3.3 Discutindo o conflito Israel / Palestina sob a perspectiva brasileira
Brasil e Oriente Médio nas Nações Unidas: equidistância, pragmatismo e realismo
Boutros Boutros-Ghali comenta que ao iniciar seu mandato de secretário-geral da ONU, em 1991, a experiência então acumulada pela organização internacional no que dizia respeito ao Oriente Médio, e especialmente com relação aos problemas árabe-israelenses, fazia com esta que fosse vista como devedora por todas as partes envolvidas. “As Nações Unidas”, afirma, “contribuíram para a descolonização da maioria dos países árabes e a criação do Estado de Israel, mas ainda não resolveu o problema da descolonização da Palestina, nem teve sucesso no gerenciamento do conflito árabe-israelense. As resoluções adotadas tanto pelo Conselho de Segurança quanto pela Assembleia Geral, que se contam às centenas, serviram somente para exacerbar a dupla crise de confiança relativamente às Nações Unidas. Para Israel, as Nações Unidas eram uma verdadeira máquina de guerra feita para condenar, isolar e enfraquecer o Estado judeu. Para o mundo árabe, as Nações Unidas eram uma organização que dependia de maneira feudal dos Estados Unidos, em que as resoluções pró-árabes de apoio à causa palestina não eram jamais implementadas”2.
As ponderações de Boutros-Ghali remetem ao paradoxo que encerram as relações entre os países do Oriente Médio e a ONU. Como lembra o ex-secretário-geral, muitos dos países da região tiveram na organização internacional uma garantia para a própria existência3. A particularidade geopolítica da região fez da participação desses países na ONU um instrumento importante de sua inserção internacional, sendo os mecanismos institucionais ali oferecidos sempre largamente utilizados. Nem por isso se pode falar de uma percepção generalizada de eficiência da ONU com relação à solução das questões médio-orientais, como é, de resto, aliás, o caso de sua atuação quando considerada mais amplamente. O que se poderia concluir, então? Provavelmente, não se trata simplesmente de um problema de déficit institucional, visto que aplicações pragmáticas da Carta foram possíveis ao longo dessas mais de cinco décadas de existência da ONU. No caso do Oriente Médio, em particular, pode-se lembrar da criação da primeira força de manutenção da paz (Força de Emergência das Nações Unidas I-FENU I), manifestação da aplicação do “espírito” da Carta, ainda que se fugisse de seus termos formais.
A resposta à questão do grau de eficiência da ONU está, pelo menos em parte, ligada à necessidade de percebê-la como instrumento para a realização dos interesses de seus membros, uma vez que não se pode analisar a eficiência dos foros multilaterais a partir de um ponto de vista puramente formal, mas sim avaliando as condicionantes políticas. Em uma palavra: identificando o que seus membros buscam ao dela participar. Assim, o grau de eficiência no gerenciamento dos problemas médio-orientais na ONU tem a ver com as contradições do sistema internacional que tem na ONU um reflexo bastante evidente, bem como contradições inerentes às relações entre os países do Oriente Médio – fazem parte da região 17 Estados árabes, três não árabes e os palestinos, que se consideram árabes e são membros da Liga Árabe, fundada em 19454. Um bom exemplo do último fenômeno é justamente a solidariedade à causa palestina por parte dos Estados árabes, que praticamente não tem ido além de argumentos retóricos, servindo, na prática, a fins de legitimidade interna desses Estados que, além disso, manipulam a resistência palestina em benefício próprio5.
Historicamente, o Oriente Médio tem tido relativamente pouco peso na política externa do Brasil6. Essa é provavelmente uma das razões pelas quais pouco se escreva sobre o tema. Na ONU, o Brasil tem tido uma ação constante e exerceu oito vezes o mandato bianual de membro não permanente do Conselho de Segurança, principal órgão da organização internacional em matéria de segurança e manutenção da paz internacional (1946-1947, 1951-1952, 1954-1955, 1963-1964, 1967-1968, 1988-1989, 1993-1994, 1998-1999). A bibliografia sobre a participação do Brasil no debate sobre diversos temas na ONU é relativamente vasta, ainda que, nesse âmbito, estudos sobre os posicionamentos brasileiros com relação ao Oriente Médio sejam mais do que raros7.
Este trabalho tem por objetivo examinar como o Brasil tem se posicionado na ONU com relação à região médio-oriental. A lista de questões debatidas nesse âmbito é extremamente longa. Pretende-se aqui privilegiar somente o que se considerou relevante com o fim de estabelecer um perfil dessa atuação. Note-se, desde já, que na documentação diplomática consultada no Arquivo Histórico do Itamaraty e na documentação publicada pelo Ministério (sobretudo o Relatório Apresentado ao Presidente da República – relatório anual publicado até 1988, e Resenha de Política Exterior do Brasil, publicada de 1975 a 1995) predomina notoriamente a questão israelo-palestina8. Aqui, a expressão Oriente Médio abrangerá os países que, no Itamaraty, são tratados pela Divisão de Oriente Próximo (DOP): Arábia Saudita, Bahrein, Catar, Egito, Emirados Árabes Unidos, Iêmen, Irã, Iraque, Israel, Jordânia, Kuait, Líbano, Omã, Síria e assuntos referentes à Autoridade Palestina.
José Vicente Pimentel afirma que o padrão de voto brasileiro na ONU relativamente ao Oriente Médio desde 1947 “revela um consistente pragmatismo em defesa dos interesses brasileiros, que são condicionados por elementos da realidade, tais como: a) relevância político diplomática da região no contexto internacional e, em particular, para um país como o Brasil, que busca adequar sua inserção e visibilidade aos seus objetivos permanentes e imediatos; b) os meios disponíveis para uma atuação consequente; c) a presença no Brasil de expressivas e influentes comunidades árabe e judaica; d) a manifesta preferência das lideranças dessas comunidades por um encaminhamento pacífico das pendências do Oriente Médio, uma vez que a paz providenciaria o cenário adequado à intensificação do intercâmbio, seja no âmbito familiar, seja no econômico-social; e) a importância estratégico-econômica do Golfo Árabe/ Pérsico, região onde se concentra cerca de metade das reservas mundiais de petróleo, e o fato de os países do Golfo, tradicionais fornecedores de petróleo ao Brasil, constituírem importante mercado consumidor/ reexportador, além de serem investidores internacionais9”.
Embora corretas, porque, de fato, correspondem a elementos de continuidade nas relações entre o Brasil e o Oriente Médio na ONU, essas observações não dão conta de alterações importantes que acontecem ao longo das últimas quase seis décadas de funcionamento da organização internacional. Nesse sentido, o “estado da arte” permite-nos avançar desde já o argumento de que as mudanças ocorridas no sistema internacional, assim como o padrão de relacionamento do Brasil com os Estados Unidos, afetaram marcadamente a percepção e a ação da diplomacia brasileira na ONU com relação ao Oriente Médio, configurando uma ação governamental de autonomia relativa. Além disso, não se pode propriamente falar em uma política brasileira para a região de médio ou longo prazo, mas de uma diplomacia sobretudo reativa, guiada por interesses imediatos ou pela ausência dos mesmos10 . Considerando-se que a força motriz da política externa brasileira tem sido a busca de meios para garantir o desenvolvimento do país, a percepção da existência ou não de ocasiões para responder a tal imperativo é a principal linha de continuidade que se pode perceber.
Consideradas essas características gerais, pode-se falar de três períodos de atuação do Brasil na ONU com respeito ao Oriente Médio. O primeiro vai da criação da ONU até o final da década de 60, caracterizado pela equidistância, qualificação utilizada pelo próprio Itamaraty. O segundo período tem início durante o governo Geisel, que tenta responder aos constrangimentos do cenário internacional – em destaque a primeira crise petrolífera –, de maneira mais autônoma e pragmática. As votações brasileiras na ONU serão tendencialmente pró-árabes. O terceiro período começa ao longo dos anos 80, com a redemocratização do Brasil, o fim da Guerra Fria e a busca da atualização da política externa brasileira. A atuação multilateral brasileira continua a ser regular e, apesar de variações de cinco mandatos presidenciais (Sarney, Collor, Itamar, Cardoso, Cardoso) parece ter-se, afinal, caracterizado, pelo menos em questões relativas à paz e a segurança internacionais, pela adesão ou baixo grau de resistência ao forte grau de hegemonia exercido pelos Estados Unidos. A política para o Oriente Médio combina, assim, essa resposta realista aos condicionamentos da cena internacional com posicionamentos tradicionais – como a defesa do direito da existência de Israel, a necessidade de resolver-se a questão palestina e a busca de soluções diplomáticas para a região.
Primeiro período: a equidistância (1945-1974)
Durante os primeiros anos de funcionamento da ONU, a política brasileira caracteriza-se pelo alinhamento com os Estados Unidos em “questões capitais que envolvam a adoção de medidas de defesa da coligação ocidental contra o expansionismo soviético”11. O Brasil tem ação constante na organização internacional, participando dos diversos debates ocorridos na Assembleia Geral e no Conselho de Segurança onde, de 1946 a 1968, exerceu cinco mandatos bianuais de membro não permanente. Os votos brasileiros com relação ao Oriente Médio, região em que Guerra Fria não se manifesta em sua plenitude até meados dos anos 50, demonstram relativa independência, a busca de posicionamentos equitativos e soluções de compromisso. Distante geograficamente da região, com interesses comerciais modestos tanto nos países árabes quanto em Israel, e contando com a presença de comunidades judias e árabes no país, a diplomacia brasileira se pauta no período pela posição equidistante nas diversas questões trazidas a debate, ou seja, mantém “uma política de imparcialidade e neutralidade, embora não de indiferença”12 .
Em pelo menos três temas debatidos na ONU as posições brasileiras são exemplos dessas características do período: o Plano de Partilha da Palestina, a internacionalização de Jerusalém, a Resolução 242.
a) O Plano de Partilha da Palestina
Tullo Vigevani e Alberto Kleinas13, ao estudar de modo aprofundado a posição do Brasil na questão da partilha da Palestina, demonstram que, ainda que hajam, afinal, prevalecido posições que se enquadram na caracterização do período – a equidistância –, tensões importantes entre as autoridades no Rio de Janeiro e os representantes brasileiros em Nova Iorque antecederam esse resultado. Tendo como quadro de referência o governo Dutra, os autores apontam as divergências que aparecem na troca de correspondência sobre o tema. De um lado estava o ministro das Relações Exteriores, Raul Fernandes, preocupado com a expansão do comunismo e acreditando que o estreitamento de vínculos com os Estados Unidos coûte que coûte traria benefícios para o Brasil, que deveria, portanto, votar contra a União Soviética e sempre seguir o voto norte-americano. É importante lembrar que naquele ano – 1947 – o Brasil rompia relações diplomáticas com a União Soviética. Do outro lado estava o então representante brasileiro na ONU, Oswaldo Aranha, simpático aos Estados Unidos, porém ciente da necessidade de utilizar o alinhamento como instrumento de barganha nas negociações internacionais. Aranha percebia que o Brasil e a América Latina já não tinham a relevância dos tempos de guerra e que os interesses norte-americanos tinham se deslocado para a Europa e para a Ásia, envolvidos mais diretamente pela Guerra Fria. Daí o Brasil dever utilizar a estreita margem de manobra que lhe restava a fim de atenuar a grande assimetria que caracterizava seu relacionamento com os Estados Unidos.
Durante os meses de abril e maio de 1947, em que se realiza a sessão extraordinária da Assembleia Geral para discutir sobre a questão da Palestina, e em outubro e novembro do mesmo ano, quando a Assembleia reúne-se em sessão anual ordinária, a delegação brasileira enfrenta a difícil tarefa de respeitar as instruções de Raul Fernandes, uma vez que, na realidade, Estados Unidos e União Soviética tinham posições muito próximas no que se referia à questão da partilha da Palestina, o que “chegava mesmo a criar constrangimentos” à delegação14 .
Esse tipo de problema, que ganha proporções caricaturais com a distância temporal, é demonstrado na troca de correspondência entre a delegação em Nova Iorque e o Rio de Janeiro15. Talvez pela dificuldade em conseguir demonstrar a fidelidade brasileira aos Estados Unidos ao mesmo tempo em que rechaçava as posições da União Soviética, que, como referido, entendiam-se sobre a questão da Palestina, em 20 de outubro, poucos dias antes da sessão histórica em que o Plano de Partilha é votado, a Secretaria de Estado instruía Aranha para que se abstivesse na votação sobre o Plano, “dada a oposição dos árabes e a existência no Brasil de uma grande colônia sírio-libanesa”. E completava as instruções: “Todavia, se esse voto nulo impedir os dois terços necessários para a aprovação da resolução da partilha, devemos votar de acordo com as grandes potências, às quais incumbirá a responsabilidade de pô-la em prática. Vossa Excelência, em todo caso, procederá de acordo com seu próprio ponto de vista se for diverso do que deixamos indicado, dado que seus elementos de informação são mais completos”16 .
No dia 29 de novembro, foi aprovada a Resolução 181, que estabelecia a proteção dos lugares santos, o estatuto internacional de Jerusalém – que ficaria sob tutela da ONU –, e o Plano de Partilha da Palestina.
O Brasil justificaria seu voto de 29 de novembro declarando que “quaisquer que sejam as críticas à partilha – e as mais procedentes se referem à ineficácia da implementação prevista para a manutenção tanto [da] divisão política, quanto da unidade econômica – não há [como] negar que ela era, dentro das circunstâncias, a única solução plausível”17. Além de confirmar a estreita margem de manobra com que atuavam os delegados brasileiros na ONU, devendo atender às instruções de Raul Fernandes, ditadas por seu ferrenho anticomunismo18 , a afirmação reflete o sentimento de que a implementação da Resolução 181 estava largamente comprometida, uma vez que não fora aceita pelos palestinos nem pelos Estados árabes.
b) A internacionalização de Jerusalém
Embora tenha votado em favor do Plano de Partilha da Palestina e, assim, contribuído à criação de Israel, o Brasil absteve-se na votação na Assembleia Geral com relação à adesão israelense à ONU, em maio de 1949, por causa do descumprimento da Resolução 181 e das resoluções relativas aos refugiados palestinos. Jerusalém encontrava-se ocupada por Israel (cidade nova) e pela Transjordânia, que em junho de 1949 adota o nome de Jordânia (cidade velha). Entre os membros latino-americanos, El Salvador e o Brasil mantêm uma clara posição de condicionar a adesão à “estrita implementação por Israel das resoluções relativas à internacionalização de Jerusalém e à questão dos refugiados árabes”, nas palavras de um delegado salvadorenho19 . O governo brasileiro só estabeleceu relações diplomáticas plenas com Israel em 1952.
O governo brasileiro enfrentaria dificuldades face à política israelense de querer ver legitimada sua presença em Jerusalém. Em 1963, insistia Israel, oficiosamente, para que o Brasil transferisse sua representação diplomática de Tel-aviv para Jerusalém, sua capital desde 1950, alegando que quatro países latino-americanos já o haviam feito (Venezuela, Uruguai, Guatemala e Panamá), e oferecendo a doação de uma sede “condigna para aquela Missão”20 .
A proposta não deixou de encontrar adeptos no Itamaraty, convencidos da irreversibilidade da situação. Posições provavelmente mais consequentes mostravam aqueles que se ocupavam diretamente dos assuntos relativos ao Oriente Médio, avaliando a questão de outra perspectiva. Defendiam o ponto de vista de que aceitar tal proposta significaria contribuir para uma situação de fato, em contradição com os reiterados votos brasileiros pela internacionalização de Jerusalém. Considerando o peso da comunidade católica no Brasil, entendiam que se deveria levar em conta o posicionamento do Vaticano, que não alterara sua posição favorável à internacionalização de Jerusalém. Além disso, ao se pensar na “aura financeira da comunidade judaica”, dever-se-ia, igualmente, lembrar que a decisão desagradaria aos países árabes, com os quais o Brasil tinha bom relacionamento e interesses comerciais a defender. O resultado das démarches israelenses em nada resulta, mantendo o Brasil sua embaixada em Tel-aviv.
Dois anos mais tarde, novamente o governo brasileiro viu-se na desconfortável situação de resistir às pressões israelenses para aceitar Jerusalém como local da assinatura de um convênio suplementar ao “Acordo Básico de Cooperação Técnica”, firmado entre os dois governos em 1962. O convênio em negociação versava sobre a utilização de energia atômica para fins de pesquisa científica e uso pacífico. O então embaixador de Israel em Brasília, Yossef Nahmias, argumentava junto ao Itamaraty que diversos acordos com vários países vinham sendo assinados em Jerusalém e que seria inaceitável pensar-se em criar precedentes que pudessem colocar em questão a tendência crescente da comunidade internacional de aceitar Jerusalém como capital de Israel. Produzia-se aí um impasse: de um lado, o Itamaraty relutando em assinar o convênio em Jerusalém e em politizar a assinatura de um acordo técnico; de outro, o governo israelense fechando questão em torno dessa cerimônia em Jerusalém, sem o que o convênio não se realizaria.
Ao longo das trocas de memorandos entre setores que lidavam com a questão no Itamaraty, avançou-se a posição, que o tempo confirmaria como a mais acertada, de que o governo brasileiro deveria resistir às pressões israelenses, notadamente porque, pela própria natureza do convênio a ser estabelecido, os dois países beneficiavam-se de sua realização e que, portanto, barganhar qualquer tipo de vantagem política seria inconcebível. Além disso, ao firmar e manter acordos com Israel, o governo brasileiro já prestava apoio indireto à sua aceitação como Estado na região. O Convênio sobre a Utilização da Energia Nuclear para Fins Pacíficos viria a ser assinado, em 1966, no Rio de Janeiro, e o imbróglio não chegou a inserir elementos críticos no relacionamento entre os dois países.
c) A Resolução 242
Considera-se que, ao dar início à Guerra dos Seis Dias, no dia 5 de junho de 1967, o governo israelense tenha reagido à hostilidade de seus vizinhos, sobretudo do Egito de Nasser21 . Daí o imediato apoio da comunidade internacional em seu favor.
Nas horas seguintes ao início do conflito, o Conselho de Segurança reúne-se e, depois de longas conversações, adota, no dia 6 de junho, a Resolução 233, que pede o imediato cessar-fogo e o cessamento de toda atividade militar na área, como “primeiro passo” para a solução do problema – a retirada das tropas israelenses das áreas ocupadas durante conflito era condicionada à cessação da beligerância. Nessas reuniões do Conselho, a Argentina e o Brasil, então membros do órgão, limitam sua atuação praticamente a questões de ordem humanitária. A Resolução 237, por exemplo, aprovada em 14 de junho, foi copatrocinada pelos dois países e pela Etiópia. Inter alia, a resolução solicita ao governo israelense garantir a segurança dos habitantes das áreas afetadas pelo conflito e que todas as partes nele envolvidas respeitassem os princípios humanitários das Convenções de Genebra de 1949.
No dia 13 de junho, o representante soviético solicita a convocação da Assembleia Geral. A quinta sessão especial de emergência da Assembleia Geral reúne-se em junho-julho com a missão formal de assegurar o retorno ao status quo anterior a 5 de junho. O sentimento geral é o de que a sessão deveria buscar uma fórmula que servisse de base para a paz justa e duradoura no Oriente Médio. Ao contrário das reuniões do Conselho, o Brasil, conjuntamente com a Argentina, tem nessa sessão um desempenho significativo. No entanto, tampouco logra a Assembleia Geral resultados sobre possíveis fórmulas para a solução do conflito22 .
O Conselho de Segurança retoma, então, a questão em outubro. Argentinos e brasileiros participam novamente de maneira coordenada e contribuem significativamente para os resultados alcançados nessa ocasião23 . As duas delegações apresentam uma proposta de projeto de resolução que contempla os seguintes itens: retirada das forças israelenses de todos os territórios ocupados simultaneamente à cessação do estado de beligerância, garantia de livre navegação nas águas internacionais da região, criação de zonas desmilitarizadas e solução para o problema dos refugiados. Argentina e Brasil decidem, ainda, que apoiariam qualquer projeto de resolução cujos termos respeitassem os mesmos princípios e tivessem chances de ser aceitos pelas partes em conflito24 .
No começo de novembro, um projeto de resolução é apresentado pela Grã-Bretanha, com texto bastante similar ao projeto de resolução argentino-brasileiro, o que convence argentinos e brasileiros a apoiá-lo. O Conselho de Segurança adota enfim, por unanimidade, em 22 de novembro de 1967, a Resolução 242, que determina “a retirada das forças armadas israelenses dos territórios ocupados durante o conflito recente”; o fim do estado de beligerância e o direito de todos os Estados da região viverem em paz em seus territórios, delimitados por fronteiras seguras e reconhecidas; a liberdade de navegação nas águas internacionais da região; a necessidade de encontrar-se solução equitativa para a questão dos refugiados; a inviolabilidade territorial e independência política dos Estados da área através do estabelecimento de zonas desmilitarizadas, e a nomeação pelo Secretário-Geral de um Representante Especial, com a missão de encontrar uma solução pacífica, aceita pelas partes envolvidas e que respeitasse os demais dispositivos da resolução25 .
Segundo período: o pragmatismo (1974-1985)
Nos anos que precedem ao período Geisel (1974-1979), percebe-se na documentação diplomática uma crescente atenção do governo brasileiro dirigida ao Oriente Médio que, “por sua posição estratégica por suas reservas petrolíferas, pela riqueza e multiplicidade de sua composição racial, cultural e religiosa, é zona de influência importantíssima na balança de poder mundial [...].26“ Essa atenção aumentará visivelmente com o início do governo Geisel, uma vez que o sucesso de seu projeto de desenvolvimento, que dá ênfase à diversificação e modernização industrial, depende dramaticamente da importação de petróleo. Já em 1974, por exemplo, o Brasil é o maior importador do produto entre os países em desenvolvimento e o sétimo em escala mundial. Os mesmos 15% da receita das exportações brasileiras que eram em 1972 destinados à compra de petróleo, saltam para cerca de 40% dois anos mais tarde27 .
Concomitantemente, os constrangimentos internacionais ganham largas proporções. Com a Guerra do Yom Kippour, de 1973, a unidade afro-árabe reforça-se. Doravante, os Estados que apoiem Portugal, África do Sul ou Israel arriscam ter o fornecimento de petróleo suspenso. Em 24 de novembro de 1973, é passada uma resolução entre 15 Estados africanos que incluía o Brasil entre os seis países a sofrerem boicote diplomático e no fornecimento de petróleo caso não cessassem de apoiar o governo de minoria branca sul-africano. Manifestações árabes no mesmo sentido aconteceriam nos meses seguintes28. Importando cerca de 80% do total do petróleo consumido, o Brasil apresenta uma grande vulnerabilidade face ao drástico aumento do preço do petróleo do final de 1973.
Na realidade, poucos dias antes do final do governo Médici, o ministro das Relações Exteriores, Gibson Barboza anuncia a grande mudança da política externa brasileira para o Oriente Médio. Em janeiro de 1974, o ministro recebe oficialmente Fouad Naffah, chanceler libanês e representante da Liga dos Estados Árabes, e declara ser o Brasil a favor da imediata retirada israelense de todos os territórios ocupados em 1967 e da solução para a questão palestina. O adjetivo “equidistante” não será mais utilizado para caracterizar as posições brasileiras com relação à região médio-oriental29 .
A partir de então, as relações com países em desenvolvimento, sobretudo a América Latina e a África, tornam-se prioritárias. A dimensão multilateral da política externa brasileira passa a orientar-se pelo esforço do governo em modificar a hierarquia internacional e assegurar avanços em suas relações bilaterais, notadamente com os países árabes30. Na ONU, os países do terceiro mundo aproveitam sua vantagem numérica para enfrentar a liderança ocidental. O Grupo dos 77, que reúne esses países (mais de uma centena, na realidade), passa a comandar grande parte das comissões e subcomissões dos diversos órgãos da ONU.
a) A Resolução 3379
O voto brasileiro na sessão ordinária da Assembleia Geral de 1975, em favor da Resolução 3379, representa uma mudança aguda no padrão de voto da diplomacia brasileira, orientado pela equidistância. É verdade que o Brasil enfrenta então enormes constrangimentos internacionais resultantes de sua dependência do petróleo árabe e que o governo israelense encontra-se isolado na ONU desde o final do conflito de 1967 por não aceitar o recuo dos territórios ocupados. Ainda assim, a correspondência trocada entre o Itamaraty e os delegados brasileiros na ONU demonstra que houve um erro de cálculo na avaliação das repercussões que teria o apoio brasileiro à Resolução que qualifica o sionismo como forma de racismo e de discriminação racial.
Pouco após a votação, o embaixador brasileiro em Nova Iorque, Sérgio Corrêa da Costa, comenta sua surpresa quanto às reações que a aprovação da resolução, “de valor declaratório”, havia suscitado na Europa e na América Latina. Os delegados brasileiros sentem seus contatos esfriarem-se com muitas delegações31 .
Ernesto Geisel diria sobre o assunto, mais de vinte anos depois, que era contra a maneira evasiva, típica da diplomacia, se posicionar, e contra o hábito do Itamaraty abster-se em votações quando era sabido que desagradaria aos norte-americanos. “Não aceitei isso, dizendo que era uma covardia. Se o Brasil tem uma opinião, ele tem que defender o seu ponto de vista e votar de acordo com sua convicção. Estou convencido até hoje de que o sionismo é racista. Não sou inimigo dos judeus, inclusive porque em matéria religiosa sou muito tolerante. Mas como é que se qualifica o judeu, quando é que o indivíduo é judeu? Quando a mãe é judia. O judaísmo se transmite pela mãe. O que é isso? Não é racismo? [...) Por que eu não posso declarar isso ao mundo?” Acrescentaria que o Brasil não tinha produção de armas suficiente que pudesse justificar, como fora suposto, o voto favorável à Resolução 3379. Ou seja, não procedia o argumento de que, com o voto, o governo pretendera agradar os países árabes com vistas a patrocinar a venda de armas de produção brasileira àqueles países32 .
Walder de Góes, jornalista que cobriu de maneira muito próxima o período Geisel, afirma que “o Chanceler Azeredo da Silveira levou o assunto ao presidente depois de motivado por um telefonema de Nova Iorque. Como a votação se faria no dia seguinte, Geisel autorizou o voto favorável à proposta que considerava o sionismo uma forma de discriminação racial. No dia seguinte, constatado o equívoco político do voto, Geisel pediu à chancelaria que modificasse a posição adotada. O voto brasileiro foi proferido na terceira Comissão (Comissão Política) e somente cinco dias depois a votação definitiva se faria na Assembleia-Geral. O Brasil iria recuar do voto originalmente dado, por ter o presidente verificado que a pressa e a insuficiência de informações induziram-no a erro de decisão. Não o fez, todavia, porque, naquele ínterim, o Departamento de Estado norte-americano, através de porta-voz, criticou a posição do Brasil, ferindo os brios nacionais brasileiros”33 .
Outra versão é dada pelo Sr. Eliézer Burla, líder da comunidade judaica no Rio de Janeiro e consultor de empresas à época. O Sr. Burla tinha contato pessoal e regular com o presidente da República, assim como com Golbery do Couto e Silva e pessoas do entourage do presidente. Hospedava-se, inclusive, no Palácio do Planalto nos dois dias que passava regularmente por semana em Brasília. Após ter sido dado o voto em plenária da Assembleia Geral, o presidente Geisel teria solicitado ao Sr. Burla que viesse ao Palácio do Planalto para uma conversa sobre o assunto. O Sr. Burla relata que o presidente teria explicado que o governo não tinha tido condições de mudar seu voto. O então embaixador norte-americano no Rio de Janeiro havia-lhe escrito solicitando que o Brasil mudasse sua posição, carta que havia sido publicada em diversos jornais. Não admitindo essa atitude, que entendia como pressão, Geisel decide manter o voto favorável à resolução antissionista. Conta ainda o Sr. Burla que, depois da entrevista com o presidente, conversara a sós com Golbery do Couto e Silva e contara-lhe que quem havia, na verdade, mandado publicar a carta na imprensa fora o ministro das Relações Exteriores, Azeredo da Silveira, para evitar que o presidente decidisse pela mudança do voto, lamentando o fato de o presidente estar sendo manipulado por pessoas de sua confiança34 .
b) Os palestinos
Ao final da guerra entre judeus e árabes de 1948-49, cerca de 650 mil palestinos árabes deslocam-se em direção dos países vizinhos, estabelecendo-se especialmente na Jordânia e no Egito35 . Viu-se que a abstenção do Brasil na votação de adesão de Israel à ONU, em 1949, devia-se ao não cumprimento da Resolução 181 e ao desrespeito às resoluções adotadas com relação aos refugiados palestinos. A Resolução 194, de dezembro de 1948, estabelece inter alia o direito dos refugiados retornarem aos seus lares e a indenizações pelos bens daqueles que decidirem não regressar aos seus lares e pelos bens perdidos e/ ou danificados36 .
A gravidade da situação dos refugiados palestinos não é desconhecida do Itamaraty, mas acaba, com o avançar dos anos, sendo relegada à retórica condenatória a Israel, sem grandes consequências para esse Estado, como a questão de Jerusalém. Em 1948, escrevia do Cairo T. Graça Aranha: “O Embaixador Americano, que está regressando de sua viagem à Palestina, ao Líbano e à Síria, onde foi verificar a situação dos refugiados árabes emigrados dos territórios palestinenses ocupados, disse-me que se encontrava muito impressionado com a situação dessa pobre gente, numa indescritível miséria. Viu mais de 1500 crianças em desamparo, quase todas contaminadas por terríveis doenças. Não acha solução para o assunto, nenhum país querendo receber esses refugiados e a volta deles à Palestina parecendo coisa muito problemática. Enquanto isso, acrescentou o Embaixador, os judeus do mundo inteiro, mormente dos Estados Unidos, enviam continuamente somas enormes ao Estado de Israel.”.
A Assembleia Geral cria, em 1949, a Agência de Auxílio e Obras das Nações Unidas para os Refugiados do Oriente Médio (United Nations Relief and Works Agency, UNRWA), com mandato para prestar assistência humanitária aos refugiados palestinos. O Brasil vota favoravelmente à resolução que cria a Agência e tem votado a favor das resoluções que chamam a atenção da comunidade internacional para a necessidade de apoiar seu trabalho, assim como as ações em geral de apoio ao povo palestino. Em 1964, por exemplo, com relação à sessão da Assembleia Geral daquele ano, a diplomacia brasileira registrava que “[n]a discussão sobre os refugiados árabes da Palestina evidenciou-se, mais uma vez, o tradicional antagonismo das posições árabes e hebraica, cujo veemente diálogo absorveu dois terços do debate geral. A situação da UNRWA é precária (...). A iniciativa de um projeto de resolução equidistante (...) este ano como nos derradeiros coube à delegação dos Estados Unidos, maior contribuinte para a manutenção da Agência. O Brasil, coerente com sua atitude costumeira, não participou do debate, limitando-se a votar favoravelmente à proposta norte-americana, no que foi acompanhado pelos latino-americanos (...).”
A partir de 1974, o governo brasileiro passa a defender mais explicitamente o direito palestino de autodeterminação e manifesta-se com maior frequência contra ocupação territorial pela força na região, não chegando, porém, a aprovar atos terroristas ou resoluções da ONU que questionassem a existência do Estado de Israel ou propusessem sua expulsão da organização internacional. Na imprensa brasileira abranda-se a censura às notícias relativas aos palestinos e aos regimes radicais árabes. Evita-se mencionar o terrorismo palestino, enquanto reitera-se a importância e as vantagens da intensificação do comércio e a cooperação entre o Brasil e os países do Oriente Médio. De toda maneira, a política israelense já é bastante contestada à época e a defesa reiterada da causa dos árabes palestinos afina-se com a simpatia que passa a granjear internacionalmente, principalmente na ONU, onde o terceiro mundo aponta como força decisiva37 .
O discurso de Azeredo da Silveira, novo chanceler brasileiro, na sessão da Assembleia Geral de 1974, enuncia as mudanças da política externa brasileira. Explicita o apoio do Brasil à independência da África portuguesa, condena veementemente o apartheid e nos seis parágrafos dedicados à situação do Oriente Médio – o dobro do máximo que a região ocupara até então nessas ocasiões – não deixa de mencionar a situação dos palestinos na região: “O drama do Oriente Médio se amplia e se universaliza na medida em que envolve aspectos humanos que não podem ser ignorados. É impossível à comunidade das Nações omitir-se nos seus esforços inclusive junto aos povos do Oriente Médio para que atendam, com as medidas adequadas, ao sofrimento do povo palestino. É desumano pensar que será equitativa e ilusório esperar que será duradoura qualquer solução que não atenda aos seus direitos.38“ Naquele ano, o Brasil vota favoravelmente à resolução que convida a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) a participar da Assembleia Geral a título de observador39 .
Vê-se, pois, que além da diversificação de parcerias externas tão almejada no período Geisel, há que se mencionar novamente a magnitude que ganha a causa palestina no período, fenômeno que se beneficia, de um lado, do maior peso do movimento terceiro-mundista na ONU e, de outro, da condenação à política israelense, percebida cada vez mais como intransigente e inaceitável.
A Assembleia Geral de 1977 estabelece que o dia 29 de novembro, dia em que fora aprovado o Plano de Partilha da Palestina em 1947, seria comemorado todos os anos como o Dia Internacional de Solidariedade ao Povo Palestino. O Brasil apoia a decisão, mas ausenta-se durante a votação da Resolução 31/20, que prevê a criação de um Estado palestino na Faixa de Gaza e na Cisjordânia, com a administração interina da ONU e posterior transferência à OLP. A prudência do governo, que justifica sua posição pela necessidade de se aprofundar as discussões, não deixa de frustrar os delegados árabes e fazê-los saber que não poderiam contar com o apoio incondicional brasileiro40 .
As relações formais entre o Brasil e os palestinos têm início em 1975,41 quando o governo brasileiro autoriza a OLP a designar representante em Brasília, no escritório da Liga dos Estados Árabes. Em 1993, a representação passa à categoria de “Delegação Especial Palestina” e, em abril de 1998, já figura na lista do Corpo Diplomático, no item “Países e Delegações”. Atualmente, a Delegação Especial Palestina possui embaixador e delegado de Missão, cargos exercidos por Musa Salim Odeh42 .
Terceiro período: o realismo (1985-2002)
Para melhor compreender as posições brasileiras na ONU com relação ao Oriente Médio a partir de 1985 e, principalmente, a partir do final da Guerra Fria, é interessante observar a percepção da diplomacia brasileira sobre a conjuntura internacional e o que resulta como orientação e prioridades para buscar então a inserção internacional adequada para o Brasil. Nesse sentido, Alexandra de Mello e Silva analisa os pronunciamentos diplomáticos brasileiros desse contexto e observa que dois momentos distintos aparecem: o primeiro pós-Guerra Fria e o segundo pós-Guerra Fria.
O primeiro pós-Guerra Fria vai da queda do Muro de Berlim, em 1989, à Guerra do Golfo em 1990/91. Nele a diplomacia brasileira mostra-se otimista e satisfeita com a ordem internacional, pois considera que predominam internacionalmente forças de integração. Estas forças engendram a constituição de uma comunidade internacional, pois seus membros partilham dos mesmos valores básicos (as regras do mercado e da democracia liberal). O papel da ONU é revalorizado. O Conselho de Segurança, não mais paralisado pelos vetos constantes de Estados Unidos e União Soviética, passa a mostrar-se mais eficaz, a exemplo de sua atuação durante a Guerra do Golfo.
O segundo pós-Guerra Fria começa com a desintegração da União Soviética e da antiga Iugoslávia. Ganham força os conflitos intraestatais, de natureza étnica, religiosa, etc. Os problemas que surgem nas diversas operações de paz estabelecidas no período (na Bósnia e na Somália), bem como a atuação o Conselho de Segurança durante a crise no Haiti, fazem do órgão o alvo de muitas críticas e sua reforma e ampliação é rediscutida. O otimismo e a crença no bom funcionamento do sistema internacional dá lugar, portanto, a uma orientação realista, que entende que as instâncias internacionais devem adequar-se à existência de novos polos de poder. O sistema internacional redefine então suas regras e o Brasil, por reunir uma série de atributos que o qualificam a uma maior participação na elaboração dos novos mecanismos regulatórios das relações internacionais, coloca-se como candidato a um assento permanente no Conselho de Segurança43 .
É no contexto do Segundo Pós-Guerra Fria que o Brasil exerce seu oitavo mandato bianual no Conselho de Segurança, entre janeiro de 1998 e dezembro de 1999. Entre outubro de 1997 e fevereiro de 1998, acontece mais uma das graves crises entre o Iraque e os Estados Unidos/ Conselho de Segurança. Ver-se-á que, mesmo com contradições, a atitude que a diplomacia brasileira assume no episódio (janeiro/ fevereiro de 1998) pode ser compreendida como resultado da leitura que o Itamaraty tem da cena internacional e das margens de manobra que o Brasil desfruta. A duplicidade da diplomacia brasileira na ocasião, assumindo posições diversas em frentes diferentes, permite que se constate a coexistência de uma visão pautada na equidistância e na busca de soluções jurídicas diplomáticas, de um lado, e uma visão realista das relações internacionais, de outro. Esse realismo difere daquele que inspira o Pragmatismo Responsável do período Geisel, nacionalista e preocupado com a ampliação das bases de autonomia do país. O novo realismo não confronta o hegemon, aceitando servir-lhe, inclusive, caso este seja o caminho para galgar uma nova posição na hierarquia internacional.
a) A crise Iraque/Estados Unidos/Conselho de Segurança (outubro 1997-fevereiro 1998)
Em consequência da invasão iraquiana ao Kuait, em agosto de 1990, o Conselho de Segurança adota a Resolução 678, que autoriza seus membros a utilizar “os meios necessários” (leia-se: a força) para assegurar a implementação de suas demais resoluções que exigiam a retirada do Iraque do Kuait e o restabelecimento da paz e da segurança internacionais na área. Com base nessa resolução, a aliança militar liderada pelos Estados Unidos dá início às operações militares contra o Iraque, em 17 de janeiro de 1991. Em 28 de fevereiro, é estabelecido o cessar-fogo, sob condição de que o Iraque destrua seu arsenal de armas de destruição massiva. Uma equipe é criada pela ONU para inspecionar a destruição desses arsenais (United Nations Special Commission, Unscom).
Em outubro de 1997, Richard Butler, novo chefe da Unscom, equipe que trabalha no Iraque há mais de sete anos, entrega ao Secretário-Geral da ONU um relatório em que se afirma não ter o governo iraquiano cumprido com suas obrigações sobre desarmamento, fazendo especialmente menção à existência de armas biológicas. Duas semanas mais tarde, o Iraque proíbe a participação de cidadãos norte-americanos na Unscom e nas semanas seguintes a situação deteriora-se: Saddam Hussein passa a proibir a inspeção dos palácios presidenciais; os Estados Unidos anunciam que intervirão militarmente (operação Trovão no Deserto); Madeleine Albright, secretária de Estado, visita os países do Golfo em busca de apoio para a intervenção militar; Estados Unidos e Grã-Bretanha concentram tropas no Golfo e buscam, no Conselho de Segurança – onde China, França e Rússia insistem sobre a necessidade de uma saída diplomática – o sinal verde para a intervenção armada44 .
O ataque ao Iraque não se concretiza imediatamente como desejam os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, já que o apoio dos países do Golfo não é conseguido e o Conselho de Segurança não dá autorização para a intervenção. Nesse ínterim, entre as várias démarches diplomáticas norte-americanas, está de buscar o apoio dos membros não permanentes, entre eles, o Brasil.
É com esse objetivo que Bill Richardson, embaixador dos Estados Unidos na ONU, encontra-se no dia 6 de fevereiro de 1998, no Brasil, com o presidente Fernando Henrique Cardoso e com o ministro Luiz Felipe Lampreia. Após o encontro o ministro Lampreia anuncia que “se a solução diplomática não for possível, o Brasil dispõe-se a apoiar uma solução militar”45 . No dia 15, reitera-se essa posição: “Consoante sua tradição diplomática, o Brasil estima que se devam esgotar todos os recursos de negociação com o Iraque. (...) Considera, no entanto, que, diante da gravidade a situação, todas as opções permanecem sobre a mesa. Não exclui, portanto, o recurso a outros meios, esgotados os esforços diplomáticos.”
Essas declarações apresentam como novidade o fato de o governo brasileiro admitir que a intervenção militar norte-americana pudesse se dar sem a devida autorização do Conselho de Segurança, posição que contraria aquilo que a própria representação brasileira no Conselho de Segurança defende há anos, ou seja, a necessidade de uma saída diplomática e a exclusão da utilização da força sem autorização do órgão46 .
Fica evidenciada, pois, a duplicidade que assumem as manifestações em Nova Iorque e Brasília. Essa ambiguidade é assinalada por alguns jornais de grande circulação, onde se lamenta o fato de o Brasil não manter a posição de independência e neutralidade que mantivera até o momento com relação a várias questões trazidas ao Conselho. Alguns veem nessa atitude a tentativa de angariar a simpatia das autoridades norte-americanas para também obter seu apoio à candidatura brasileira ao assento permanente no Conselho, caso este fosse reformado47 .
No dia 23 de fevereiro é anunciado o acordo entre o secretário-geral, Kofi Annan, e Saddam Hussein para a solução pacífica da crise. Os Estados Unidos são constrangidos a recuar da decisão de intervir militarmente.
Embora não seja fácil avaliar os eventuais benefícios do duplo posicionamento do Brasil nessa ocasião, deve-se, mais uma vez, observar que, sobretudo durante 1998-1999, os pronunciamentos brasileiros perante o Conselho demonstram a insistência sobre a necessidade soluções diplomáticas para problemas que surgem com o Iraque. Demonstram, ainda, a constante preocupação com a população civil iraquiana e defendem o abrandamento das obrigações impostas ao Iraque, bem como a expansão do mecanismo oil-for-food, estabelecido pela Resolução 986, em 1995. Contrastam em muito, portanto, com o rápido apoio obtido em Brasília após a visita do representante norte-americano e demonstram que, lado a lado à coerência histórica desses apelos diplomáticos, encontram-se atitudes mais realistas ou visivelmente mais imediatistas, manifestadas por altas autoridades no Itamaraty. Embaladas pela possibilidade de alcançar maior status internacional para o Brasil, abandonam a um segundo plano posições já historicamente consolidadas.
Conclusão
Há mais de vinte anos, o processo de paz entre Israel e os palestinos tem sido conduzido, sobretudo, bilateralmente, com o patrocínio da administração norte-americana. No âmbito da ONU, a Resolução 3379, que considerava o sionismo como uma forma de racismo e de discriminação racial, foi anulada pela Assembleia Geral de 1991, com o voto favorável do Brasil, que continua a manifestar sua preocupação com os lugares santos e com o destino dos palestinos. O Brasil atualmente não é membro do Conselho de Segurança, mas os representantes brasileiros na ONU têm se dirigido ao órgão “para deplorar fortemente os ataques terroristas e a utilização de homens-bomba que visam alvos civis israelenses, bem como o excessivo uso da força pelos militares israelenses também contra alvos civis e com o objetivo de destruir a infraestrutura dos territórios palestinos ocupados.” Conclamam também as partes a retomar o diálogo com base nas resoluções 242 e 33848 . Em discurso inaugural à sessão da Assembleia Geral de setembro 2002, o ministro das Relações Exteriores, Celso Lafer, reiterou o apoio brasileiro à criação de um Estado palestino e ao direito à existência do Estado de Israel, dentro de fronteiras reconhecidas49 .
Com relação ao problema iraquiano, o governo tem tido posições mais brandas do que o anunciado em 1998 pelo ministro Lampreia, que admitia apoiar ações militares norte-americanos mesmo sem a necessária autorização do Conselho de Segurança. Celso Lafer tem afirmado que “o uso da força no plano internacional somente pode ser admitido se esgotadas todas as alternativas de solução diplomática. (...) No caso específico do Iraque, o Brasil sustenta que cabe ao Conselho de Segurança decidir as medidas necessárias para assegurar o pleno cumprimento das resoluções pertinentes50”.
O ministro Lafer também tem chamado a atenção para o fato de que “o Conselho de Segurança precisa ser reformado de modo a aumentar sua legitimidade e criar bases mais sólidas para a cooperação internacional na construção de uma ordem internacional justa e estável” e que “o Brasil já manifestou – e o reitero neste momento – que está pronto a dar a sua contribuição para o trabalho do Conselho de Segurança e a assumir todas as suas responsabilidades”. Não se abandonou, portanto, a pretensão ao assento permanente no Conselho de Segurança, mas os discursos oficiais têm dado maior ênfase à visão grociana que o Brasil tem do mundo, onde dificilmente caberia o aval à utilização da força para dirimir conflitos internacionais51 .
Enfim, apesar da complexidade que encerram as relações do Brasil com a região médio-oriental no âmbito da ONU, tentou-se neste estudo caracterizar, ainda que aproximativamente, momentos diversos dessas relações. Pela distância temporal e o acesso a uma gama bastante razoável de documentação e bibliografia, pôde-se tratar com maior detalhe e precisão dos dois primeiros períodos. Com efeito, tanto a equidistância quanto o pragmatismo parecem suficientemente ilustrados pela existência de momentos paradigmáticos. Quanto à equidistância, há que pensar particularmente no voto favorável que o Brasil dá ao Plano de Partilha, de interesse de Israel, ao mesmo tempo em que respeita a internacionalização de Jerusalém, a despeito das pressões israelenses. O pragmatismo é claramente demonstrado pelo apoio do Brasil à resolução que considera o sionismo como forma de racismo e de discriminação racional, ainda que se tenha lá chegado por caminhos bastante tortuosos. Finalmente, para dimensionar as alterações que aparecem no período qualificado neste estudo como realista, vale lembrar a reação do presidente Geisel às supostas pressões norte-americanas quando da votação da resolução antissionista e, como contraponto, mais de vinte anos mais tarde, a reação do ministro Lampreia à visita do representante norte-americano na ONU, em busca do apoio brasileiro à intervenção militar no Iraque. Provavelmente pensando-se na possibilidade de obter o apoio norte-americano à candidatura brasileira a um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, atua-se realisticamente, convergindo com a potência norte-americana, ainda que em detrimento, repita-se, de posições historicamente consolidadas.