As comunidades judaicas e o exercício da cidadania: do direito à vida, à liberdade e à segurança
O presente artigo se propõe a analisar o efetivo exercício da cidadania pela comunidade judaica brasileira, no que se refere aos direitos fundamentais assegurados aos cidadãos brasileiros pela Constituição Federal: o direito à vida, à liberdade e à segurança, direitos esses ameaçados pelo preconceito – compreendido como o sentimento de superioridade de um grupo sobre outro – e pela discriminação – compreendida como o ato gerado pelo sentimento de superioridade, ou seja, a concretização do preconceito.
Buscar-se-á analisar a qualidade e a efetividade das leis brasileiras de proteção aos cidadãos brasileiros, vítimas da discriminação, e principalmente avaliar de que forma os judeus brasileiros, enquanto cidadãos, têm exercido sua cidadania na defesa de seus direitos fundamentais, seja através de mecanismos jurídicos, seja através de mecanismos sociais, e que podem ser resumidos no simples direito do povo judeu de existir na sua individualidade. Mais do que respostas prontas, pretende-se fazer um convite a todos, um convite à reflexão sobre o comportamento dos indivíduos judeus, enquanto cidadãos brasileiros, de confissão religiosa judaica, e enquanto vítimas de preconceito e discriminação, ainda que velados na sociedade brasileira.
Há mais de uma década, o professor israelense Nathan Lerner, em palestra no Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), tratando das diversas formas de preconceito e discriminação, explicou a imensa dificuldade em se combater o preconceito velado, mascarado pela sociedade, como o que existe na sociedade brasileira, uma dificuldade muito maior do que combater o preconceito declarado e ostensivo, como por exemplo o manifestado através do “apartheid” na África do Sul.
As Constituições Brasileiras, desde a primeira constituição republicana de 1890, se preocuparam com o preconceito, daí a inserção desde aquela época do princípio da igualdade: “todos são iguais perante a lei”. Ao longo do tempo, os direitos fundamentais dos indivíduos, aqueles já preconizados na Declaração dos Direitos do Homem editada pelos revolucionários franceses, foram cada vez mais reafirmados textualmente ou formalmente nas constituições pátrias, embora na realidade as garantias de tais direitos oscilassem ao longo do tempo de acordo com o período histórico vivenciado, isto é, de acordo com o maior ou menor nível de democracia usufruído.
Nesse contexto, merece destaque a Constituição de 1946, uma das constituições brasileiras, formalmente, mais democráticas e que, editada no imediato pós-guerra, preocupou-se em garantir de forma minuciosa os direitos à liberdade de pensamento, crença e expressão, desde que não contrários aos bons costumes e a ordem democrática. A Constituição de 1988 veio complementar o trabalho da de 1946, elevando à égide constitucional a previsão do crime de racismo, até então visto como simples contravenção penal, ilícito de menor importância, determinando que a prática do racismo constitui-se em crime inafiançável e imprescritível.
Na verdade, o repúdio ao preconceito já figura logo nos princípios fundamentais da Constituição Federal Brasileira, editada em 1988, que dispõe em seu artigo 3°, inciso IV, que:
Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Em seguida, em seu artigo 5°, proclama a CF/88:
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
E complementa em seus incisos:
XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;
XLII – a prática do racismo, constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão nos termos da lei.
Complementando a disciplina constitucional, o legislador ordinário editou uma série de leis, visando coibir e punir a prática do racismo. Primeiramente tem-se a Lei 7716 de 5 de janeiro de 1989, que define em vários artigos os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Em 1990, editou-se a Lei 8081 prescrevendo a punição para a prática, indução e incitação ao racismo realizada através dos meios de comunicação. Em 1994 foi editada a Lei no. 8882, que aludindo claramente ao antissemitismo, prescreveu a punição a quem fabrica, comercializa, distribui ou veicula qualquer símbolo ou propaganda com a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo. Em 1997, foi editada a Lei 9459, definindo novos crimes resultantes do preconceito, prevendo a destruição do material de cunho racista apreendido, bem como incluindo no Código Penal uma agravante ao crime de injúria – a referência a elementos de raça, cor, etnia, religião ou origem.
Como proclama o caput do artigo 5° da CF, o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade são assegurados a todos os cidadãos brasileiros. Mas, ocasionalmente, verifica-se que tais direitos, no que se referem aos judeus, enquanto brasileiros, são maculados, através de ameaças e de atitudes flagrantemente antissemitas. O que ora se coloca em questão é não só a efetividade destas normas, ou seja, se elas tem sido capazes verdadeiramente de coibir e punir o antissemitismo, mas fundamentalmente como os judeus brasileiros têm atuado, no exercício de sua cidadania, para reivindicar a garantia de tais direitos, quando violados.
O paper que motivou este artigo foi elaborado há cerca de um ano. Naquele pequeno resumo narrou-se o que havia motivado a abordagem deste tema. No ano de 2001, causou surpresa a informação em jornais de grande circulação acerca do ressurgimento de grupos neonazistas no Brasil e no Exterior. Esta notícia causou imediatamente uma preocupação junto a toda a comunidade judaica. Que conduta tomar? E se os clubes judeus, a sinagoga, ou o cemitério fossem atacados? O quê fazer? A quem se dirigir? Alegando o quê? Mães começaram a ficar preocupadas com os filhos nas escolas, saindo à noite; enfim, o antissemitismo, que muitos achavam assunto do passado, se fazia muito presente, e muito próximo. Coincidentemente nesta época algumas instituições judaicas sofreram pichações e atos de suposto vandalismo. Logo as comunidades judaicas foram instruídas a se protegerem, através das conhecidas advertências: “tomem cuidado”, “não se exponham no lado de fora das instituições”. Essa situação causou um sentimento de revolta e impotência imensos, compartilhados por toda a comunidade judaica, já que não se podia fazer absolutamente nada para impedir que ideias antissemitas fossem propagadas, pois a imprensa não divulgava o local de reunião destes grupos, protegida pelo direito constitucional de liberdade de imprensa, que resguarda o sigilo da fonte, e porque tais grupos encontram-se, a princípio, também protegidos pelo direito constitucional de liberdade de expressão e pensamento. Ou seja, a única alternativa parecia ser assistir a tudo passivamente, até que algum dia, e espera-se que este dia nunca chegue, algum ativista mais ousado se dispusesse a cometer um ato antissemita contra alguma instituição ou indivíduo.
E aí se faz necessário colocar em relevo os seguintes incisos do artigo 5° da CF/88:
IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção dos locais de culto e a suas liturgias;
VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;
XIV – é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;
XVII – é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar;
Estes dispositivos, como se vê, consagram a liberdade de expressão, pensamento, crença, associação e a liberdade de imprensa, mas quanto à sua aplicabilidade prática detecta-se que ainda são poucos os casos de invocação da tutela jurisdicional por instituições ou membros da comunidade judaica, reivindicando a garantia de tais direitos. Tal inércia pode ser atribuída a vários fatores, desde a falta de credibilidade da comunidade judaica na ação desses grupos organizados, até a própria acomodação comunitária frente a uma “simples” ameaça, o que consiste num grave perigo.
A legislação brasileira antirracismo é eficaz quando o ato com que se depara possui um caráter inequívoco ou evidente de racismo, e quando os responsáveis por atos antissemitas praticados sem nenhum pudor assumem a autoria de tais atos. Deve-se ressaltar, porém, que em muitos casos, há uma resistência por parte das autoridades e muitas vezes, porque não dizer, por parte da própria comunidade judaica em aceitar que certos atos tenham cunho antissemita, preferindo-se enquadrá-los como atos de vandalismo. Não se deve ceder a tal ilusão. Neste momento, a comunidade judaica da França clama fortemente por ajuda; vítima de mais de 400 atos antissemitas desde setembro de 2000, aquela comunidade esbarra na resistência das autoridades francesas em aceitar o cunho antissemita dos ataques, preferindo acreditar que tais atos sejam obra de jovens vândalos. Recentemente, na Alemanha, os judeus de Berlim, face a dois ataques antissemitas ocorridos, foram “aconselhados” pela polícia local a esconderem sua identidade, não portarem solidéus ou quaisquer símbolos judaicos, como estrelas de David, e nem se exporem na parte exterior das sinagogas.
O grande obstáculo à eficácia das leis antirracismo brasileiras está nos casos em que o antissemitismo ou a propaganda antissemita é anônima, e clandestina, e principalmente quando não se viabiliza concretamente através de um ato atentatório das liberdades constitucionais, como a simples existência daqueles grupos citados pelo jornal mencionado. Poder-se-ia perguntar: como impedir a atuação destes grupos neonazistas ou antissemitas, se estes grupos também estão resguardados pelos mesmos direitos constitucionais que são assegurados à comunidade judaica. A doutrina jurídica opina de modo acertado que o direito de um grupo de se manifestar tem seus limites no direito dos outros indivíduos que compõem o grupo social, isto é, o direito de expressão e pensamento deve ser exercido com responsabilidade e não pode violar os direitos fundamentais de outros indivíduos.
Por outro lado, se cerceados ou suprimidos os direitos de expressão e pensamento de outros grupos, amanhã não poderia a própria comunidade judaica ter seus direitos atingidos, se vitimada por uma onda antissemita no Brasil? O documentário “Skokie”, que gira em torno da tentativa de realização de uma passeata neonazista numa pequena cidade americana em que 90% da população são judeus, vítimas ou descendentes de vítimas do Holocausto, retrata bem esse dilema por que passa um advogado judeu.
E o que fazer se esses grupos são clandestinos? Poder-se-ia pensar, também, numa restrição à liberdade de imprensa, através da quebra do sigilo da fonte, mas se tal fosse implementado, provavelmente nunca se saberia da existência de tais grupos, que se recusariam evidentemente a serem noticiados. Será, então, que essa restrição não seria mais prejudicial no que se refere ao combate ao antissemitismo?
No combate ao antissemitismo, dois caminhos se descortinam. Primeiramente, quando ameaçado concretamente ou vitimado por um ato antissemita, todo cidadão brasileiro judeu pode e deve recorrer ao Poder Judiciário para requerer que os seus direitos individuais e fundamentais sejam assegurados, seja individualmente, ou através das lideranças comunitárias, o que seria sem sombra de dúvida mais aconselhável, pela própria autoridade e amplitude que se alcançaria. Neste aspecto, há que se ressaltar a importância de lideranças comunitárias fortes e atuantes. E mais do que isso, sobre a importância da união de toda a comunidade judaica. Colocar as diferenças religiosas à parte, restringindo-as à matéria de respeitosa discussão interna e aprofundamento cultural, mais do que nunca, parece ser uma alternativa sábia, num mundo que sempre considerou e ainda considera o povo judeu em sua totalidade, simplesmente como judeus, sem diferenças, um dos únicos povos da Antiguidade que sobreviveu com suas crenças, cultura e tradição até os dias de hoje. A Torá faz de cada indivíduo judeu responsável por outro indivíduo judeu. Antigamente, quando um judeu era reduzido à escravidão a outro povo, era obrigação da comunidade resgatá-lo, pagando o preço devido. A História, além de tornar um judeu responsável pelo outro, fez de cada judeu, um representante de todo o povo judeu. Infelizmente, muitos só percebem isso nos graves momentos em que ameaçados em seu simples direito de existência. Por isso, urge que a comunidade judaica se conscientize da importância de sua atuação firme, seja individual ou coletiva, no que tange à invocação dos órgãos jurisdicionais brasileiros na defesa de seus direitos.
Além das medidas judiciais, que apesar de eficazes, não chegam a combater as causa do antissemitismo, um outro caminho destina-se a prevenir a propagação de ideias antissemitas, atingido a raiz do problema – a educação e a conscientização da população.
A maioria da população brasileira não tem acesso à educação, muitos não sabem ler nem escrever, são cidadãos formais sem cidadania real. Há uns dez anos atrás a Federação Israelita do Rio de Janeiro saiu às ruas fazendo uma pesquisa: perguntava-se a cada passante o que era um judeu? Naquela ocasião uma senhora bem humilde, respondeu, “...Ai, meu filho, é uma coisa tão ruim, que eu não quero nem dizer?”
As raízes do antissemitismo são muitas. Há que se ressaltar as raízes históricas do antissemitismo, determinantes de toda a argumentação psicológica, filosófica ou ideológica de cunho racista. Na verdade, o antissemitismo ou antijudaísmo foi alimentado durante tantos séculos, que conseguiu penetrar não só no consciente como no inconsciente de muitas pessoas. Por isso, torna-se tão difícil combatê-lo.
O professor e jurista Celso Antônio Bandeira de Mello em artigo virtual intitulado “A democracia e suas dificuldades contemporâneas” opina:
A História da Humanidade, inobstante a progressiva evolução em todos os campos, confirma, tanto quanto fatos e episódios ainda muito recentes, que a prevalência de ideias generosas ou o sepultamento de discriminações odiosas e preconceitos de toda ordem mantém correlação íntima com as situações coletivas de bem estar e segurança. E duram tanto quanto duram estas.
Observa-se geralmente nesta difícil tarefa de combater o antissemitismo através da educação – e a realização deste encontro concretiza este aspecto – que os humildes diante do Saber, que admitem sua ignorância sobre um determinado assunto e se dispõem a aprender, ou que se colocam abertos ao Conhecimento e à revisão de seus pontos de vista, estão plenamente dispostos a aprender, entender e respeitar a cultura e tradição judaicas, e a renunciar ao antissemitismo.
No entanto tudo se torna mais difícil diante dos antissemitas convictos e daqueles que já tem o antissemitismo tão profundamente arraigado no inconsciente, que por vezes nem mesmo eles se dão conta dos sentimentos que possuem. Diante desses, as palavras de esclarecimento inicialmente soarão como expressões parciais, merecedoras de descrédito e até de desprezo. Mas não se deve desistir. Se o discurso antissemita foi durante séculos incutido na mente da população, não se pode ter a ilusão de que poderá ser erradicado em um dia, um mês ou um ano. É um trabalho longo, de gerações, mas que jamais pode ser abandonado, pois é o único que pode realmente atingir a causa do antissemitismo.
Albert Einstein, com sua grande sabedoria, já afirmava: “Época triste é a nossa em que é mais difícil quebrar um preconceito do que um átomo”. Nesta simples frase Einstein sintetiza o drama da Humanidade, que desde o início dos tempos tem conhecido cada vez mais progressos científicos e tecnológicos, mas que caminhou bem pouco, se é que caminhou, no aperfeiçoamento do espírito humano.
Enfim, o verdadeiro combate ao antissemitismo, e o exercício pleno da cidadania dos judeus brasileiros somente poderá ser viabilizado de forma satisfatória através da utilização consciente das medidas judiciais de que se dispõe, garantidoras das liberdades dos cidadãos brasileiros judeus; da permanente reflexão acerca do exercício responsável das liberdades individuais de expressão, pensamento e crença, pelo povo brasileiro como um todo; e pela incansável disposição de transmitir conhecimentos que conduzam ao respeito e à tolerância das tradições e da cultura judaicas.