3.2 Militância política dos judeus brasileiros

Nem bandidos, nem heróis: os militantes judeus de esquerda mortos sob tortura no Brasil [1969/1975]1

Beatriz Kushnir2

As nossas mortes não são nossas.

São de vocês.

Elas terão o sentido que vocês lhes derem.

A reflexão acima, que se encontra no documentário “Lamentamos Informar”, de Barbara Sonneborn, f19981, se centra na guerra do Vietnã. A cineasta tinha 24 anos quando recebeu um soldado americano à sua porta com notícias de seu marido dizendo: “lamentamos informar que...” No Brasil de meados dos anos de 1960 e 1970, os parentes dos mortos e desaparecidos na luta armada ficavam sabendo do destino reservado aos seus filhos, filhas, maridos, irmãs, por intermédio dos jornais.

Na época os periódicos publicavam as notas oficias relatando o falecimento dos militantes. Geralmente, a informação oficial era a versão mentirosa de um tiroteio ou de uma resistência à prisão. Quase sempre, o jornal informava, na véspera, um fato que viria a acontecer no dia seguinte. Ou seja, eram mortes anunciadas3. Frequentemente, os corpos eram entregues às famílias em caixões lacrados, ou desapareciam em valas comuns. Tentavam, assim, esconder a prática da tortura. Muitos familiares, infelizmente, nem isso tiveram. Seus parentes estão nas listas dos “desaparecidos políticos”...

O tema da militância armada à ditadura civil-militar do pós-1964 ganhou a ponderação acadêmica no início dos anos de 1980. Diferente do caso argentino, a participação de judeus nesses episódios ainda não foi analisada aqui. Os estudos sobre a imigração receberam a prioridade de nossas considerações. Certamente é o momento de nos debruçarmos sobre a segunda e terceira gerações das comunidades judaicas no país. É oportuno pensar como se deu as inserções desse grupo nas décadas de 1950 a 1970, tendo como parâmetros tanto as claves econômicas quanto, principalmente, as definições políticas.

Para tal, é relevante perceber que, tão mítica quanto as histórias da imigração, a militância política de esquerda dos anos de 1960 e 1970 demonstra que não há “nem bandidos, nem heróis”, e que para esses militantes que centram a presente análise e para muitos outros, “ser judeu era ser brasileiro”. Vale destacar também que se confere as narrativas da imigração um glamour que justificaria o abundante estudo realizado até aqui. Creio que, se existe qualquer elan ou se ele é apenas uma construção, este está sempre no olhar do pesquisador que se debruça no passado e muitas vezes se apaixona por seus objetos. Neste sentido, “milito” na ideia de que as décadas mais contemporâneas merecem o nosso olhar reflexivo. A partir daqui, um pouco dessas trajetórias.

Entre novembro de 1969 – nos primeiros dias do governo do general Emílio Garrastazu Médici {1969/74}, empossado em 25 de outubro – e outubro de 1975 – no segundo ano da distensão do general Ernesto Geisel [1974/78]–, dez militantes de esquerda e de ascendência judaico-brasileira foram mortos sob tortura nos porões da ditadura civil-militar implementada no país após 31 de março/ 1° de abril de 1964. Esse regime autoritário, que teve o seu endurecimento com a decretação do Ato Institucional n° 5 [AI5], em 13/12/1968, viveu a partir dali o que a historiografia consagrou como “os anos de chumbo”.

A análise que se segue é resumo de uma pesquisa em andamento que busca mapear a participação de judeus na luta armada contra esse regime; no fundo há também uma discussão acerca do conceito de identidade judaica na época contemporânea. Fruto e herança da tradição liberal e igualitária judaica, revisitados e transformados, para esses militantes e para muitos outros, há uma profunda identidade com a pátria, como também com a visão internacional das Revoluções sociais [socialistas] dos anos de 1960.

Portanto, o mote dessa reflexão merece uma explicação. Quando não se é “descendente de militantes” e se propõe a estudar tal período, surgem muitas narrativas até então desconhecidas. Ao desvendá-las para mim, quis ampliar o leque, para que outros também as conheçam. Assim, essas dez histórias reúnem perfis de diferentes militantes pertencentes a diversas alas das esquerdas armadas no Brasil. O ponto em comum é que tinham uma ascendência judaica, mas não exerciam uma militância judaica. Não eram, por exemplo, sionistas; eram brasileiros lutando por seu país. E o interessante para essa consideração é justamente isso: uma geração posterior à fundação do Estado de Israel que não está preocupada com a pátria para o povo judeu, e sim com a terra para a qual seus avós vieram há quase meio século.

Diferentes trajetórias de participação política cruzam-se nesses dez casos; contudo, é fundamental destacar que a maioria deles não tinha uma tradição familiar de esquerda engajada. Nem todos tiveram parentes na célula judaica do Partido Comunista Brasileiro [PCB] dos anos de 1930 e 1940, por exemplo. Eram jovens românticos e velhos militantes, todos juntos em organizações diferentes, que optaram por se filiar à luta armada, para eles a única forma de reverter o quadro repressivo que o Brasil vivia. Fariam parte integrante de uma geração, que Michael Uiwy e Robert Sayre definiram como “romantismo revolucionário”4, influenciada pelo espírito transformador de maio de 1968.

Desvendando o cenário, é preciso nos reportar ao dia 4 de novembro de 1969, quando Corinthians e Santos disputavam uma partida de futebol. Às 21 horas, a transmissão de rádio e de TV foram suspensas e se anunciou a morte do mais famoso, no jargão da polícia da época, terrorista. Carlos Marighela fora assassinado, em uma emboscada na alameda Casa Branca, depois da queda dos freis dominicanos do Convento de Perdizes, na cidade de São Paulo. O quadro em que essa notícia foi dada revela muito das análises atuais sobre a participação da sociedade no processo de implantação da ditadura no país. Vista como encastelada, a maior parte da sociedade civil assistiu como plateia em um jogo de futebol ou como espectadora em um evento. Torcia por um ou outro lado, mas pouco se envolvia. Às vezes até, depois de tanta campanha de parte da imprensa, denunciava as atividades das esquerdas armadas. Elas não caíram nas graças do povo.

Vinte dias depois da morte de Marighela, a versão oficial que o II° Exército enviou para os arquivos do DEOPS/SP diz que haviam sido presos, no Rio de Janeiro, três militantes da organização Var-Palmares [Vanguarda Armada Revolucionária-Palmares].

Entre eles se encontrava o estudante de medicina paulista Chael Charles Schreier, o primeiro de origem judaica entre os 364 militantes mortos sob tortura ou em emboscadas e batidas policiais. Detidos após violento tiroteio, os três foram levados para o Hospital Central do Exército, onde Chael, segundo o atestado de óbito, morreu devido à “contusão abdominal C..) e hemorragia interna”. Por esse documento ficou evidenciado que Chael era o primeiro caso comprovado de morte sob tortura após detenção.

É importante aqui fazer um esclarecimento. A Var-Palmares, na qual Chael militava, era uma das 18 organizações clandestinas que optaram por combater a ditadura civil-militar pós 1964 pelo uso da luta armada. A Var-Palmares era fruto da fusão, em 1968, da ORM [Organização Revolucionária Marxista), da Polop [Política Operária) de São Paulo e da seção paulista do MNR [Movimento Nacional Revolucionário). Sua principal figura pública foi o capitão Carlos Lamarca, que desertou do 40 Regimento de Infantaria do quartel de Quitaúna, no município de Osasco [SP), em 24 de janeiro de19695.

Retornando à trajetória de Chael: o seu enterro, no Cemitério Israelita do Butantã, em SP, foi cercado pelo Exército. Os parentes fizeram questão de cumprir os ritos judaicos da lavagem do corpo e persuadiram o Exército a deslacrar o caixão de metal onde Chael estava. O jornalista Bernardo Kucinski, amigo da família, relatou o episódio em uma matéria da revista Veja. O primo de Chael, Jaime Schreier, que participou da lavagem do corpo definiu com uma frase a brutalidade sofrida: “ele apanhou como um cavalo!”. Há, assim, uma longa e cruel distância entre a versão oficial, que mais tarde divulgou um ataque cardíaco como a causa da morte de Chael, e o que realmente aconteceu. Na narrativa emocionada e lúcida de Kucinski para o semanário, fica-se sabendo que

nos enterros não se julgam os mortos. (...) No enterro de Chael, onde as pessoas não se falavam e mesmo amigos íntimos evitavam os cumprimentos e procuravam não estar juntos, não se julgava o caminho de Chael. (...) Estavam em julgamento certas formas de aplicação da justiça brasileira e métodos empregados para combater o terrorismo. As circunstâncias estranhas de sua morte levavam a crer que o caso Chael era a primeira prova real de morte violenta durante um interrogatório policial.

As dores daquelas sessões de tortura foram tão grandes que Maria Auxiliadora Lara Barcelos, presa com Chael, jamais se recuperou. Banida do Brasil para o Chile, em janeiro de 1971, na troca de presos políticos pelo embaixador suíço, suicidou-se, em 1974, aos 29 anos, jogando-se sob os trilhos do metrô de Berlim, às vésperas de completar seu curso de medicina6.

Mas o que certamente o jornalista Bernardo Kucinski não poderia prever, enquanto reportava o enterro de Chael, é que ele mesmo, cinco anos depois, em abril de 1974, no início do governo Geisel – que prometia o fim do terror – teria que regressar às pressas da Europa em busca de sua irmã, a professora de Química da USP, Ana Rosa Kucinski Silva. Ana Rosa e seu marido, Wilson Silva, eram militantes da ALN. O corpo de Ana Rosa jamais apareceu. Em dezembro daquele mesmo ano, o general Golbery do Couto e Silva – chefe do Gabinete Civil do governo Geisel – reconheceu que Ana Rosa estava presa em uma instituição da Aeronáutica. Por intermédio do cardeal Arns, famílias de desaparecidos encontraram-se com o general Golbery. Dias depois o ministro da Justiça, Armando Falcão, noticiava que Ana Rosa era considerada uma “terrorista foragida”. Ela e seu marido foram provavelmente levados para a “casa da morte” em Petrópolis e lá assassinados.

A “casa da morte” era um dos locais clandestinos de torturas do Centro de Informações do Exército {CIE], localizado no município de Petrópolis, no Rio de Janeiro. O comandante do DOI-Codi do I Exército, coronel Adir Fiúza de Castro, chefiava também as torturas naquela casa, do mesmo modo que o capitão-médico Amílcar Lobo atendia os presos nos dois lugares. Inês Etienne Romeu, única militante sobrevivente do lugar, afirma que por lá passaram pelo menos onze presos políticos, alguns deles considerados “desaparecidos” até hoje. Com alguns, ela chegou a ter contato pessoal, outros ouviu sendo torturados e sobre os demais teve informações através de torturadores, que se vangloriavam de tê-los matado. Esse não era o único centro de torturas clandestino que funcionava no País. No Rio de Janeiro havia pelo menos mais dois e em São Paulo outros dois7.

Assim, a história da repressão à militância contra a ditadura a partir do AI-5 é a narrativa de uma escalada crescente de crueldade, com seus ingredientes de torturas, mortes, laudos de autópsia forjados, enterros clandestinos, declarações oficiais enganosas. Traços presentes nas trajetórias do estudante de economia carioca José Roberto Spiegner, militante do MR-8, participante do sequestro do embaixador americano no Rio, em setembro de 1969, morto aos 21 anos em fevereiro de 1970. A geração de Beto incluía a maioria dos participantes daquele sequestro. Dividiu, naquele momento, um aparelho com o artista plástico Carlos Zílio, que em 1996, expôs no MAM, do Rio, sua arte e política entre 1966 e 1976. Escapou do cerco policial que prendeu e matou Beto, mas um mês depois foi preso, ficando encarcerado até julho de 1972. Ao sair, a maioria dos seus amigos ou estavam mortos, ou presos, ou no exílio. No catálogo da exposição, a dedicatória é para José Roberto Spiegner e diz:

fico espantado em pensar como tão jovens tínhamos a certeza de poder mudar o mundo e modelar a história. As mortes e o sofrimento me comovem. Experimentamos a dura realidade da derrota.

(...) Gostaria de dedicar esta exposição a todos que morreram nesta luta, alguns, inclusive, de maneira bastante cruel. Mas queria homenagear, sobretudo, José Roberto Spiegner. Foi meu primeiro amigo a morrer De certo modo, devo-lhe a vida.

Trajetórias semelhantes tiveram o acadêmico de medicina Gelson Reicher, 22 anos, assassinado em São Paulo em fevereiro de 1972, e Ana Maria Nacinovic, carioca, filha de pai judeu, morta em São Paulo em julho de 1972. A mesma Ana Maria, ironicamente condenada à revelia a 12 anos de prisão, em outubro de 1973, apesar de sua morte oficialmente decretada.

É importante aqui uma ressalva. Se essas dez histórias apontam para uma atitude radical de esquerda, existem outras diametralmente opostas. O médico legista que assinou os atestados de óbito de Ana Maria Nacinovic e Gelson Reicher, foi Isaac Abramovitch. Se no caso de Ana Maria, ele não declarou dois tiros levados por ela, no caso de Gelson, um rapaz que conhecia de infância, Abramovitch formulou um outro laudo para as causas de sua morte e atestou-lhe o nome falso de Emiliano Sessa. O corpo foi encaminhado para o cemitério de Perus e, após um telefonema anônimo à família de Gelson, provavelmente do próprio Abramovitch, foi então removido para o Cemitério Israelita do Butantã.

Nesse período conturbado, o ex-militante da ALN Reinaldo Guarany registrou em suas memórias e definiu como

éramos como galinhas de quitanda do interior, expostas à visitação pública; o freguês chegava e escolhia a mais gordona. Depois era só quebrar o pescoço.

(...) As quedas eram quase diárias, as prisões enchiam-se, aterrorizávamo-nos com os relatos de tortura, ‘desbundadas’ em massa eram empreendidas em direção ao Chile, enquanto nutríamos um misto de desprezo e pena pelos companheiros que caíam e, não suportando os choques e paus-de-arara, abriam e abriam, provocando mais quedas {1984, pp. 12 e 37).

Paralela a essas imagens despontam também personagens emblemáticas, mitos e mistos de liberdade e busca. Como Iara Iavelberg. Para todas as mortes de militantes, há sempre duas versões: para a de Iara não seria diferente. Teria ela se suicidado ou não, quando cercada pela polícia em um apartamento em Salvador, naquele 20 de agosto de 1971?

Pela biografia de Iara, – a mulher de Carlos Lamarca, o capitão do Exército brasileiro que deserta levando armas do quartel de Quitaúna, em São Paulo –, escrita pela jornalista Judith Patarra8, sabe-se que, muito jovem, aos 16 anos, casou-se na comunidade com o médico Samuel Haberkorn. Mas é o seu percurso pelas organizações das esquerdas armadas que revela o perfil de semelhanças do período. Dois dos seus três irmãos, Raul e Samuel, também tomam a mesma direção, o engajamento na luta, mas se exilam. No livro de Patarra, é interessante a reconstituição dos laços dessa geração, mas também as outras relações desse grupo para fora do universo dos amigos judeus. Compreender o que os levou à opção pela luta armada, de onde vieram, que perfil tinham. Toda essa gama de “afinidades eletivas” que formam gerações, grupos e espaços de sociabilidade.

Iara militou na Polop e da cisão desta, formou-se a VPR, na qual conheceu Lamarca e, quando este se transfere para o MR-8, ela o segue. Se há uma nuvem de glamour que envolve a militância armada até o sequestro do embaixador americano, em 1969, o que vem depois, entre fins de 1969 e 1972, é o massacre. Os que ficam aqui, como sobreviventes e fora das prisões, têm a opção do exílio. Lamarca não a quis e Iara o acompanhou nas tentativas de resistência rural no Vale do Ribeira e em Brotas de Macatába, na Bahia.

Na esteira da gana da polícia política pelos líderes do movimento armado, Marighela já havia morrido. Seu sucessor, Joaquim Câmara Ferreira, o Toledo, foi assassinado em outubro de 1970. Desses dirigentes maiores, faltava capturar Lamarca, que vai cair em setembro de 1971.

Um mês antes, então com 27 anos, Iara fora localizada e morta. Iara, a mítica, a mulher do ex-capitão do Exército desertor. No desenho de Patarra, ela é a simbiose da liberdade e da angústia. Mas o que lhe teria acontecido nos seus últimos momentos permaneceu não revelado até as últimas semanas de 2000. Depois de 29 anos, os impasses sob as circunstâncias da morte de Iara começam a ser esclarecidos. A 1. Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu, por maioria, que a família da militante política Iara Iavelberg tem o legítimo direito de trasladar seus restos mortais da área reservada aos suicidas no Cemitério Israelita do Butantã. Assassinada por militares em 1971, Iara foi dada como suicida na versão oficial dos órgãos de repressão: teria se matado com um tiro em seu apartamento, para escapar à prisão. Seu irmão, Samuel Iavelberg, sempre contestou tal versão, mas, de acordo com os costumes judaicos, Iara foi sepultada em área separada, reservada aos que “dão a morte a si próprios”.

“A decisão judicial é mais um reconhecimento de que houve homicídio e que os laudos da época são falsos, como aconteceu com assassinatos de vários militantes no período da ditadura”, disse o deputado estadual Renato Simões [PT], presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de São Paulo, que acompanha o caso. Investigações posteriores indicaram que Iara foi morta com uma rajada de metralhadora disparada pelo sargento Rubem Otero, da Marinha, de acordo com relato do contra-almirante Lamartine Andrade Lima. O deputado Simões critica a própria comunidade israelita, que não aceitou sepultá-la de acordo com os ritos normais, “uma vez que a exumação do corpo para comprovar o homicídio foi dificultada pela tradição religiosa”.

Bem perto do local onde Iara está sepultada, em uma área quase limítrofe9, encontra-se o corpo do jornalista Vladimir Herzog, um dos últimos a morrer nos porões da ditadura por suas ligações com o PCB. O caso de Herzog, assassinado em outubro de 1975, detonou uma crise na cúpula do governo Geisel e mostrou que a abertura “lenta e gradual” esbarrava com uma ainda quente máquina de tortura. Sete dias após o assassinato do jornalista na sede da Operação Bandeirantes [Oban] da rua Tutóia, a cidade de São Paulo vivenciou uma das maiores manifestações políticas de repúdio à ditadura: a missão ecumênica na Catedral da Sé.

Mas no dia seguinte ao dia em que Herzog foi barbaramente assassinado, um colega seu de profissão fazia um comentário hediondo na imprensa. O jornalista Cláudio Marques, conhecido por suas posições a favor do sistema repressivo imposto no pós-1964 e, principalmente no pós1968, redigiu a seguinte nota,

há certas horas em que a gente, com o mais puro sentimento de coleguismo, fica preocupado com os novos hóspedes do Tutóia Hilton.

No entanto, já após 1972, encurralados, capturados, presos ou mortos, poucos eram os militantes ainda vivos ou fora dos cárceres. Entre eles, Pauline Philippe Reichstul, uma judia suíça de 25 anos, que possuía ligações tanto com a Anistia Internacional como com a VPR, organização na qual atuava um famoso agente infiltrado, o cabo Anselmo. Pauline chegou da Europa em fins de 1972, literalmente para a morte, em janeiro do ano seguinte, quando quatro homens e duas mulheres foram massacrados em Recife pela equipe do delegado Fleury, muito provavelmente por indicação do cabo.

Concomitante a essas ações, entre abril de 1972 e fins de 1974, o PC do B realizou uma experiência de guerrilha rural que ficou conhecida como a “Guerrilha do Araguaia”. Chega-se assim aos dois últimos personagens dessas dez histórias: Maurício e seu filho, André Grabois. A luta travada no Araguaia entre os militantes e o Exército é a narrativa de uma chacina, de uma guerra praticamente sem prisioneiros. As mortes ali giram em números imprecisos de 59 a 92 militantes, dos quais todos são desaparecidos políticos.

Maurício, um dos 14 deputados do PCB eleitos para a Assembleia Nacional Constituinte de 1946, chegou ao Araguaia em 1967, um dos primeiros, e desapareceu em um cerco do Exército no Natal de 1973, aos 61 anos. Seu filho, André, ou o José Carlos, seu nome de guerra, morrera dois meses antes, em 14 de outubro de 1973, aos 27 anos. Não chegou a conhecer seu filho, João Carlos Grabois, com Crimeia de Almeida, que voltou a São Paulo para tê-lo.

Quando se estuda a luta armada, um conceito é recorrente: o da sobrevivência. Os que ficaram para contar se autointitulam “sobreviventes”. Essas dez histórias são dos que não conseguiram chegar a esse patamar, tombaram antes. Para Daniel Aarão Reis Filho, ele mesmo um ex-militante do MR-8, e hoje titular de História Contemporânea da UFF “foi exatamente nessas circunstâncias, sem válvulas de escape, que alguns grupos de esquerda – desesperados e desesperançosos – se lançaram à luta armada. Constituídos fundamentalmente por jovens estudantes, audaciosos mas inexperientes, foram destroçados em uma luta desigual contra os aparelhos da repressão. Bravos jovens! Radicais, equivocados, mas generosos! A rigor, a ditadura, sempre segundo essas versões, fora a grande responsável pela luta armada, redimensionada como uma reação desesperada à falta de alternativas” (Reis Filho, 2000. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor. p. 8).

Em tão rápidas pinceladas, as dez trajetórias dessa narrativa estão muito longe de qualquer análise que as vitime. Envolvidos com os pressupostos do socialismo, esses bravos jovens acreditavam no internacionalismo. Portanto, eram múltiplos: eram judeus, eram brasileiros, eram do mundo. Essa geração de contestadores, de militantes, de guerreiros está envolta por uma gama de “afinidades eletivas” que formam grupos e espaços de sociabilidade. Para Michael Lõwy, a força e a combustão gerada por essas “aproximações por escolha”, são

um movimento de convergência, de atração recíproca, de confluência ativa, de combinação capaz de chegar até a fusão. (...) Essa força é a afinidade, determinando a combinação dos corpos heterogêneos numa união que é uma espécie de casamento, de enlace químico, que procede antes do amor que do ódio. (...) A afinidade eletiva não se dá no vazio ou na placidez da espiritualidade pura: ela é favorecida (ou desfavorecia) por condições históricas e sociais.10

Engajados em uma “viagem” semelhante, mas não igual, há várias gerações de intelectuais brasileiros; esses militantes desejavam a utopia dos românticos revolucionários. Netos ou mesmo imigrantes, não precisavam sair daqui para construir um mundo melhor. Era nesse território, místico e mestiço, que queriam “ousar lutar, ousar vencer”!