“Quando o calo aperta...”: uma análise do imaginário político de jovens judeus da cidade do Rio de Janeiro

Marcelo Gruman1

O objetivo deste artigo é analisar o comportamento político de um grupo de jovens judeus cariocas. Sendo o exercício da atividade parlamentar uma das maneiras de afirmar e defender a identidade étnica, me propus descobrir o que estes jovens pensavam sobre a política, os políticos, os partidos, em quem votavam e por quê. A maioria deles não se lembrava do nome do candidato em quem haviam votado nas últimas eleições2 e, muito menos, do partido ao qual estava filiado. Tendo em vista que o jogo político, à maneira da arena econômica, funciona na relação entre “oferta” (os candidatos) e a “demanda” (os eleitores), realizei, também, entrevistas com políticos judeus que, na época, faziam parte do governo municipal, atuavam na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, na Câmara de Vereadores e com um ex-presidente da FIERJ (Federação Israelita do Estado do Rio de Janeiro) que já atuou na arena política por mais de um mandato.

O resultado das entrevistas, tanto com os jovens eleitores quanto com os políticos judeus, me permite afirmar a existência do chamado “voto étnico”. Isto significa que o candidato preferido é parte integrante do grupo étnico em questão, defendendo seus interesses corporativos na Assembleia Legislativa, ou apenas seu simpatizante, sendo, assim, considerado “amigo dos judeus”. Ele, por sua vez, quando reconhecida sua legitimidade perante seus “iguais”, toma como missão a defesa de sua comunidade, prometendo desenvolver projetos que visem bem-estar e segurança aos potenciais eleitores ou, se já eleito, reforçando seus compromissos.

Este grupo de jovens é o mesmo de minha dissertação de mestrado. Então, interessava-me analisar os processos por ele utilizados na elaboração de sua identidade judaica, levando em conta sua inserção na sociedade brasileira, sem a sombra do antissemitismo, ao menos na forma institucionalizada que caracterizou uma parte da história europeia e brasileira anterior. Queria entender o significado que esses jovens davam à sua judeidade, o porquê de se afirmarem enquanto parte de uma minoria num país que tem, na ideologia assimilacionista, a base de suas relações sociais, e o valor dado à endogamia, historicamente um importante determinante na definição de quem é ou não judeu.

Os entrevistados são parte das camadas médias urbanas, cujas idades variam entre 20 e 30 anos; moradores da zona sul da cidade; estudaram em escolas judaicas até a faculdade ou pelo menos até a 8a série do ensino fundamental; se socializaram em movimentos juvenis sionistas e quase todos já viajaram a Israel num dos programas financiados por instituições sionistas ou com as próprias famílias; realizaram os rituais de passagem da religião judaica, o “brit-milá” (circuncisão) e o “bar-mitzvá” (maioridade religiosa aos 13 anos de idade) para os rapazes e, muito mais raramente, o “bat-mitzvá” (maioridade religiosa aos 12 anos de idade) para as moças. Não se consideram religiosos, ao contrário, não seguem os preceitos religiosos da alimentação (a “kashrut”) e das rezas diárias nem fazem o descanso semanal, considerado um dos principais mandamentos de Deus. Todos trabalham ou fazem algum tipo de estágio na área em que pretendem continuar profissionalmente.

Devemos ter em mente que esta maneira de exercer a judeidade, através da representação política, não é nova. Porém, o apoio explícito a um candidato da comunidade judaica e a leis por ele criadas quando eleito, para atender especificamente esta parcela da população, desafiam certas premissas importantes na definição da nacionalidade brasileira. O orgulho de se afirmar membro de um grupo particular, sem abdicar de uma pretensa brasilidade, de expressar esse pertencimento em público e de lutar por direitos no âmbito legislativo traz à tona a tensão entre o “público” e o “privado”, “indivíduo/ cidadão” e “pessoa” e, acima de tudo, coloca em discussão a ideologia nacional da “morenidade”, símbolo da ausência de preconceito racial no Brasil. O processo de integração à sociedade brasileira e a atual conjuntura sociopolítica nos fornecem dados que permitem uma melhor compreensão do fenômeno da política étnica e sua maior legitimidade nos dias de hoje.

Integração e assimilação à luz da situação racial brasileira

A facilidade com que os imigrantes judeus, e seus descendentes, foram absorvidos pela sociedade brasileira como um todo é compreendida a partir de duas premissas constituintes de uma certa identidade nacional: a miscigenação racial e a assimilação cultural.

A formação do povo brasileiro, enquanto uma “raça pura” dotada de características intrinsecamente positivas, seria possível através do “cadinho de raças”, da miscigenação de todos os tipos de imigrantes que aqui desejassem fixar-se com os lusitanos colonizadores, negros (escravos e, posteriormente, libertos) e os indígenas nativos. Diferentemente do que postulavam os teóricos racistas europeus, os apologistas da mistura racial no Brasil acreditavam que, apenas na união dos diversos “sangues”, cada qual com algo positivo para doar, é que o país alcançaria o desenvolvimento econômico, cultural e moral.

A boa vontade com os que vinham de fora, com os imigrantes, impediu a formação de um antissemitismo inserido na ideologia nacionalista. O nacionalismo brasileiro (excetuando curtos períodos, como durante o Estado Novo), ao invés de romper com o estrangeiro, símbolo da opressão, via nele o futuro promissor do país. A ideia de que o pecado original (Sorj:1997) – a união entre negros, índios e portugueses – seria redimido com o tempo tem, na ideologia do branqueamento, a contrapartida para o surgimento de uma sociedade integrada e homogênea.

Neste sentido, os judeus, enquanto brancos, não tiveram, na aparência, um obstáculo para sua integração à sociedade brasileira. Por outro lado, a ideologia brasileira referente às relações inter-raciais ou interétnicas é assimilacionista, ou seja, espera-se que o indivíduo de outra origem que não a luso-brasileira abandone sua herança cultural em favor de uma suposta “cultura nacional”. O exercício da etnicidade, portanto, sofre um revés na medida em que a tolerância às minorias endogâmicas e etnocêntricas é pequena. Veremos que este é um ponto importante na análise do chamado “voto étnico” e da política étnica.

A utopia da homogeneidade racial brasileira empresta uma ideia de amorfismo social, uma sociedade indiferenciada, sem clivagens internas. Naquelas em que o sistema político baseou-se nos princípios da liberdade e da igualdade prevaleceu a noção de “indivíduo”: consciente, independente, autônomo, livre e anterior à própria constituição da sociedade (Dumont:1995). No Brasil, entretanto, há uma outra categoria que faz a mediação das relações sociais, a “pessoa”. Ao contrário do “eu individual”, o “eu social” é construído através de relações morais, fundadas em valores como “intimidade”, respeito”, “honra”, “vergonha”, “consideração”. Neste contexto, prevalece a máscara social, a “persona”, responsável pela identidade assumida. Somos membros de grupos com fronteiras bem definidas, a família, por exemplo, compartilhando com os outros aqueles valores, um passado e um futuro em comum.

Como é que os judeus brasileiros se apropriaram dessas ideias? O judaísmo moderno transportado para cá trouxe os ideais universalistas. Muitos dos movimentos juvenis se alinhavam à doutrina socialista, além de serem nacionalistas judaicos. A partir de meados dos anos 60 (Grun:1994), tomando por base as eleições municipais e estaduais em São Paulo, o discurso político dos candidatos judeus passou a ter um teor mais “tribal”, de defesa dos interesses corporativos, dos membros tomados não somente como brasileiros, mas judeus. Obviamente que, devido ao clima de nacionalismo vigente de maneira mais incisiva a partir do golpe de 64, esta mudança de estratégia ainda não era explícita.

Porém, hoje, vivemos um mundo diferente. Vivemos um “mundo estilhaçado” (Geertz:2000), onde não existem mais os blocos antagônicos e é preciso repensar conceitos que, por vezes, eram concebidos de maneira integradora e totalizante. É na discussão do que é a “nação”, a “cultura” ou a “identidade” que podemos iniciar a caminhada em direção a uma maior compreensão do que é a afirmação, no âmbito político, de um pertencimento étnico ou religioso.

Os jovens entrevistados se dizem judeus e brasileiros, afirmam sua condição judaica sem abdicar de formas culturais elaboradas aqui, no Rio de Janeiro, em contato com os diversos grupos que compõem a estrutura social da cidade. Somente pela não essencialização do que é ser judeu ou brasileiro, e pela percepção de que não são termos antagônicos, podemos compreender o significado do “voto étnico”. Os programas de ação afirmativa para negros, a luta pela legalização da união matrimonial entre homossexuais, camisas do tipo “100% negro”, revistas voltadas para os públicos negro, gay e feminino, entre outros exemplos, nos levam a reavaliar o que é isso que chamamos de Brasil. Retomando a pergunta de DaMatta (DaMatta:2000), “o que faz o brasil, Brasil?”.

Veremos que a ideologia miscigenascionista ainda influencia o discurso do político judeu, tornando-o ambíguo. Ser cidadão brasileiro não está mais em contradição com a cidadania judaica, e a representação dos interesses da comunidade na esfera legislativa faz parte do novo significado dado à democracia. A intenção, aqui, é tentar entender como jovens judeus cariocas encaram a atividade legislativa neste ambiente de pluralidade cultural e étnica e estabelecem o diálogo com os candidatos surgidos no interior da comunidade judaica e a ela simpáticos.

Políticos legítimos e ilegítimos

O primeiro ponto a ser destacado é a importância, histórica, de um político que faça a ponte entre a comunidade judaica e a “comunidade maior”, pela atividade legislativa, numa versão moderna do “judeu de corte”3. Não é obrigatório que essa ponte seja construída por um judeu, já que um prefeito, governador ou deputados e vereadores não judeus, mas identificados com a comunidade judaica, são considerados “amigos dos judeus”, “de confiança”. Quando o político é judeu, faz parte da prestação de contas a peregrinação por clubes e sinagogas, acompanhando autoridades locais juntamente com seus assessores, mostrando aos eleitores que a comunidade deve sentir-se lisonjeada por ter um representante em contato com as altas esferas do poder. Destaca-se, aqui, a notoriedade do político junto à comunidade judaica, devido à sua aparição junto a esses representantes, sejam do âmbito municipal, estadual ou federal.

A comunidade se sente dignificada quando vê autoridades não judias prestar homenagem à comunidade judaica. Eu trouxe, para a comunidade, todos os presidentes, com exceção do Collor, que vieram na Biblioteca Bialik prestar homenagem ao Dia do Holocausto e no dia de aniversário do Estado de Israel. Eu convidei aqueles que eu achava corretos, honestos, e senadores e deputados...por isso, eu sou muito conhecido como o homem da relação com o mundo político brasileiro (...). Quando eu faço amizade, como vereador, com o Conde, o César Maia ou o Garotinho, eu faço sob o ponto de vista alto, não sob o ponto de vista de partido, sob o ponto de vista social, judaico e não judeu (...). Eu sou visto de outra maneira (...). É por isso que eu sou aceito em qualquer lugar, porque eu sempre me coloco acima e, por isso, me tornei presidente desta casa (câmara de vereadores). Eu sou o único judeu que ocupa as maiores posições numa casa política (X, então vereador pelo PFL)

É fundamental para a comunidade judaica, que é burra, que não entende de política, que nós levemos os políticos para dentro da comunidade. Para eles verem com quem eles estão tratando e eles assumirem compromissos com a gente. (...) Levei pra mostrar que tipo de compromisso eles tinham que ter com aquela comunidade, que tem uma religião diferente, que precisa de apoio, de carinho, de cuidado, precisava de responsabilidade governamental em cima dela. (...) Eu consegui mobilizar a mentalidade das pessoas, no sentido de que eu era uma esperança no relacionamento entre a política nacional e a comunidade judaica. Que eu poderia ser uma ponte de relacionamento entre a legislação, os legisladores, e a comunidade. Eu acendi a chama da esperança na cabeça das pessoas, no coração das pessoas” (Y, ex-presidente da Federação Israelita do Estado do RJ, ex-vereador e ex-parlamentar por partidos tidos de “centro-direita”, grifo meu)

O segundo ponto é a questão da segurança. O político respeitado e digno do voto étnico é aquele que carrega a bandeira da luta contra o antissemitismo. Deve-se lembrar que a história do povo judeu sempre foi marcada por perseguições étnicas e religiosas, desde a época da escravidão no Egito, passando pela Inquisição e culminando na II Guerra Mundial. Para a maioria dos jovens entrevistados, o Holocausto faz parte de sua própria história de vida, principalmente pelo fato de haver, nas famílias, sobreviventes de campos de concentração ou imigrantes fugidos antes e durante o conflito. A decisão do voto passa, então, pela coadunação da proposta do candidato com a memória social que localiza, na barbárie nazista, aspectos fundamentais na construção da judeidade. A ameaça de uma nova tragédia, apesar de não sofrerem discriminação e não considerarem os brasileiros um povo antissemita, da mesma maneira como encaram os alemães ou poloneses, é um fator importante na escolha do candidato:

Eu acho importante, pra defender as vontades, o que a comunidade acha importante. Precisa ter alguém representando pra não deixar que, sei lá vai que alguém, um louco, quer colocar uma lei que vai prejudicar a gente. Tem que ter uma voz (S, estudante de desenho industrial)

Sempre procurava, entre todos, um judeu ou alguém que goste da comunidade judaica. (...) Tem muita gente que gosta, que isso que aquilo, mas na hora que chegar alguém e resolver botar uma lei antissemita lá na parada, só o cara que for judeu mesmo que vai chegar e falar ‘não, não, isso aqui tá...’. Nunca fez p...nenhuma pra comunidade judaica, mas na hora que botar a lei de discriminação, o cara vai bater o martelo e vai dizer ‘não, não, não, essa p.. não’. O cara que é judeu, ele vai sentir isso, quem não é às vezes nem repara, nem percebe, não tá nem ligando. Na hora de ver é que a parada pega” (D., estudante de administração)

Ser eleito com o voto étnico, quando era esta a intenção, é motivo de orgulho para o político. Y, ex-presidente da FIERJ e ex-parlamentar, é um deles. Sua trajetória comunitária serviria como uma amostra de sua competência administrativa e vontade de defender os interesses do grupo no âmbito legislativo.

Eu fui o primeiro judeu eleito com voto judaico para a Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro. (...) Eu não preciso fazer propaganda pra comunidade judaica, porque eles me conhecem (...) Eles sabem o que eu tinha que fazer e o que estava fazendo. Eu fui presidente da Federação, eu criei o programa de televisão (chamado “Comunidade na TV com duração de mais ou menos 20 minutos), vários programas de rádio, jornal, eles sabem o que eu penso

O importante, aqui, é a relação de confiança e de cumplicidade construída entre o eleitor e o candidato judeus (Kushnir:1996). O discurso passa a ideia de um pertencimento ao grupo étnico e um compartilhamento de valores necessários à sua eleição. Na verdade, a relação entre a propaganda pessoalizada e o voto, uma economia da troca simbólica, baseia-se nas ideias de “confiança”, “amizade”, “carinho” e “solidariedade”. Dizer que os eleitores o conhecem significa que entende todas as carências que afligem essa comunidade.

A comunidade judaica não tá preocupada com projeto nenhum que você quer fazer (...) “o que você vai fazer e o que não vai fazer”, alguns até estão, mas a maioria tá mais preocupada tipo “quem é o cara que vai me representar melhor”. (...) É essa a grande questão, a segurança, era esse o peixe que tinha que ser vendido. (Z, então candidato a vereador pelo PL)

Uma vez na câmara, o político legítimo deve colocar os interesses corporativos acima da opção partidária. Ele irá incorporar os desejos da comunidade judaica aos direitos do cidadão carioca, brasileiro. Esta nova maneira de conceber a cidadania judaica joga com o apelo à etnia e a marcação do pertencimento à sociedade brasileira, permitindo o trânsito entre as diferentes esferas, política e comunitária. A ideologia assimilacionista brasileira é utilizada para justificar a não discriminação do político judeu em relação à população não judaica na hora de elaborar leis. Surge, aqui, o discurso ambíguo.

O judeu na Assembleia, na Câmara, se tem identificação com a comunidade e se pede voto na comunidade, ele tem que defender a comunidade acima de tudo. Este é o problema” (Y, ex-parlamentar)

Eu não sou religioso, eu respeito Yom Kipur (Dia do Perdão, quando os judeus devem jejuar) como uma tradição, nunca me passou pela cabeça que isso fosse importante do ponto de vista individual meu. Mas do ponto de vista da cidadania brasileira, é fundamental que os judeus tenham seus direitos respeitados. Então, eu fiz essa lei pra ficar consignado o aspecto da cidadania judaica no Brasil, da cidadania dos brasileiros que têm religião judaica e que, pela constituição, têm que ser respeitados como os outros segmentos religiosos. De 40 leis, apenas duas foram dirigidas para a comunidade judaica. Ela se beneficia das outras 38 (Idem, grifo meu)

Lei pra comunidade judaica é muito difícil, bem ou mal não deixa de ser discriminação, entendeu? Agora, poderia mobilizar a guarda municipal pra ficar perto das sinagogas no ‘shabat’, ou talvez numa sexta ou sábado de manhã para que as senhoras pudessem ir mais tranquilas. (Z, candidato pelo PL)

Eu votei no X não pelo fato dele ser judeu, mas pelo fato de que, através dele, o Shomer virou ‘utilidade pública’, e aí deixou de pagar IPTU. E o Shomer tem uma dívida de IPTU que eles estavam ameaçados de perder a casa. Então, o X conseguiu livrar o Shomer dessa dívida e, fora disso, transformou o Shomer em ‘utilidade pública’. Eu acho que eu devo isso a ele, eu passei excelentes momentos da minha vida no Shomer, e eu não queria, nunca, ver a casa do Shomer penhorada (I., advogada)

A defesa do bem-estar da comunidade judaica carioca passa, como vimos, pela ponte entre as altas esferas do poder público e os interesses corporativos, representados pelo político (na maioria das vezes) judeu. A visita de políticos não judeus a sinagogas ou bibliotecas mostra o interesse do poder público relativo a questões privadas, ocorrendo um amálgama entre os dois campos. O caminho inverso também é possível, ou seja, uma das maneiras de criar um compromisso da esfera pública com a comunidade judaica é homenagear personalidades do mundo da política ou da cultura, preferencialmente ligados à comunidade e judeus. O evento, organizado pelo broker, reúne autoridades do Legislativo, Executivo e Judiciário, além das famílias judaicas convidadas por meio de carta personalizadas (por exemplo, “À Família X”). É realizado tanto na Câmara de Vereadores quanto na Assembleia Legislativa.

O Presidente da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, e o Presidente da Comissão de Justiça, vereador X, convidam para a solenidade em homenagem ao 54° aniversário do Estado de Israel, a se realizar no próximo dia 22 de abril (de 2002), segunda-feira às 18h, no plenário desta Casa de Leis. Na ocasião, será homenageado com a Medalha do Mérito Pedro Ernesto o sr. Eitan Surkis, cônsul geral do Estado de Israel. O evento contará, ainda, com a participação especial de um coro de 100 alunos da rede pública municipal. Após o evento será servido coquetel.

Este exemplo é emblemático. Já não é uma via de mão única, ou seja, a ida de autoridades locais e nacionais para dentro das instituições judaicas, mas vemos também a apropriação do espaço público por um grupo e suas reivindicações tomadas por legítimas defendidas por seus representantes. Ser um judeu brasileiro, eliminando a escolha entre uma ou outra identidade, possibilita esse tipo de homenagem já que Israel, para muitos judeus brasileiros, não é o lar dos judeus, mas fonte espiritual importante na construção de sua identidade étnica. A cidadania passa a afirmar-se menos por motivações nacionalistas e universalistas do que pelo pertencimento ao grupo, à família judaica.

A maior ou menor legitimidade do político judeu perante a comunidade, segundo os entrevistados, depende de diversos fatores. O primeiro deles, negativo, é a “traição” em relação a um padrão de conduta considerado ideal, que reforce uma imagem positiva dos judeus perante a opinião pública brasileira. Lembremos que a identidade judaica brasileira foi construída de modo a esquecer o passado comercial em favor de um novo mito de origem, no qual a figura do “judeu culto” e de “povo de intelectuais” deveria sobressair (Grun:1997). Assim, qualquer tentativa de utilizar a política como comércio, como é feito de modo mais recorrente e explícito por descendentes de árabes (o caso de Paulo Maluf, em São Paulo, é emblemático), é veementemente condenada, havendo controle por parte da comunidade judaica sobre as ações parlamentares (Grun:1999). A imagem da coletividade, simbolizada pelo político corrupto, ficaria abalada.

Se for um cara da comunidade, que está se elegendo, mas que tá usando isso pra adquirir votos, porque o cara é um merda, porque o cara só tem interesse única e exclusivamente em ganhar dinheiro, em se projetar e nem tiver nenhum tipo de preocupação, não vai me adiantar em nada, porque não vai tá seguindo o que eu tô pensando. Vou preferir votar numa pessoa que nem é da comunidade. (...) Eu nem me lembro em quem votei, não tenho muito interesse em política (S., estudante de marketing)

Judeu vota em judeu, a não ser que seja um judeu que vá denegrir a imagem da comunidade, que a gente não tenha confiança. Se tiver um judeu honesto, a gente vai votar no judeu honesto, se houver um judeu desonesto a gente não vai votar num judeu desonesto, porque aí é propaganda negativa, aí não vale a pena (H, empresário)

Em alguns casos, porém, a própria idoneidade do político judeu torna-se irrelevante, contanto que as fronteiras comunitárias estejam defendidas contra ataques antissemitas. Dois jovens expressaram este sentimento, de que “os fins justificam os meios”, colocando no centro da discussão os limites entre o interesse público e o privado, em que medida os dois podem se relacionar sem prejuízo para os demais grupos sociais e a possibilidade de surgir, aqui, uma relação do tipo patrão-cliente entre o candidato judeu e o jovem eleitor.

Eu tô c...se ele (o candidato em quem votou) já roubou ou não. Eu quero alguém na Câmara para, se tiver uma suástica aqui na parada (aponta para uma loja) alguém com moral lá na Câmara pra vir aqui e prender o cara da loja. E não é qualquer um que tem isso, pra isso existe a FIERJ, pra defender a comunidade e, pra isso, tem que ter um candidato judeu dentro da Câmara. Porque, se não, meu amigo..., é f.., nego trepa, nego f. .com judeu mesmo, nego é racista. O presidente da Câmara atual é árabe (?) e não gosta de judeu. Já fez discurso racista na Câmara de Vereadores, o Sami Jorge. E tinham judeus na Câmara, A., G., não falaram nada. Aí, o X se levantou e começou a quebrar o pau com ele, ele teve que se retratar senão era preso. (D.; “promoter” de festas)

Fez merda a vida toda (falando de X), foi preso por corrupção4 e o c.... Na comunidade, o quê que ele faz? Ele pega uma sinagoga que tá devendo R$10 mil, conversa com o prefeito e manda anistiar, anistia. Então, toda vez que ele vai a essa sinagoga, ele é recebido com tapete vermelho. Como ele ficou como vereador muito tempo sozinho, as pessoas procuravam ele e ele tinha uma boa relação com o prefeito e conseguia resolver esses problemas. Nisso, ele ficou conhecido (D., estudante de administração)

A vontade de ser reconhecido como único representante legítimo da comunidade judaica e de receber muitos votos, importantes porém não suficientes para a eleição, pode levar a tentativas de desqualificar outros potenciais defensores dos interesses corporativos da etnia, como ficou provado no depoimento acima. A., então secretário de urbanismo da cidade do RJ e, na época do incidente, vereador pelo PV (Partido Verde), nega ambos os fatos, a inércia de uns e o antissemitismo (aberto) de outros.

Existe, entre alguns políticos judeus, uma verdadeira psicose da disputa pra ver quem é o representante mais digno da comunidade

Em segundo lugar, há jovens que não votariam num candidato judeu da mesma faixa etária devido à sua suposta inexperiência política, mas há os que fariam questão de colocá-lo “lá dentro” exatamente por ser jovem, sinônimo de vitalidade e renovação. Ser jovem, aqui, é ser agente de mudanças, pelo menos é essa a ideia que tenta ser passada pelo candidato. Relações pessoais, internas à comunidade, podem facilitar este “voto étnico jovem”.

Porque ele é jovem, porque os jovens sempre trazem novas ideias, eles trazem certa revolução de pensamento. As instituições estão impregnadas de velhos, se tivesse mais jovens, se os jovens se preocupassem com as instituições que a gente tem, as coisas estariam bem melhores (...). Os velhos têm medo de mudar. (...) O Z. (o candidato jovem) ia trazer. ..se você apoia um jovem, você tá apoiando uma nova geração, gente jovem que ta’ a fim de ser líder também. Ele foi meu ‘chanich’ (pupilo, no movimento juvenil), particularmente eu conheço ele, então, ‘lama ló’ ? (“por que não?”, em hebraico) (I., advogada)

A campanha que eu fazia na comunidade era ‘vocês têm três opções: Uma ta’ com noventa anos, uma tá com sessenta e uma tá com dezoito anos. Vocês podem votar em quem vocês quiserem, mas um tá pra morrer, digamos, sem querer... mas ele já não anda, anda com muita dificuldade; tem outro que já tentou três vezes e tentou agora e não entrou, que era o]. (do PSB), e tem um cara novo que ta’ tentando’. Então, a propaganda era essa, o foco principal era ‘pô! vocês têm um cara jovem’, entendeu? Isso dava resultado, a primeira vez que você fala assim, as pessoas realmente... (Z, candidato pelo PL)

Em terceiro lugar, a atuação além das fronteiras comunitárias, atendendo populações carentes da cidade do Rio de Janeiro, pode ser tanto um “filão” de votos quanto uma de monstração de falta de interesse ou independência frente ao voto étnico para sua eleição.

Eu sei que o X é um cara que faz, ele não só faz pelos judeus. Todos os taxistas do RJ votam nele, ali naquela favela em frente ao Fundão (Complexo da Maré)5, pê, ele é unanimidade ali. Ele é um cara que, não só o fato de tê-lo como judeu, porque seguramente se você chegar a ele com algo que tá acontecendo aos judeus, ele vai se movimentar com isso...Ele entrou dentro da sociedade carioca, não é um cara que defende os judeus, taí pra fazer e acontecer pelo povo, entendeu? (1., advogada)

Foi no J. (então candidato pelo PSB). O X., na época a gente fica na dúvida, mas o que meu pai falou foi que o X. teria mais votos mesmo (ênfase), então seria melhor favorecer..que o X. teria votos fora da comunidade (B., estudante de medicina)

Em quarto lugar, há a rejeição de ser cooptado pela comunidade judaica e suas exigências. Neste caso, o político judeu se transforma num “judeu político”, ou seja, é aquele indivíduo que faz política sem levar em conta sua condição étnica. Este tipo de político não tem boa aceitação entre os jovens entrevistados, nem ele faz questão de ser visto enquanto representante comunitário. Apenas dois jovens disseram votar de acordo com a noção de “cidadania” desvinculada da etnia. Símbolo deste “judeu político” é A, do Partido Verde.

Colocando-se contra a mistura do judaísmo com a política, invoca sua trajetória pessoal e política para defender sua visão de mundo, baseada em ideais universais condizentes com uma postura socialista. Participou do movimento estudantil de 1968, foi membro da guerrilha urbana quando o Brasil viveu os anos de repressão da ditadura militar, sendo obrigado a se exilar em 1971. Na época, era um “revolucionário guevarista de extrema esquerda” e hoje se define como adepto da ecologia política aliada à socialdemocracia. Adaptado e integrado à sociedade brasileira, acha o projeto brasileiro, uma sociedade multicultural e multiétnica, a ideal, pois pode ser parte da “geleia geral”. Seu tipo de preocupação, voltada para questões universais e bem de acordo com os ideais do judaísmo moderno, se relaciona às ideologias políticas que nortearam a atuação de muitos políticos até os anos 60 e o início da crise do socialismo. Sua ilegitimidade perante a comunidade judaica não o preocupa, pois nunca se propôs a ser seu representante. É importante frisar que não foi lembrado por nenhum entrevistado como representante comunitário.

Eu nunca fiz política comunitária judaica (...). Nunca me apresentei como representante da comunidade judaica, que não sou e não quero ser, eu sou um brasileiro, carioca, que, por acaso, é judeu porque minha mãe é judia, porque todo o meu lado cultural é judeu, porque meus antepassados são judeus e eu também não abro mão deste legado cultural. Mas, pra mim, isso é muito mais um legado cultural do que compromisso étnico ou religioso com a comunidade judaica (A, do PV)

Eu voto como cidadã brasileira. Se o candidato que eu votar for judeu, ótimo. Mas não é isso que vai definir em quem eu vou votar. Se ele for bom e judeu, ‘pô, que legal ! Ele é judeu !’, mas não é uma obrigação votar no candidato só porque é judeu (M., historiadora)

Faz parte da cultura política brasileira o eleitor votar no candidato e não no partido cuja ideologia ele, teoricamente, representaria. Entre os jovens entrevistados, também há uma tendência a definir o voto mais pela proposta individual de cada candidato do que pelo programa de governo estabelecido pela legenda.

Eu nunca votei pelo partido, não gosto, aqui todo mundo muda, essa fidelidade partidária não sai... Cada um, de acordo com sua conveniência, muda sua maneira de pensar, entendeu? (L, advogada)

No Brasil, esse negócio de partidário (sic) não é muito forte, cá entre nós, então não é a coisa principal. (...) Como é importante a comunidade estar representada politicamente, eu busco direcionar meu voto de vereador e deputado estadual para a comunidade judaica (B., estudante de jornalismo)

Constatei que muitos ignoravam o partido do candidato escolhido, muitos se identificavam como capitalistas e espantavam-se ao saber que acabaram votando num candidato que concorreu pelo Partido Socialista. Seguindo este raciocínio, de que se vota na pessoa, a justificativa para os casos acima estaria dada, porém a situação é mais complexa. Houve uma significativa ascensão social por parte da segunda e terceira gerações de descendentes de imigrantes, que geralmente se alinhavam às ideias socialistas. Este processo de aburguesamento fez com que o voto judaico migrasse para os partidos considerados de centro-direita, que não mais eram identificados com o antissemitismo. A esquerda judaica se enfraqueceu, aliado ao fato de a União Soviética apoiar a causa palestina e os países árabes na época da Guerra Fria. Tudo isso, ligado aos massacres impetrados pelo regime comunista, principalmente no período stalinista, minou a força que os partidos de esquerda exerciam no interior da comunidade judaica carioca.

Talvez, se esses jovens soubessem que a sigla do candidato era o PSB, pensariam duas vezes antes de decidir o voto. Porém, o que parece ter grande peso, hoje, é a sua trajetória comunitária, independentemente se essa se iniciou no seu interior ou se foi incorporada aos poucos. Aquele que se identifica com a questão judaica, basicamente a segurança, pode conseguir boa quantidade de eleitores.

O exemplo do deputado estadual W., do Partido dos Trabalhadores, mostra como o fato de estar ligado a uma sigla que representa a esquerda mais ideológica não impede sua aceitação pelo “establishment” comunitário. O trabalho com a questão ambiental alternativa, ligada a uma política mais geral de combate às injustiças sociais, está, para ele, atrelado ao ideário socialista. A ecopolítica, portanto, não estaria acima das preferências partidárias.

Uma coisa é a ecologia do tipo ‘vamos cuidar dos jardins, viva o mico-leão-dourado’, a outra coisa e organizar a população pra ter transparência nisso tudo, mudar as tecnologias das empresas, impedir que os trabalhadores sejam contaminados dentro e fora das empresas, preservar o meio ambiente. Enfim, imputar custos pesados a quem se apropria de forma privada do patrimônio público, que é a base de nossa qualidade de vida. Então, como qualquer tema, o tema da terra pode ser apropriado de forma capitalista (...). Na verdade, é como você trata cada um desses temas, a forma como nós tratamos a questão ambiental não é tratada pela direita (...)

Esta trajetória combativa, iniciada fora do âmbito comunitário, nunca o impediu de ter certa entrada política na comunidade judaica carioca. Segundo ele, os judeus que costumavam elegê-lo eram, principalmente, profissionais liberais e intelectuais “que liam o Globo e o JB”6, que achavam-no uma pessoa honesta e, ainda por cima, era judeu. Assim como A, nunca foi um ativista comunitário, mas neste último mandato participou mais intensamente dos problemas que afligem os judeus. Criou, juntamente com outros parlamentares, o Centro de Referência contra o Racismo e o Antissemitismo, cuja ação se fez presente no fechamento da sede de uma das facções do clube de futebol Flamengo, “Nazistas da Baixada”. Acreditava que o número de eleitores judeus aumentaria de 1.200 (5% do total) para 3 ou quatro mil nas próximas eleições7 devido a essa ação.

No que a coisa pegou (o Centro de Referência), teve essa história forte de nazismo, o pessoal sentiu que eu era, além de ser um bom ecologista, um deputado ético, um cara que tava nas paradas, era um cara que ia com a polícia federal e prendia nazistas. Acho que esse foi um divisor de águas, uma coisa forte, a suástica grande pintada é uma coisa muito forte. Eu fui lá com a polícia, com a televisão, saiu em todos os jornais do país, no Jornal Nacional (da Rede Globo) e, a partir daí, eu comecei a ser chamado pra coisas que, normalmente, eu não era (debates,almoços, palestras)

Chamando para eventos no seu interior, a comunidade tenta enquadrá-lo nas suas reivindicações e torná-lo um “político judeu”. O ponto de virada, o fechamento dos “Nazistas da Baixada”, revela a importância dada à questão da segurança, um dos pontos principais para o político que deseja votos judeus, no caso aqui de parcela de sua juventude. Um outro fator que pode limpar sua imagem de “esquerdista” é a sua preocupação com a ecologia que, apesar de não a desvincular dos problemas mais globais (a ecologia é, por si só, um tema global), não é vista pelos jovens como um tema ideologizado. Na verdade, parece que é exatamente o que W. não considera como ecologia, “vamos cuidar dos jardins, viva o mico-leão-dourado”, a definição para a maioria das pessoas não familiarizadas com o tema. Sem dúvida, a ecologia, transcendendo as lutas sociais, aliada à luta contra o antissemitismo alavanca o voto étnico judaico.

Percebe-se que as motivações, que tempos atrás estariam circunscritas à questão da “direita” versus “esquerda”, se abrem para questões particulares. Combater o antissemitismo, que seria uma forma de combater qualquer tipo de preconceito através de uma pessoa da comunidade”, ou seja, individualizar a discriminação, é uma afirmação de pertencimento a um grupo específico. Talvez seja um dos motivos pelos quais o Centro de Referência se refere a “racismo” e “antissemitismo”, e não simplesmente “preconceito racial e étnico”. O resultado desta incursão pela comunidade judaica e sua reação, especificamente de parte de sua juventude, só poderá ser avaliada nas próximas eleições8. O problema do preconceito afasta W de A, na medida em que este não faz política como judeu e defende a ideia de que o antissemitismo é um mal que, no Brasil, é menos intenso do que em relação a outros grupos minoritários e que deveria ser combatido como qualquer outro tipo de racismo. Esta visão não está de acordo com o que um “candidato etnicizado” pensa ou diz que pensa, já que a universalização do discurso afasta potenciais eleitores.

Eu acho errado alimentar a paranoia na juventude judaica em torno desse tipo de coisa (o medo de antissemitismo). (...) Eu acho que o antissemitismo é uma das formas menores de racismo que existem no Brasil, o racismo contra os negros, japoneses, nordestinos é muito mais intenso do que o racismo contra os judeus, pelo menos dentro do RJ. (...) Não vejo que o antissemitismo, neste momento, seja um grande problema até dentro do espectro de manifestações racistas que possam existir (A, do PV)

Ainda em relação ao caso dos “Nazistas”, o então candidato a vereador pelo PSB (Partido Socialista Brasileiro), J., enviou cartas-propaganda às residências judias do Rio de Janeiro. Ela dizia o seguinte:

Como você acompanhou pela imprensa, fundamos, em 5 de julho deste mês, junto com a companheira R. e o deputado W o Centro de Referência contra o Racismo e o Antissemitismo, na Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro. No dia 3 de agosto, recebemos uma denúncia e, baseados na lei federal n.7716, convocamos a polícia federal e fechamos uma associação, dita esportiva, com o nome ‘Nazistas da Baixada’, que apresentava duas grandes suásticas em sua porta de entrada. O presidente da referida entidade jd foi preso e autuado, e prosseguem as diligências visando a punição de todos os responsáveis. Nós, que temos o compromisso de ações concretas contra o antissemitismo, continuamos a desenvolver nosso trabalho parlamentar priorizando a defesa da comunidade judaica e dos princípios democráticos da nossa sociedade (grifos dele).

Há uma foto de W. e J. na frente da tal associação e, na frente da correspondência há a frase “Quando o calo apertar, com quem podemos contar?”. Esta ideia, de que a consciência aflora em momentos de crise, aparece nos depoimentos dos jovens, por exemplo, quando um rapaz (já citado) afirma que este episódio fez W. se voltar para a sua comunidade. Além dessa frase, chama a atenção a ausência da sigla do partido pelo qual J. concorre, embora haja o número a ser digitado na urna eletrônica.

Quanto mais ideológico o partido, com um programa de governo bem definido e ainda dividindo os campos entre “direita” e “esquerda”, menor a possibilidade de etnicizar o discurso político. É provável que o poder de convencimento de um candidato do PSB seja menor que o de um outro do PMDB, embora o conhecimento, pelo jovem eleitor, da filiação partidária de cada um não leve, inexoravelmente, ao abandono do representante socialista. Se ele desvincular os projetos econômicos e sociais do partido de suas pretensões relativas ao bem-estar comunitário, a filiação vai tornar-se irrelevante. Note-se que o problema só ocorre com relação à esquerda do espectro político, especificamente aquela que ainda carrega a imagem de “revolução operária”, do “perigo vermelho”, do “anarquismo” e da “bagunça”9. A trajetória do candidato desacreditável é utilizada como meio de desvinculá-lo deste estigma10 .

Eu até percebo o quê que é. Muitas vezes, o cara quer o voto da comunidade. Como ele sabe que a comunidade é menos progressista, então ele diz ‘sou J’, sou judeu e sou médico, fui presidente da federação e meu número é tal’. Numa dessas, ele achava que o nome (do partido) ia tirar alguns votos, não sei... Isso é uma probabilidade (W, do PT)

Esta linha de raciocínio, de que se vota na pessoa e não no partido, também parece ter influenciado na escolha da legenda de Z., o PL. Neste caso específico, o que contava a seu favor era o fato deste partido não estar envolvido em escândalos políticos ou financeiros, eventos que poderiam manchar a imagem de respeitabilidade e confiança dos candidatos a ele filiados. É interessante notar que Z. acredita num possível desgaste político devido à crescente influência da Igreja Universal do Reino de Deus (inclusive sendo um de seus bispos o presidente nacional do partido), acusada de charlatanismo. O exemplo mais forte usado pelos adversários da seita é o dos encontros que ocorriam no estádio do Maracanã, quando milhares de fiéis lotavam as arquibancadas e doavam objetos e dinheiro. Na televisão, apareciam funcionários carregando enormes sacos com tudo o que havia sido arrecadado, daí surgindo a imagem, construída por parcela da mídia, de exploradores e charlatões.

(...) é um partido que, obviamente eu li o estatuto antes de me filiar, é um partido que eu achei muito bom. Inclusive as, digamos assim.. .o estatuto muito bom. Se são praticados é outro papo, mas pelo estatuto tem uns ideais muito bons. Achei que era um partido tranquilo, partido que não tava envolvido em escândalos, ninguém ouvia muito falar do PL, um partido ‘light’

A ascensão social de boa parte da 2’ e 3a gerações de judeus, já nascidos no país, levou a uma guinada para os partidos classificados como de centro-direita. Contudo, como pude constatar neste grupo de jovens judeus cariocas, a utilização de argumentos posicionais (Grun: op.cit), ou seja, que procuram entender as opções políticas em função de seu posicionamento na estrutura social, parece não ter validade inconteste. Creio que a questão étnica, se apropriada de modo “correto” pelo candidato “de esquerda”, se sobrepõe à questão de classe. Postular um cargo legislativo por uma legenda à esquerda do espectro político, por si só, não significa rejeição imediata, tudo dependendo da margem de manobra do candidato referente à possibilidade de utilizar um discurso particularista, direcionado ao grupo étnico, desligando-se das propostas gerais do partido. Isso é mais plausível quanto menos ideológico ele for.

O voto, quando compreendido na sua dimensão sociocultural, significa adesão a uma facção da sociedade (Kushnir: op.cit). Essa adesão ocorre por uma afinidade simbólica, representada pelo voto de confiança e honestidade do candidato, incorporado ao universo cultural do grupo em questão. Ele entende suas preocupações, sente da mesma maneira suas angústias. No caso deste grupo de jovens, a legitimidade do político está relacionada a um comportamento tido como “normal”, aceito socialmente. Trava-se, no seu interior, uma luta pelo poder de definir quais as regras a serem utilizadas pelo político na defesa dos interesses corporativos. Seu papel social projeta a própria imagem que a comunidade judaica, enquanto instituição, deseja apresentar à sociedade brasileira, e certos atributos (idade, caráter, tipo de relação com os não judeus etc.), articulados ou não, são tornados coletivos, étnicos. Sua maior ou menor legitimidade varia em função dessa luta simbólica11 .

A política étnica é uma consequência da crise do judaísmo moderno (Grin:1997). Nessa fase, havia uma intensa reflexão discursiva relativa à condição judaica e sua adaptação aos ideais universalistas surgidos com o Iluminismo. Ele queria ser incorporado aos movimentos políticos-ideológicos com propostas transnacionais e era plural, com diferentes definições. O que era tomado como oposição, etnicidade/ cidadania nacional ou público/ privado, hoje passa a ser uma relação complementar. O exercício da cidadania está ligado à liberdade de expressar seu modo de ser, ainda que diferente de uma suposta maioria, e a ambiguidade de certos políticos judeus, que querem proteger sua comunidade sem ferir a ideologia da mestiçagem brasileira, mostra como a ideia de cidadania judaica ainda soa estranha aos ouvidos. A noção de igualdade está intimamente relacionada à de liberdade, ser diferente e lutar por seus direitos no domínio público. O direito universal passa a ser a defesa do particular sem que haja contradição entre estes termos, misturando, “à brasileira”, judeidade a brasilidade.

Referências bibliográficas:

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