldo Neumann que encaminhasse ao MJNI as cópias datiloscópicas. Semanas depois, no dia 29 de março, Wiczer, então com 26 anos, dirigiu ao MJNI seu pedido datilografado de duas páginas. Era uma solicitação de licença ao Ministro para ir à Argentina. Residente na rua Cândido Mendes n.° 32, no bairro da Glória, na então Capital Federal, informou que
(...) sua existência no Brasil teria corrido normal e feliz, não fora a operação a que houve de submeter-se devido aos maus tratos recebidos no campo de concentração de Dachau, próximo a Munich, para onde o levaram as tropas nazistas de ocupação em virtude de ter sido o requerente segundo-tenente do exército da Áustria. (...)
E a seguir, tratou de resumidamente historiar a sua breve e trágica trajetória de vida anterior a sua chegada ao país. Relatou seus “desequilíbrios de ordem material” e também “outros fatores morais que vieram perturbar-lhe o rumo de sua vida”.
Wiczer informou ao Ministro que naquele momento sabia “apenas da existência de uns parentes residentes em Buenos Aires, para onde deseja seguir a fim de trabalhar como técnico de indústrias têxteis em que se especializou em Viena, na sua mocidade.” E para tanto, solicitou um visto de saída do país, “uma vez que deseja conviver com os poucos elementos de sua família tragicamente reduzida e infelicitada.”
Ressaltou que não desejava se retirar do Brasil, “país onde viveu os sentimentos de humanidade que não mais existem nas latitudes guerreiras”. Entretanto, como já não podia mais “prestar serviços à Nação” e tampouco, naquele momento, dispunha dos “meios capazes de garantir-lhe a subsistência”, nada podendo oferecer ao país como gratidão “inscreveu-se como doador de sangue aos soldados brasileiros”, já havendo doado 500 gramas. Informou também que havia ofertado à Embaixada francesa “seus trabalhos militares”, mas que diante do colapso que sobreveio àquele país, transferiu a oferta à Embaixada inglesa.
Concluiu o pedido dizendo confiar no “elevado espírito de generosidade de Vossa Excelência e na tolerância das leis brasileiras” no sentido de obter o visto de saída, “para cumprir o seu destino na esperança de conviver e trabalhar com os derradeiros parentes que ainda sobrevivem na Argentina.”
Nos primeiros dias de maio de 1943, Ernani Reis – secretário do Ministro do MJNI e membro da Comissão de Permanência de Estrangeiros e do CIC – fez uma consulta à Delegacia de Estrangeiros, em caráter de urgência, a respeito de Wiczer. A resposta com o histórico seguiu em 3 de maio. No dia 27 de maio de 1943, Theobaldo Neumann comunicou a Ernani Reis, que “Bruno Wiczer estava sujeito a multa e prisão, por ter infringido a lei”, embora aquela delegacia não registrasse antecedentes criminais dele. A multa e a prisão tinham relação a diversos crimes: a sua permanência no país por período superior ao permitido, a não apresentação ou resposta às intimações, ao seu não registro de endereço à polícia, entre outros. Naquele momento eram implementadas regras ainda mais rígidas aos estrangeiros, especialmente aos “súditos do Eixo”. Os refugiados judeus, originários de países como a Alemanha, a Áustria e a Romênia, que já não eram mais reconhecidos formalmente como cidadãos por esses países, eram considerados por parte das autoridades brasileiras como “súditos do Eixo”.
Em 2 de junho de 1943, Bruno Wiczer foi à polícia dar andamento ao seu pedido de “Permanência Precária”. No dia 14 de junho de 1943, Ernani Reis indeferiu o pedido de saída para a Argentina, pois Wiczer não comprovara a sua nacionalidade, e declarou que “somente os súditos do Eixo estão sujeitos à licença deste Ministério para ausentar-se do país” e propôs o arquivamento do processo. Como na maioria das vezes, o parecer de Reis foi acatado na íntegra pelo ministro do MJNI Marcondes Filho.
As informações do prontuário 234/43 do Serviço de Vistos terminavam nesse ponto. Com a notícia do falecimento de ambos os pais, do restante da família, com problemas de saúde, sem condições de manter-se, Wiczer ainda teve o seu pedido de saída do Brasil arquivado pelo MJNI.
Uma consulta à lista telefônica do Rio de Janeiro revelou somente um assinante com o sobrenome Wiczer, a senhora Nizia Lemos Lydia Wiczer. Na manhã seguinte à primeira leitura da documentação, telefonei-lhe perturbado e inseguro de se tratar de parente de Bruno. Não imaginava que ele teria vivido muito além da década de 1940. Em um rápido diálogo, constatei ser a viúva de Bruno Wiczer. Viúva de seu terceiro casamento. As informações que lhe forneci eram absolutamente novas. O marido sempre fora uma pessoa extremamente alegre, simpática e divertida. Contou-me que Wiczer se casou sempre com mulheres muito belas, sendo uma delas atriz, e que ela mesma, ao casar-se, contava 20 anos a menos que o marido. Falou-me sobre a existência de um único filho – Henrique Paulo –, do primeiro casamento de Wiczer, que vivia em São Paulo.
Wiczer sobreviveu e soube recomeçar a sua vida no Brasil, não deixando que suas trágicas experiências passadas o impedissem de buscar a felicidade.
Nas semanas seguintes, como o assunto permanecesse em meus pensamentos, tratei de apurar as demais informações relativas a Wiczer no Arquivo Nacional. Localizei outro prontuário, dessa vez o da SPMAF/RJ (Superintendência de Polícia Marítima e Aérea Federal do Rio de Janeiro) de n.° 8704, que revelou a continuação do fichamento de Wiczer nos anos seguintes, descrito a seguir.
Em 18 de junho de 1943, o MJNI oficiou a Alvim Belis de Souza, delegado de estrangeiros, para saber se Wiczer tinha “maus antecedentes, ou é suspeito”. No dia 29 de julho de 1943, o delegado Alvim Souza oficiou a Ernani Reis, informando que Wiczer havia fugido do Campo de Concentração até a Suíça, onde obtivera o visto, e que “ambos pais haviam sido fuzilados em Paris pelos alemães”. Disse que Wiczer se achava em péssima situação financeira, sendo auxiliado por um amigo chamado Helmut Huetbr (ou Huetter). Informou ainda que o estrangeiro tinha um atestado do “Austrian Action”, com sede na rua Almirante Alexandrino, onde constava como “adversário do atual regime alemão”.
Esse tipo de argumento e documentação não convencia nem sensibilizava Ernani Reis. Em 5 de agosto de 1943, em novo parecer, Reis redigiu novo histórico, informando que “as informações policiais são boas”, não escondendo algum sarcasmo. E escreveu que “a informação de que o suplicante fugiu de um campo de concentração na Alemanha não é corroborada pelo passaporte, que foi expedido em Colônia aos 26 de julho de 1938, e prorrogado em Zurique, aos 7 de fevereiro de 1939, pelo Consulado Alemão. Ora, é pouco provável que a polícia alemã tenha deixado de dar aviso de fuga aos consulados na Suíça.” E pediu novos esclarecimentos à polícia. E assim foi. Em 17 de agosto de 1943, oficiou-se ao Delegado de Estrangeiros.
A resposta foi dada em 14 de outubro de 1943 pelo novo delegado, Annibal Martins Alonso, depois de ordenar uma sindicância policial. Além dos dados já mencionados, esclareceu-se que Wiczer vivia “a expensas de amigos, em virtude de não poder exercer atividade remunerada” e que “o progenitor foi cônsul honorário da Áustria em Bucareste, e na França, de 1922 a 1926, tendo sido fuzilado em um Campo de Concentração em julho de 1942”.
Esclareceu o policial que em 14 de março de 1938, três dias depois da invasão da Áustria, Wiczer foi preso em Loben, pela Gestapo, sob acusação de “ser patriota, antinazista e judeu”. Sem julgamento, foi transferido para o Campo de Concentração de Dachau. Por interferência de sua mãe, e mediante o pagamento de 10.000 marcos, conseguiu ser internado em um sanatório, em Viena, a fim de ser submetido a uma cirurgia, necessária devido a graves ferimentos que tinha sido vítima. Após a cirurgia, foi levado para Colônia, na Alemanha, onde conseguiu do Chefe de polícia, um passaporte para ingressar na Suíça. Em Zurique, foi novamente operado. E logo depois embarcou para o Brasil. Essa, pelo menos, foi a história que Wiczer relatou ao policial Aurélio Mendes Lobão, em 7 de outubro de 1943.
Em novo parecer de Ernani Reis, datado de 22 de outubro de 1943, o burocrata redigiu uma vez mais o histórico do caso e comentou, com vaidade, a respeito de suas suspeitas relacionadas à versão dos fatos anteriormente apresentados sobre a fuga de Wiczer, sobre os quais havia suspeitado: “Vê-se que eu tinha razão quando duvidei da fuga propriamente dita”.
Como não dispunha de meios para providenciar a expulsão e tampouco país algum aceitaria receber o refugiado, Ernani Reis aprovou a permanência de Wiczer “a título precário”. Esse tipo de status havia sido regulado pela portaria 4.941 de 24 de julho de 1941. Diante da impossibilidade de expulsar de imediato os estrangeiros indesejáveis, o MJNI concedia uma permanência “a título precário” com a ideia de não conceder uma permanência de fato e, no eventual fim das hostilidades na Europa, quem sabe, despachar de volta aos países de origem os refugiados naquela condição temporária.
Em 23 de novembro de 1943, Wiczer finalmente ficava com sua documentação em ordem. No dia 3 de dezembro de 1943, a polícia comunicou o fato a Bruno Wiczer, que, no mesmo dia, retirou o seu passaporte no MJNI. Em 15 de dezembro de 1943, a polícia remeteu novas “individuais datiloscópicas” de Wiczer ao MJNI.
No dia 11 de janeiro de 1944, Wiczer pediu de volta a certidão de nascimento (emitida pela Comunidade Cultural Israelita de Viena), pois precisava para se casar, no que foi atendido. Dez dias depois, para provar seus dados, que não era casado, sua filiação etc., Wiczer pediu nova declaração ao Delegado de Estrangeiros. Em 25 de janeiro, o chefe de serviço, Hoonholtz Martins Ribeiro, encaminhou ao delegado de estrangeiros, Anibal Martins Alonso, o pedido, uma vez que essa delegacia era a que dispunha dos dados necessários em arquivo para atendê-lo.
Cumprindo a legislação, que exigia dos estrangeiros a devida autorização prévia, por parte das autoridades policiais, de qualquer mudança de domicílio, em 30 de dezembro de 1944, Wiczer já do Paraná, solicitou licença à delegacia de estrangeiros para se mudar para a cidade de Curitiba.
No dia 31 de janeiro de 1945, a polícia indeferiu o pedido ao perceber a infração: Wiczer mudara antes de pedir a licença. Tal ato determinaria uma longa troca de correspondência entre diversas autoridades de diferentes Estados brasileiros. Duas semanas depois, em 15 de fevereiro do mesmo ano, a delegacia de estrangeiros do Rio de Janeiro entrou em contato com a de Curitiba e comunicou o fato ao delegado Isaías de Aquino Soares, titular na capital.
O DOPS (Delegacia de Ordem Política e Social) do Paraná respondeu em 8 de março de 1945, comunicando que Wiczer partira no dia 2 do mesmo mês para São Paulo, sem autorização deles.
A delegacia do Rio de Janeiro oficiou o fato em 3 de abril de 1945 à delegacia de São Paulo. Em 22 de maio de 1945, Paulo Alfredo Silveira da Mota, delegado Especializado de Estrangeiros de São Paulo respondeu que Wiczer não havia comparecido ali e que nada sabia sobre ele.
O delegado de estrangeiros do Rio de Janeiro, Gilberto Paiva de Lacerda, emitiu um rádio para Curitiba em 27 de junho de 1945:
(...) Solicito vossa senhoria melhores esclarecimentos transferência residência estrangeiro Bruno Wiczer, visto serem negativas informações prestadas delegacia estrangeiros São Paulo (...).
Em 10 de julho recebeu resposta de Curitiba: Wiczer estava em Fortaleza, Ceará. Três meses depois, em 10 de outubro de 1945, o delegado do Rio de Janeiro, Gilberto Lacerda, telegrafou (ou o fez por meio do rádio) ao chefe do SRE (Serviço de Registro de Estrangeiros) de Fortaleza, Ceará:
“Solicito informar esta delegacia sobre se figura nesse serviço estrangeiro Bruno Wiczer, austríaco, segundo consta encontrasse nessa capital.”
Os cearenses responderam no mesmo dia que não havia registros e tampouco constava que Wiczer residia em Fortaleza. Aparentemente essa mensagem não foi recebida no Rio de Janeiro. Sem resposta, foi encaminhada nova tentativa ao Ceará em 3 de maio de 1946, reiterando o pedido anterior.
A resposta de Joaquim de Lima, chefe do SRE de Fortaleza, chegou em 10 de maio de 1946. Uma vez mais reiterava que não havia notícias ou registros de Wiczer em Fortaleza.
No dia 27 de maio de 1946, um funcionário do Departamento Federal de Segurança Pública oficiou ao seu chefe informando que estava tentando cobrar a multa de Wiczer pelo fato dele se mudar sem autorização, mas que:
(...) Até a presente data, este Serviço não consegui localizar o citado alienígena, visto que o mesmo transfere-se constantemente de um para outro Estado, sem dar, ao que parece, satisfação alguma às autoridades. (...)
Em 30 de maio de 1946, o chefe de serviço mandou oficiar aos Estados do Paraná, São Paulo e Ceará que comunicasse sobre a passagem de Wiczer, “para as medidas cabíveis”. Vendo que era inútil e de pouco bom senso manter a troca de correspondência sobre aquele caso, e já num prenúncio de que o controle sobre os estrangeiros efetuado pelo Estado já estava cambiando seus procedimentos, em reflexo das mudanças gerais da estrutura de governo, mandou arquivar o processo.
No dia 7 de junho de 1946, com a delegacia de estrangeiros já extinta, Dalmo G. de Oliveira, chefe de serviço do MJNI, oficiou a Walfrido Piloto, Chefe do SRE de Curitiba, conforme as ordens recebidas. Mesmo procedimento adotou em relação a Paulo Alfredo Silveira da Motta, Delegado Especializado de Estrangeiros de São Paulo, e a Joaquim Lima, no Ceará.
O processo foi encaminhado ao chefe da seção de arquivo em 11 de junho de 1946. Com o prontuário preste a ser encerrado, começaram a surgir dos Estados as respostas a comunicação sobre o arquivamento. No dia 19 de junho, São Paulo respondeu que não possuía registros de Wiczer. Em 11 de junho de 1946, um ofício do Ceará reafirmava que a polícia local desconhecia qualquer informação sobre Wiczer.
Entretanto, em 4 de julho de 1946, chegou ao Rio de Janeiro nova e diferente resposta de Curitiba. Informava que em 21 de fevereiro de 1945, já havia multado Wiczer e que, em 19 de junho de 1945, ele havia entrado com um pedido de permanência definitiva, mas que, depois disso, novamente desaparecera.
Não podendo contar com o depoimento pessoal de Wiczer, temos aqui um indício de que aconteceu com ele o que frequentemente se passava com muitos dos estrangeiros no Brasil, especialmente naquele período: eram alvos de extorsões por parte das autoridades policiais. Especificamente no caso dos refugiados, a ameaça de expulsão ou prisão, com a volta forçada à Europa, foi utilizada largamente por policiais inescrupulosos e desonestos, com o fim de achacar estrangeiros. Qual seria o motivo que levara as autoridades policiais de Curitiba a demorarem quase um ano e meio para comunicarem que a multa – razão de tanta correspondência interna da polícia – já havia sido aplicada?
No período entre julho de 1946 e dezembro de 1951, a documentação não nos revelou nada sobre a vida de Wiczer. O Estado Novo terminara. As estruturas policiais de controle aos estrangeiros foram sendo “desarmadas”, embora os condicionamentos psicológicos das autoridades não “desarmassem” de imediato certos procedimentos e posturas conduzidas ao longo de todo o período anterior, de pelo menos uma década de especial atenção e desconfiança em relação aos estrangeiros.
Já desquitado, em 7 de dezembro de 1951, Bruno Wiczer, apresentando-se como comerciante, solicitou a sua naturalização.
No dia 7 de março de 1952, o MJNI mandava o SRE de Curitiba cobrar de Wiczer as multas de 1946. Em 15 de abril de 1952, Paulo Brasil, do Departamento Federal de Segurança Pública, oficiou ao Chefe do SRE de Curitiba, acusando o recebimento da “individual dactiloscópica”, e comunicou que o naturalizando ainda figurava como permanente a título precário, “não tendo esse Serviço comunicação de que esteja ele com sua situação no Brasil devidamente legalizada”. Informou ainda que, desde maio de 1946, “esse Serviço procura localizar o referido advena {estrangeiro}, visto que, o mesmo está obrigado ao cumprimento das exigências (...) dada a sua situação irregular no país”. Concluiu solicitando ao Ministério que “seja este SRE informado da atual situação de legalidade do estrangeiro no território nacional”.
Em 1954, novamente morando no Rio de Janeiro, Wiczer conseguiu naturalizar-se brasileiro.
Somente em 2002, resolvi procurar o Sr. Henrique Paulo Wiczer para complementar o presente artigo. Não foi com surpresa que ouvi dele o mesmo relato concedido pela Senhora Nizia Wiczer. Embora os dados (nome dos pais, data de nascimento etc.) fossem coincidentes e ficasse mais do que comprovado tratar-se da mesma pessoa, o Sr. Henrique Paulo jamais escutara tais relatos de seu pai.
Bruno Wiczer faleceu em 1985 e jamais contou a nenhum de seus parentes nada sobre o seu passado na Europa. Tratou de reconstruir a sua vida fazendo com que se lembrassem dele sempre como um homem alegre e simpático. A polícia se preocupou tanto em obter e registrar a “individual dactiloscópica”, linhas e marcas da vida que Bruno Wiczer conseguiu ocultar, com sucesso, daqueles com quem conviveu e amou.
Bibliografia e Fontes
Documentais:
Prontuário do Serviço de Vistos do MJNI (Ministério da Justiça e Negócios Interiores) de número 234/43
SPMAF/RJ (Superintendência de Polícia Marítima, Aérea e de Fronteiras do Rio de Janeiro) de n.° 8704.
Depoimentos:
Henrique Paulo Acir Semelman Wiczer, por telefone, em 2002. – Nizia Lemos Lydia Wiczer, por telefone, em 2000.
Bibliografia (livros e periódicos):
KOIFMAN, Fábio. Quixote nas trevas: o embaixador Souza Dantas e os refugiados do nazismo. Rio de Janeiro: Record, 2002.
Revista Morashá, Edição 30. São Paulo, Setembro de 2000.
“A Notícia”. Santa Catarina, 6.5.2001.