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Chamava-se Domenico Scandella, conhecido por Menocchio. Nascera em 1532 (quando do primeiro processo declarou ter 52 anos), em Montereale, uma pequena aldeia nas colinas do Friuli, a 25 quilômetros de Pordenone, bem protegida pelas montanhas. Viveu sempre ali, exceto dois anos de desterro após uma briga (1564-65), transcorridos em Arba, uma vila não muito distante, e numa localidade não precisada da Carnia. Era casado e tinha sete filhos; outros quatro haviam morrido. Declarou ao cônego Giambattista Maro, vigário-geral do inquisidor de Aquileia e Concórdia, que sua atividade era “de moleiro, carpinteiro, marceneiro, pedreiro e outras coisas”. Mas era principalmente moleiro; usava as vestimentas tradicionais de moleiro — veste, capa e capuz de lã branca. E foi assim, vestido de branco, que se apresentou para o julgamento.
Alguns anos depois, disse aos inquisidores que era “paupérrimo”: “Não tenho nada além de dois moinhos de aluguel e dois campos arrendados, e com isso sustentei e sustento minha pobre família”. Mas, sem dúvida, Menocchio estava exagerando. Mesmo se boa parte da colheita servisse para pagar o aluguel (provavelmente em espécie) dos dois moinhos, além das pesadas taxas sobre a terra, devia sobrar o bastante para sobreviver e ainda para os momentos difíceis. Tanto é que, quando se encontrava desterrado em Arba, alugara de imediato outro moinho. Quando sua filha Giovanna se casou (Menocchio tinha morrido havia dois meses), recebeu o correspondente a 256 liras e nove soldos — um dote não muito rico, mas bem menos miserável em comparação aos hábitos da região no período.
No conjunto, a posição de Menocchio no microcosmo social de Montereale aparenta não ter sido das mais desprezíveis. Em 1581 havia sido podestá (magistrado) da aldeia e dos vilarejos ao redor (Gaio, Grizzo, San Leonardo, San Martino) e ainda cameraro , isto é, administrador da paróquia de Montereale, em data não precisada. Não sabemos se aqui como em outras localidades do Friuli o velho sistema de rotação de cargos fora substituído pelo sistema eletivo. Nesse caso, o fato de saber “ler, escrever e somar” deve ter favorecido Menocchio. Os administradores, em geral, eram escolhidos quase sempre entre pessoas que tinham frequentado escola pública de nível elementar, às vezes aprendendo até um pouco de latim. Escolas desse tipo existiam também em Aviano ou em Pordenone: Menocchio deve ter passado por uma delas.
Em 28 de setembro de 1583 Menocchio foi denunciado ao Santo Ofício, sob a acusação de ter pronunciado palavras “heréticas e totalmente ímpias” sobre Cristo. Não se tratara de uma blasfêmia ocasional: Menocchio chegara a tentar difundir suas opiniões, discutindo-as (“praedicare et dogmatizare non erubescit”; ele não se envergonhava de pregar e dogmatizar). Esse fato agravava muito sua situação.
Tais tentativas de proselitismo foram amplamente confirmadas pela investigação que se abriu um mês depois em Portogruaro e prosseguiu em Concórdia e na própria Montereale. “Discute sempre com alguém sobre a fé, e até mesmo com o pároco” — foi o que Francesco Fasseta comentou com o vigário-geral. Segundo outra testemunha, Domenico Melchiori: “Costuma discutir com todo mundo, mas, quando quis discutir comigo, eu lhe disse: ‘Eu sou sapateiro; você, moleiro, e você não é culto. Sobre o que é que nós vamos discutir?’”. As coisas da fé são grandes e difíceis, fora do alcance de moleiros e sapateiros. Para debater é preciso doutrina, e os depositários da doutrina são sobretudo os clérigos. Porém, Menocchio dizia não acreditar que o Espírito Santo governasse a Igreja, acrescentando: “Os padres nos querem debaixo de seus pés e fazem de tudo para nos manter quietos, mas eles ficam sempre bem”; e ele “conhecia Deus melhor do que eles”. E, quando o pároco da vila o levara a Concórdia para se encontrar com o vigário-geral, a fim de que suas ideias clareassem, dizendo-lhe “esses seus caprichos são heresias”, tinha prometido não se meter mais em tais assuntos — todavia, logo depois recomeçou. Na praça, na taverna, indo para Grizzo ou Daviano, vindo da montanha — “não se importando com quem fala”, comenta Giuliano Stefanut, “ele geralmente encaminha a conversa para as coisas de Deus, introduzindo sempre algum tipo de heresia. E então discute e grita em defesa de sua opinião”.
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Não é fácil entender pelos autos do processo qual era a reação dos conterrâneos de Menocchio às suas palavras. É claro que ninguém estava disposto a admitir ter escutado com aprovação os discursos de um suspeito de heresia. Pelo contrário, alguns se preocuparam em comentar com o vigário-geral que conduzia o inquérito a própria reação indignada. “Menocchio, pelo amor de Deus, não vai falando essas coisas por aí!” — teria exclamado, segundo ele mesmo afirmou, Domenico Melchiori. Giuliano Stefanut testemunha: “Eu lhe disse várias vezes, especialmente uma, indo para Grizzo, que eu gostava dele, mas não podia suportar seu jeito de falar das coisas da fé, que sempre discutiria com ele e que, se cem vezes me matasse e depois eu voltasse a viver, continuaria a me deixar matar pela fé”. O padre Andrea Bionima havia até mesmo feito uma ameaça velada: “Cale a boca, Domenego, não diga essas coisas, porque um dia você se arrepende”. Outra testemunha, Giovanni Povoledo, dirigindo-se ao vigário-geral, arriscou uma definição, embora genérica: “Tem má fama e tem opiniões erradas, como aquelas da seita de Lutero”. Entretanto, esse coro de vozes não deve nos enganar. Quase todos os interrogados declararam conhecer Menocchio havia muito tempo: uns, havia trinta, quarenta anos; outros, 25; outros, ainda, vinte. Um deles, Daniele Fasseta, disse conhecê-lo “desde moleque, com o nariz sujo, já que éramos da mesma paróquia”. Aparentemente algumas afirmações de Menocchio remontavam não apenas há poucos dias, mas há “muitos anos”, até mesmo há trinta anos. Durante todo esse tempo ninguém o denunciara na cidade, embora seus discursos fossem conhecidos por todos. As pessoas repetiam as palavras dele, algumas com curiosidade, outras balançando a cabeça. Nos testemunhos recolhidos pelo vigário-geral não se percebe o que se chamaria de verdadeira hostilidade em relação a Menocchio; no máximo, desaprovação. É verdade que entre aqueles existiam parentes, como Francesco Fasseta ou Bartolomeo di Andrea, primo de sua mulher, que o definiram como “homem de bem”. O próprio Giuliano Stefanut, que havia enfrentado Menocchio, dizendo-se pronto “a morrer pela fé”, acrescentou: “Eu gosto dele”. [Esse moleiro, que já tinha sido magistrado da aldeia e administrador da paróquia, decerto não vivia à margem da comunidade de Montereale. Muitos anos depois, quando do segundo processo, uma testemunha declarou: “Eu o vejo conversando com muita gente e acho que é amigo de todo mundo”. E, apesar disso, a certa altura dispararam uma denúncia contra ele que abriu caminho para o inquérito.
Os filhos de Menocchio, como veremos, identificaram de imediato o pároco de Montereale, dom Odorico Vorai, como o anônimo delator. Não estavam enganados. Entre os dois existia uma velha diferença: já fazia quatro anos que Menocchio ia se confessar em outra cidade. O testemunho de Vorai, que fechou a fase informativa do processo, foi particularmente evasivo: “Não posso me lembrar bem do que ele disse. Tenho memória fraca e estava com outras coisas na cabeça”. Aparentemente ninguém melhor do que uma pessoa na posição dele para dar informações ao Santo Ofício sobre o assunto, contudo o vigário-geral não insistiu. Não era preciso: fora o próprio Vorai, instigado por outro padre, dom Ottavio Montereale, pertencente a uma família senhorial do lugar, que transmitira as evidências circunstanciais em que o vigário-geral se baseou para interrogar as testemunhas.
A hostilidade do clero local pode ser facilmente explicada. Como já vimos, Menocchio não reconhecia, na hierarquia eclesiástica, nenhuma autoridade especial nas questões de fé. “Que papa, prelado, padres, qual o quê! E dizia essas palavras com desprezo, dizia que não acreditava neles” — comentou Domenico Melchiori. De tanto discutir e argumentar pelas ruas e tavernas da cidade, Menocchio deve ter acabado por se contrapor à autoridade do pároco. Mas o que é que realmente Menocchio dizia?
Só para termos uma ideia, não só blasfemava “desmesuradamente”, como sustentava que blasfemar não é pecado (segundo uma testemunha, teria dito que blasfemar contra os santos não é pecado, mas contra Deus é), acrescentando com sarcasmo: “Cada um faz o seu dever; tem quem ara, quem cava e eu faço o meu, blasfemar”. Em seguida fazia estranhas afirmações que os conterrâneos relatavam de maneira fragmentada, desconexa, ao vigário-geral. Por exemplo: “O ar é Deus [...] a terra, nossa mãe”; “Quem é que vocês pensam que seja Deus? Deus não é nada além de um pequeno sopro e tudo mais que o homem imagina”; “Tudo o que se vê é Deus e nós somos deuses”; “O céu, a terra, o mar, o ar, o abismo e o inferno, tudo é Deus”; “O que é que vocês pensam, que Jesus Cristo nasceu da Virgem Maria? Não é possível que ela tenha dado à luz e tenha continuado virgem. Pode muito bem ser que ele tenha sido um homem qualquer de bem, ou filho de algum homem de bem”. E se dizia ainda que possuía livros proibidos, em particular a Bíblia em vulgar: “Está sempre discutindo com um ou com outro, possui a Bíblia em vulgar, e imagina que a base de seus argumentos esteja ali, e continua obstinadamente insistindo neles”.
Os testemunhos se acumulavam; Menocchio pressentia que alguma coisa estava sendo preparada contra ele. Foi então falar com o vigário de Polcenigo, Giovanni Daniele Melchiori, seu amigo desde a infância. Este o incentivou a se apresentar espontaneamente ao Santo Ofício, ou ao menos a obedecer de imediato a uma eventual convocação. Avisou a Menocchio: “Diga o que eles estão querendo saber, não fale demais e muito menos se meta a contar coisas; responda só o que for perguntado”. Alessandro Policreto, um ex-advogado que Menocchio encontrara por acaso na casa de um amigo comerciante de madeira, também o aconselhara a se apresentar aos juízes e a admitir sua culpa, mas, ao mesmo tempo, aconselhou-o a declarar que nunca acreditara em suas próprias afirmações heréticas. E assim Menocchio foi a Maniago, atendendo à convocação do tribunal eclesiástico. Mas no dia seguinte, 4 de fevereiro, dado o andamento do inquérito, o inquisidor em pessoa — o frade franciscano Felice da Montefalco — ordenou que o prendessem e “levassem algemado” para os cárceres do Santo Ofício de Concórdia. Em 7 de fevereiro de 1584 Menocchio foi submetido a um primeiro interrogatório.
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Apesar dos conselhos, demonstrou-se muito loquaz, ainda que procurasse expor sua própria posição sob uma luz mais favorável do que aquela que se depreendia dos testemunhos. Assim, mesmo admitindo ter alimentado dúvidas quanto à virgindade de Maria dois ou três anos antes, e ter falado sobre isso com várias pessoas, entre as quais o padre de Barcis, observou: “É verdade que eu falei disso com várias pessoas, mas não forçava ninguém a acreditar; pelo contrário, convenci muitos dizendo: ‘Vocês querem que eu ensine a estrada verdadeira? Tente fazer o bem, trilhar o caminho dos meus antecessores e seguir o que a Santa Madre Igreja ordena’. Mas aquelas palavras que eu disse antes eu dizia por tentação, porque acreditava nelas e queria ensiná-las aos outros; era o espírito maligno que me fazia acreditar naquelas coisas e ao mesmo tempo me instigava a dizê-las aos outros”. Com tais palavras Menocchio confirmava a suspeita de que ele tivesse desempenhado, na aldeia, o papel de professor de doutrina e de comportamento (“Vocês querem que eu ensine a estrada verdadeira?”). Quanto ao conteúdo heterodoxo desse tipo de prédica, não é possível ter dúvidas — principalmente no momento em que Menocchio expôs sua singularíssima cosmogonia, da qual o Santo Ofício já ouvira comentários confusos: “Eu disse que segundo meu pensamento e crença tudo era um caos, isto é, terra, ar, água e fogo juntos, e de todo aquele volume em movimento se formou uma massa, do mesmo modo como o queijo é feito do leite, e do qual surgem os vermes, e esses foram os anjos. A santíssima majestade quis que aquilo fosse Deus e os anjos, e entre todos aqueles anjos estava Deus, ele também criado daquela massa, naquele mesmo momento, e foi feito senhor com quatro capitães: Lúcifer, Miguel, Gabriel e Rafael. O tal Lúcifer quis se fazer de senhor, se comparando ao rei, que era a majestade de Deus, e por causa dessa soberba Deus ordenou que fosse mandado embora do céu com todos os seus seguidores e companhia. Esse Deus, depois, fez Adão e Eva e o povo em enorme quantidade para encher os lugares dos anjos expulsos. O povo não cumpria os mandamentos de Deus e ele mandou seu filho, que foi preso e crucificado pelos judeus”. E acrescentou: “Eu nunca disse que ele se deixara abater feito um animal” (foi uma das acusações feitas contra ele; em seguida admitiu que talvez pudesse ter dito qualquer coisa do gênero). “Eu disse bem claro que se deixou crucificar e esse que foi crucificado era um dos filhos de Deus, porque todos somos filhos de Deus, da mesma natureza daquele que foi crucificado. Era homem como nós, mas com uma dignidade maior, como o papa hoje, que é homem como nós, mas com maior dignidade do que nós porque pode fazer. Aquele que foi crucificado nasceu de são José e da Virgem Maria.”
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Durante o inquérito preliminar, diante das estranhas opiniões referidas pelas testemunhas, o vigário-geral perguntara primeiramente se Menocchio estava falando “sério” ou “brincando”; em seguida, se era são de mente. Em ambos os casos a resposta foi muito clara: Menocchio estava falando “sério” e “dentro de sua razão [...] não estava louco”. Depois de já iniciado o interrogatório, um dos filhos de Menocchio, Ziannuto, por sugestão de alguns amigos do pai (Sebastiano Sebenico e um não identificado Lunardo), espalhou pela cidade o boato de que o pai era “louco” ou “possesso”. Mas o vigário não lhe deu atenção e o processo continuou. Pensou-se em liquidar as opiniões de Menocchio, em especial sua cosmogonia, fazendo-as passar por um amontoado de extravagâncias ímpias porém inócuas (o queijo, o leite, os vermes-anjos, o Deus-anjo criado do caos), mas tal ideia foi abandonada. Cem, 150 anos depois, Menocchio provavelmente teria sido trancado num hospício, e o diagnóstico teria sido “tomado por delírio religioso”. Todavia, em plena Contrarreforma, as modalidades de exclusão eram outras — prevaleciam a identificação e a repressão da heresia.
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Vamos deixar de lado, provisoriamente, a cosmogonia de Menocchio para acompanharmos o desenrolar do processo. Logo após seu encarceramento, um de seus filhos, Ziannuto, tentara socorrê-lo de várias maneiras: procurou um advogado, um tal de Trappola, de Portogruaro; esteve em Serravalle para falar com o inquisidor; obteve da prefeitura de Montereale uma declaração a favor do prisioneiro que foi enviada ao advogado, com a perspectiva, em caso de necessidade, de conseguir outros atestados de boa conduta: “Se for necessária a comprovação da prefeitura de Montereale de que o prisioneiro se confessava e comungava todo ano, o padre a dará; se for necessária a comprovação de ter sido magistrado e administrador de cinco vilas, será dada; ter sido administrador da paróquia de Montereale e ter feito sua obrigação com louvor, será dada; ter sido coletor de dízimos da igreja da paróquia de Montereale, será dada... ”. Além disso, com os irmãos, induziu por meio de ameaças o pároco de Montereale — a seus olhos, o principal responsável por todo o acontecido — a escrever uma carta para Menocchio, que se encontrava nos cárceres do Santo Ofício. Nela sugeria-lhe que prometesse “total obediência à Santa Igreja; dizendo que não acreditava e nunca acreditara em nada que não fossem os mandamentos de Deus e da Igreja e que pretendia viver e morrer na fé cristã, dentro do que a Santa Igreja romana, católica e apostólica ordena; ou melhor (sendo necessário), pretendia perder a vida e outras mil se houvesse pelo amor de Deus e da santa fé cristã, sabendo que devia a vida e todas as outras coisas boas à Santa Madre Igreja... ”. Aparentemente Menocchio não reconheceu por trás dessas palavras a mão do seu inimigo, o pároco; atribuiu-as a Domenego Femenussa, um mercador de lã e madeira que aparecia sempre no moinho e de vez em quando lhe emprestava dinheiro. No entanto, seguir as sugestões da carta sem dúvida nenhuma lhe pesava muito. No final do primeiro interrogatório (7 de fevereiro) exclamou com evidente relutância, dirigindo-se ao vigário-geral: “Senhor, o que eu disse por inspiração de Deus ou do demônio não confirmo nem desminto, mas lhe peço misericórdia e farei o que me for ensinado”. Pedia perdão, todavia não renegava nada. Durante quatro longos interrogatórios (7, 16, 22 de fevereiro e 8 de março) ele se manteve firme diante das objeções do vigário, negou, fez comentários, rebateu. “Consta no processo”, disse-lhe o vigário Maro, “que teria dito não acreditar no papa, nem nas regras da Igreja, e que não sabia de onde saía tamanha autoridade de alguém como o papa.” Menocchio retrucou: “Eu peço a Deus onipotente que me faça morrer agora se eu disse isso que Vossa Senhoria afirmou”. Mas era verdade que dissera que as missas para os mortos eram inúteis? (Segundo Giuliano Stefanut, as palavras pronunciadas por Menocchio num dia em que voltavam da missa foram: “Por que é que vocês dão essas esmolas em memória daquelas poucas cinzas?”.) “Eu disse”, explicou Menocchio, “que é preciso tentar fazer todo o bem até quando se está neste mundo, porque depois é o senhor Deus quem governa as almas. As orações, esmolas e missas para os mortos são feitas, eu acho, por amor a Deus, o qual faz o que bem entender. As almas não vêm pegar as orações e as esmolas. Fica à majestade de Deus receber essas boas obras em benefício dos vivos ou dos mortos.” Ele imaginava que essa fosse uma hábil explanação, mas de fato contradizia a doutrina da Igreja em relação ao purgatório. “Tente falar pouco” — havia sido o conselho do vigário de Polcenigo, que era seu amigo e o conhecia desde a infância. Porém Menocchio, evidentemente, não conseguia se controlar.
De repente, por volta do fim de abril, verificou-se um fato novo. Os priores venezianos convidaram o inquisidor de Aquileia e Concórdia, frei Felice da Montefalco, a agir de acordo com os hábitos vigentes nos territórios da República, que impunham, nas causas do Santo Ofício, a presença de um magistrado secular ao lado dos juízes eclesiásticos. O conflito entre os dois poderes era tradicional. Não sabemos se nessa ocasião houve também a intervenção do advogado Trappola a favor do seu cliente. O fato é que Menocchio foi levado ao palácio do magistrado, em Portogruaro, com a finalidade de confirmar na sua presença os interrogatórios concluídos até aquele momento. Depois disso, o processo recomeçou.
Por mais de uma vez, no passado, Menocchio tinha dito aos conterrâneos estar pronto e mesmo desejoso de declarar suas “opiniões” sobre a fé às autoridades religiosas e seculares. “Disse para mim”, comentou Francesco Fasseta, “que, se ele caísse nas mãos da justiça por isso, iria pacificamente, mas, se fosse maltratado, teria muito o que falar contra os superiores sobre as más obras destes.” Acrescentou Daniele Fasseta: “Domenego disse que, se ele não temesse pela própria vida, falaria tanto que surpreenderia a todos. Eu acho que queria falar sobre a fé”. Na presença do magistrado de Portogruaro e do inquisidor de Aquileia e Concórdia, Menocchio confirmou o testemunho: “É verdade, eu disse que, se não tivesse medo da justiça, falaria tanto que iria surpreender; e disse que, se me fosse permitida a graça de falar diante do papa, de um rei ou príncipe que me ouvisse, diria muitas coisas e, se depois me matassem, não me incomodaria”. Então incentivaram-no a falar: Menocchio abandonou qualquer reticência. Era dia 28 de abril.