O casaco
Certo dia, no apartamento do Section 8 de sua avó, no Brooklyn, Maurice contou quantas pessoas estavam naquela sala minúscula: doze. Nem todos os presentes moravam lá, mas eram assíduos frequentadores – primos, tios, amigos, viciados, vizinhos e pessoas dormindo pelos cantos. Era dessa forma que Maurice vivia: brigando por espaço em um lugar imundo. Mas, depois que sua mãe foi presa – depois de perder a pessoa que ele mais amava –, Maurice não suportava mais viver em meio àquela loucura. Então, decidiu sair.
Ele conhecia bem as ruas. Salas de jantar enormes, um jarro grande cheio de moedas e presentes embalados com fitas de cetim poderiam surpreendê-lo, mas as ruas eram algo que ele conhecia muito bem. Havia crescido pelo menos uns sete centímetros desde que o conhecera, era alto para sua idade, magro e forte – agora já era muito mais um homem do que um garoto. Sentia-se seguro para sobreviver fora de casa; sabia como pedir comida, despistar policiais e ser durão sempre que houvesse a necessidade. E, pelo menos duas ou três vezes por mês, ele ainda podia me encontrar na cidade. Creio que aqueles encontros eram mais importantes para Maurice do que nunca. Eram a única dose de normalidade no mundo que se tornava cada vez mais hostil a ele.
Maurice sabia onde poderia dormir: no decadente Kung Fu Theater, na 42nd Street, Times Square. O nome oficial do lugar era Times Square Theater, mas lá se passavam filmes de kung fu o tempo todo. Maurice pedia o dinheiro nas ruas para pagar o ingresso, encontrava um assento no fundo, ajeitava-se nele e dormia durante a noite, com o som estridente dos golpes de kung fu enchendo a sua cabeça. Durante o dia, pedia dinheiro e comprava um ingresso para o cinema do outro lado da rua e assistia várias vezes seguidas ao filme de Eddie Murphy, Um príncipe em Nova York. Deve tê-lo assistido trezentas vezes. Sabia todas as falas de cor.
Ele se infiltrava no YMCA na West 59 Street para tomar um banho e de vez em quando voltava ao Brooklyn para visitar a avó. Nunca ficava lá por muito tempo e ninguém jamais lhe perguntou onde ele estava vivendo, tampouco onde estava dormindo. Por um tempo, continuou frequentando a I.S. 131, até que foi transferido para outra escola, exclusiva para crianças especiais. Não sabia exatamente o que aquilo significava, até que percebeu que a maioria dos alunos tinha sérios problemas mentais e emocionais. Como não se sentia parte do mundo deles, parou de ir à escola alguns meses depois. Por volta dos dezesseis anos, parou de estudar.
O desafio de Maurice agora era encontrar uma maneira de conseguir dinheiro. Não queria mais mendigar. Havia uma solução óbvia, tangível e possível: ele poderia, assim como todos os homens da sua família, vender drogas. Nada lhe traria mais dinheiro do que vender crack. Sabia como o negócio era lucrativo, porque via os seus tios trazendo pilhas e pilhas de dinheiro para casa. Tinha o conhecimento necessário para traficar: sabia onde conseguir a droga, como prepará-la e onde vendê-la. Maurice poderia ter entrado no negócio das drogas em um segundo, e logo no primeiro dia teria faturado centenas de dólares. Quando saiu de casa e estava morando nas instalações do cinema, refletiu sobre essa possibilidade – pensou e repensou. Estava lutando contra si mesmo e tentando encontrar um motivo para não entrar nesse mundo.
Mas algo o deteve. Algo lhe dizia que aquele era um caminho sem volta. Decidiu ir a uma agência de mensageiros em Manhattan. Havia agências que contratavam jovens para transportar correspondências, pacotes e documentos de empresa para empresa. A primeira agência recusou Maurice, assim como a segunda e a terceira, mas ele continuou tentando. Finalmente, a Bullet Messenger Manpower decidiu lhe dar uma chance. Maurice transportava caixas de arquivos, cartas e documentos legais e cruzava a cidade para entregá-los; viajava de metrô percorrendo a ilha de Manhattan e ganhava oito dólares por hora. Parou de pedir dinheiro nas ruas para sempre.
Maurice gostava de receber o salário e saber que aquele dinheiro havia sido conquistado com o suor do seu trabalho. Gostava tanto do dinheiro que queria ganhar mais. Ele observara o negócio das drogas e percebera que o sucesso dependia de inteligência e energia, ambas qualidades que ele possuía. Sabia que poderia ser mais esperto que qualquer um nas ruas; poderia se tornar um mestre das vendas, comprando, vendendo e movimentando mercadorias. Então decidiu entrar no mercado das vendas – não de drogas, mas de jeans.
Maurice ia a um bairro chinês e comprava calças jeans falsificadas da Guess. Pagava sete dólares por cada uma e as revendia por até 40 dólares. Isso aconteceu no final dos anos 1980, quando a venda de jeans falsificados estava em alta na cidade de Nova York. No início, revendia os jeans para os colegas mensageiros, depois para traficantes e suas respectivas namoradas. Descobriu que conseguia ganhar centenas de dólares por semana com essas vendas. Com frequência, ia ao Brooklyn levar um pouco de dinheiro à sua avó para que ela pudesse comprar comida e cuidar de si mesma. Não contava a ela de onde vinha o dinheiro e ela também não perguntava. Maurice sabia que a venda de jeans falsificados era ilegal, mas não tinha onde morar, passava necessidades e não tinha certeza sobre seu futuro. Diante de tais circunstâncias, nem sempre é fácil traçar uma linha clara entre o bem e o mal. A prioridade para Maurice era sobreviver e ganhar dinheiro suficiente para ajudar sua família; sob essa pressão, a escolha que ele fez, de vender jeans em vez de crack e cocaína, era, para ele, certa e razoável.
Depois de certo tempo, Maurice conseguiu dinheiro suficiente para sair do Kung Fu Theather. Alugou um quarto em um hotel barato, onde passava a noite por 45 dólares – o tipo de lugar que aluga quartos por hora, frequentado por prostitutas e seus clientes. Era sujo, barulhento e perigoso, mas para Maurice significava muito.
Era a primeira vez em toda sua vida que ele tinha um quarto só para ele, além de uma cama e chuveiro.
Foi assim que Maurice sobreviveu. Ficou certo tempo na Covenant House, na Times Square – um abrigo que hospedava jovens sem moradia, mas não gostava de lá e logo saiu. Fez até algo que antes seria impensável para ele. Foi ao escritório da Bureau of Child Welfare. Esperava que eles o enviassem para um abrigo de garotos onde pelo menos teria refeições, uma cama para dormir e a chance de solucionar as coisas. Mas eles encontraram seus registros e descobriram que Maurice estava sob a guarda da avó. Descobriram onde ela morava e o enviaram de volta para lá.
Então Maurice voltou a viver nas ruas.
A mãe dele voltou para casa. Após cumprir dois anos e meio de sua pena, saiu da prisão e o governo a enviou para um abrigo na violenta seção Brownsville do Brooklyn. Concederam-lhe um apartamento de dois quartos, o que significava que Maurice poderia morar com ela. E foi o que ele fez. Morariam juntos apenas os dois – as irmãs de Maurice estavam morando com seus namorados –, o que era a melhor condição de vida que Maurice já havia tido. Sua mãe estava limpa, pelo menos por enquanto, e não havia primos, tios ou traficantes obrigando-o a sair dali. Eram apenas Darcella e Maurice, mãe e filho juntos.
Até o dia em que Maurice chegou em casa e viu um homem baixo e magro sentado na cozinha, conversando com sua mãe:
– Quem é ele? – Maurice questionou.
– É o seu pai – ela respondeu.
Ele não via o pai desde os seis anos de idade – desde o dia em que sua mãe apareceu com um martelo para trazê-lo para casa. Naquele verão, Morris pedira para ficar com o filho e, por algum motivo, Darcella concordara. Durantes aqueles três meses, Maurice quase morreu de subnutrição, desenvolveu uma infecção na pele e perdeu tanto peso que as costelas sobressaltavam pela pele. A negligência extrema do pai poderia ter sido fatal, mas Darcella chegou a tempo. Ela usou um martelo para expulsar Morris e a namorada, e levou Maurice com ela. Depois daquele dia, o pai desapareceu da vida de Maurice.
Agora, tantos anos depois, ele estava de volta.
Maurice ficou chocado ao ver quão fraco e magro seu pai estava. A arrogância e a prepotência se foram; agora, ele parecia apenas velho. Ainda assim, as lembranças ruins continuavam lá, e Maurice não ficou feliz ao vê-lo.
– O que ele está fazendo aqui? – Maurice perguntou à mãe. – Manda ele ir embora.
Depois de dizer isso, Maurice virou-se e saiu, sem dizer uma palavra sequer ao pai.
Pouco tempo depois, Maurice escutou nas ruas que Morris tinha aids. Talvez ele tivesse contraído a doença ao usar uma agulha contaminada ou ao ter relações sexuais sem proteção. Maurice via o pai nas ruas e se afastava, mas também sentia pena dele. Morris era o homem mais poderoso que Maurice já conhecera, corajoso, temido por todos, e ali estava esse mesmo homem vagando pelas ruas, aparentando o dobro da idade que tinha. Um dia, Maurice o viu tropeçar e cair na calçada. Sem pensar, correu imediatamente para ajudá-lo. Depois disso, eles passaram a conversar esporadicamente, o que permitiu ao garoto a chance de perguntar algo que ele sempre quis saber:
– Cara, por que você tem que ser assim? Eu deveria querer ser como você, mas você me fez querer ser completamente diferente. Por que você tem que ser assim?
Morris sussurrou:
– Era a única maneira que eu conhecia.
E então ele se desculpou, repetidamente:
– Me desculpa, filho. Você não vê o quanto estou triste? Nunca seja igual a mim. Não quero que você seja igual a mim.
Maurice viu o pai ficar cada vez mais fraco e magro. Pouco antes de morrer, ele procurou Maurice na rua e o parou para conversar.
– Sei que eu nunca fiz muito por você, mas tem uma coisa que eu gostaria que você fizesse por mim.
Maurice se preparou para o pedido.
– O que quero te pedir é que o nome do seu filho seja Maurice.
Maurice sempre odiou o próprio nome, porque era o nome do seu pai, do avô e do bisavô. Sabia que jamais daria o próprio nome ao filho, de jeito nenhum. Mas aquele homem velho estava doente e Maurice teve pena dele, então respondeu:
– Tudo bem. Farei isso.
Poucos dias depois, um vizinho contou a Maurice que seu pai tinha falecido naquela manhã. Era Halloween. Maurice foi até o apartamento onde seu velho morava e o encontrou deitado no chão, ao lado de um colchão. Maurice se abaixou, segurou o pai nos ombros e o colocou sobre a cama. Ficou surpreso ao sentir que o corpo estava muito leve. O cara mais agressivo do Brooklyn, o rei da Tomahawks, havia se transformado em pele e osso. Maurice esperou até que uma ambulância chegasse. Assistiu a ambulância levando-o. Em seguida, saiu do apartamento e foi para a rua.
Maurice não me contou que seu pai tinha morrido. Estava tentando me poupar, como sempre fazia, de mais um capítulo triste e difícil de sua vida. Porém, as emoções complexas que ele sentia pelo pai – a aspereza, as cicatrizes e os assuntos mal resolvidos daquela relação – eram algo com que eu podia me identificar. Assim como podia compreender, como qualquer outra pessoa, como uma história familiar turbulenta influencia a vida de uma pessoa, o quanto as coisas que carregamos da nossa infância definem os adultos que nos tornamos.
Além das nossas divergências em relação a Maurice – o que não era pouco –, Michael e eu estávamos nos dando bem. Michael nunca me impediu de manter a amizade com Maurice e eu continuei a vê-lo. Por fim, ele me acompanhou nos encontros com o garoto e nós três compartilhamos várias refeições e passeios. Michael percebeu o quanto Maurice era especial e finalmente passou a entender porque ele era tão importante para mim. Certo ano, Michael cedeu e permitiu que eu convidasse Maurice para passar o Natal conosco. Nancy e seu marido e Steven também vieram e tivemos um Natal maravilhoso – mas não foi como os velhos tempos na casa de Annette. Não posso dizer que Michael se apegou a Maurice de fato; ele mantinha uma parede entre eles. Senti-me muito feliz por Maurice fazer parte das nossas vidas, e ele também estava feliz, mas ficava cada vez mais claro que o meu sonho de trazê-lo para morar conosco jamais se tornaria realidade. Nunca sequer toquei no assunto.
Por outro lado, a teimosia de Michael me preocupava também. Eu tinha quarenta anos agora e a chance de ter um bebê estava se esvaindo. Ter filhos não era um assunto sobre o qual Michael e eu havíamos conversado antes de nos casarmos, o que foi um grande erro. Na época, eu estava me divertindo tanto com ele que me envolvi na nossa relação e nunca pensei em ter essa conversa. Sabia que ele me amava e, na minha concepção, as pessoas que se amam desejam ter filhos. Não pensei que isso seria um problema.
Então, após pouco mais de um ano de casamento, finalmente sentei com Michael para conversarmos.
– Quero ter uma família. Desejo ter filhos – eu disse.
Michael olhou para o chão e depois para mim.
– Não tenho interesse em ter outro filho – afirmou.
Eu esperava que houvesse um pouco de discussão, mas aquele tom direto, a determinação, foi um choque. Disse a ele o quanto era importante para mim ter um filho e que tinha certeza de que seria uma mãe maravilhosa, e perguntei se ele não tinha nem um pouco de interesse em saber como seria um filho nosso.
– Nem um pouco – respondeu.
Michael tinha dois filhos crescidos e os amava profundamente. Tinha muito orgulho deles, mas na sua opinião o trabalho com os filhos já havia terminado. Disse a ele que eu cuidaria de tudo; levantaria para alimentar o bebê, pagaria uma babá, tudo que pudesse facilitar ao máximo a nossa vida. Porém, Michael permaneceu irredutível, da mesma maneira que estava em relação a Maurice. Continuei insistindo e, por volta da nossa trigésima discussão a respeito do assunto, ele deu sua palavra final.
– Não há o que discutir, Laura. Não terei outro filho de forma nenhuma.
Perdi as forças diante dele e fiquei muito abalada. Tinha uma ferida aberta, cuidei dela o máximo que pude e esperei que ela se curasse e desaparecesse. Mas a causa do ferimento continuou sendo uma fonte de dor. Com o passar do tempo, essa dor se tornou um ressentimento, que tentei afastar para poder continuar vivendo. Mas a dor continuou lá, escondida mas não muito distante.
Então, aos poucos, abri mão do meu sonho. Sempre quis ter dois filhos, porque nunca quis que meu filho ou filha se sentissem sozinhos. Quando completei 42 anos, percebi que tinha tudo, mas não tinha tempo hábil para engravidar de dois filhos. Ainda que, por um milagre, eu conseguisse convencer Michael, provavelmente teria apenas um. Pareceu-me um pouco de egoísmo da minha parte – eu estava pensando apenas em mim e não na criança. Não me lembro exatamente quando aconteceu. Talvez não tenha sido um momento, um dia ou uma semana; mas, com o passar do tempo, o meu sonho de anos, de uma vida toda, simplesmente deixou de existir.
Todas as histórias, sejam sobre o que forem, são sobre perda. E talvez sejam histórias sobre o que deveria ter acontecido. Eu queria pais felizes e amorosos dançando valsas na sala de estar. Queria desesperadamente ter meus próprios filhos. Todos queremos relacionamentos saudáveis e bem resolvidos, e às vezes isso simplesmente não acontece. Mas a beleza da vida é que, nessas decepções, estão escondidas as maiores bênçãos. Tudo o que perdermos e tudo aquilo que deveria ter acontecido enaltece o que temos de verdade.
Penso a respeito do meu pai e sobre como a nossa relação era dúbia. Ele dominou minha infância, mas quando cresci me recusei a aceitar que ele exercesse o mesmo poder sobre mim. Simplesmente o ignorei. Ao mesmo tempo, me sentia mal por ter de abandonar os meus irmãos e deixá-los sozinhos cuidando dele durante sua velhice. Não queria fugir da minha responsabilidade. Então, eu passei a voltar para Long Island pelo menos uma ou duas vezes por mês para vê-lo, ajudar a arrumar a casa e fazer qualquer coisa para ajudar Nancy – que era quem mais cuidava do meu pai. Steven, que ainda morava com ele, tinha de suportar todo o peso da amargura do velho.
Na primavera de 1987, fui até Long Island e limpei a casa de cima a baixo. Lavei as roupas, dobrei os lençóis, recolhi as bitucas de cigarro. Estava quase terminando a limpeza quando ele chegou de algum lugar. Às vezes, ele ficava feliz em me ver e tudo corria muito bem; mas, se ele estivesse furioso com algo, agia da mesma maneira de sempre: praguejava, criticava, desdenhava. Naquele dia, ele começou a pegar no meu pé imediatamente. Não me lembro o que ele disse, acho que bloqueei suas palavras da minha memória. Estava cansada e irritada, então perdi o controle e o enfrentei:
– A vida inteira você foi um valentão – eu disse, enfurecida. – Você torturou a minha mãe, e por isso ela morreu de câncer. Atormentou Frank e por isso ele é gago e tem uma vida tão difícil. Você maltratou todos nós e eu estou de saco cheio. Não vou mais suportar isso!
Meu pai ficou chocado e ficou em silêncio. Saí da casa e nunca mais falei com ele.
Aproximadamente um ano e meio depois, apenas a algumas semanas do meu aniversário de 38 anos, Annette me ligou para avisar que meu pai estava doente. Ele já estava com a saúde um pouco debilitada, mas agora estava ficando mais fraco. Tínhamos de pedir as refeições dele na Meals on Wheels[11]. Os médicos pediram que ele parasse de fumar, mas ele nunca parou. Mesmo quando estava respirando com a ajuda de um balão de oxigênio em casa, não parou de fumar; os voluntários da Meals on Wheels se recusavam a entrar na casa porque tinham medo de que ela explodisse. A capacidade de respiração do meu pai ficava cada vez pior, então minhas irmãs o levaram para o hospital. Elas me ligaram para avisar que o estado de saúde dele havia piorado. Não fui visitá-lo, e os meus irmãos compreenderam o motivo. Porém, eles se preocupavam que, caso eu não o visse antes que ele morresse, poderia sentir remorso. Disse a eles que estava em paz com a minha decisão e eles nunca me aborreceram por isso.
Annette passava a maior parte do tempo com ele no hospital. Ela estava lá quando a respiração dele começou a ficar barulhenta, e ele balbuciou:
– Vou morrer.
Mas sua respiração já tinha estado pior antes e ele já tinha dito aquilo muitas vezes. As enfermeiras disseram para minha irmã voltar para casa e retornar no dia seguinte pela manhã.
Mais tarde, ainda naquele dia, elas ligaram para Nancy e disseram que ele estava pior. Ela correu até o hospital, mas, quando chegou lá, ele já havia falecido. Meu pai morreu sozinho, sem a companhia dos filhos, e não pude deixar de pensar sobre as horas finais de minha mãe, sobre como todos nós estávamos lá segurando as suas mãos e dizendo o quanto a amávamos. Até hoje, não posso dizer que me arrependo de não ter falado com meu pai nos seus últimos meses de vida. Sei que pode soar como insensibilidade de minha parte, mas é a verdade. Fico extremamente triste porque ele morreu sozinho. Fico triste porque sei o tipo de pai que ele poderia ter sido.
Nenhum dos filhos sabia o que dizer durante o seu funeral. Por fim, Steven, o mais novo, foi quem escreveu um discurso para ele e leu aos presentes. Steven, naquela época com 25 anos, falou sobre como o nosso pai amava The Honeymooners, e como, tal qual o programa, ele tinha os seus próprios seguidores: as pessoas que bebiam no seu bar. Falou também sobre o tempo em que ele passou trabalhando no bar Picture Lounge e no bar boliche Funzy’s Tavern, e lembrou da sua facilidade em fazer amigos por onde passava:
– Ele não era um simples barman, era mais que isso. Tinha muita facilidade para memorizar os rostos e talento para lembrar da bebida preferida de cada cliente. E tinha o dom da palavra.
Foram palavras lindas, que nos fizeram chorar e que eram cem por cento verdadeiras. Meu pai era um homem incrível – nós apenas não tivemos a chance de conviver com esse lado dele como deveríamos.
Alguns anos depois, Steven me contou que, em uma das conversas que teve com o pai, perguntou-lhe por que ele agia daquela maneira.
– Não sei – meu pai respondeu. – Nunca tive a intenção de prejudicar vocês. Peço desculpas por ser assim.
Meu pai desculpou-se com Steven diversas vezes naquele dia e, dessa forma, desculpou-se com todos nós. Eu sabia que ele tinha se arrependido das coisas que fez e também tinha consciência de que ele não conseguia mudar quem ele era. Sabia que ele amava a minha mãe, muito mais do que ele possa um dia ter demonstrado a ela. Disse a mim mesma que no céu, meu pai não poderia mais atormentá-la. No céu, ele não falharia... Talvez, no céu, eles dançassem valsa juntos.
Um ano após o falecimento de seu pai, Maurice conheceu uma garota chamada Meka. Um de seus tios estava namorando a mãe dela e eles se encontravam o tempo todo. A princípio, Maurice não tinha gostado dela; era muito espalhafatosa e briguenta. Viu que ela tinha um lado doce, mas adorava uma briga, e Maurice estava cansado de confusão em sua vida. Certa noite, Meka o beijou. Ele disse que não gostava dela, mas ela não desistiu e, em pouco tempo, Maurice estava sentindo algo que nunca sentira antes.
Lembro-me que Michael e eu convidamos Maurice e Meka para jantar. Ela era muito amável e me contou que gostava de ler. Havia muitas coisas nela de que eu gostava, mas tanto ela como Maurice eram muito jovens e, no final daquele jantar, fiquei preocupada. Temia que ela engravidasse e não conseguia imaginar Maurice tendo que sustentar uma criança. Depois, pedi a ele que tomasse cuidado e ele me prometeu que o faria. Mas eu não conseguia afastar a sensação desconfortável de que algo aconteceria.
Naquele momento, a vida de Maurice tinha atingido uma estabilidade. Sua mãe voltara a usar drogas, mas seu nível de dependência já não era tão alto. Logo que completou dezoito anos, Maurice pôde se candidatar a ter o seu próprio apartamento na Section 8. Darcella não poderia se inscrever mais – a pena de prisão lhe tirou esse direito –, mas essa era uma boa oportunidade para Maurice ajudar a mãe. Poderia ser contemplado com o apartamento e permitir que Darcella morasse nele. Preencheu todos os papéis e, em um dos dias mais importantes de sua vida, um oficial da prefeitura entregou-lhe as chaves do apartamento de dois quartos na Hillside Avenue. Maurice atravessou a porta do apartamento, ajoelhou-se e beijou o chão.
Havia dez anos que ele não morava em uma casa. Agora, ele tinha uma.
Maurice pediu à mãe que mudasse para o novo apartamento enquanto ele foi morar com Meka no Brooklyn. Eles brigavam muito, mas também se divertiam muito na companhia um do outro. Gostavam de ir ao parque de diversões Coney Island e Maurice ficou orgulhoso ao ganhar um urso de pelúcia branco gigante em um jogo. O dia em que descobriu que Meka estava grávida foi um dos dias mais importantes de sua vida. Nunca tinha pensado em ter um filho, nem mesmo se imaginado balançando uma criança no colo, mas, agora que se tornaria pai, sentia-se eufórico. Ele não sabia por que a paternidade lhe significaria tanto, só sabia que se sentia assim.
Maurice estava lá, no St. Vincent’s Hospital, no centro de Manhattan, quando Meka deu à luz um menino lindo e saudável. Maurice segurou o filho pequeno e contorcido e beijou a testa dele. Havia dito a Meka que gostaria de escolher o nome do garoto e ela concordara, dizendo que gostava do nome.
Então, naquela noite, ele segurou o seu primogênito nos braços. Deu-lhe o nome de Maurice.
No dia seguinte, ele saiu do hospital e foi de metrô até seu apartamento para visitar sua mãe. Darcella estava morando lá com LaToya e o filho mais novo dela. Outra sobrinha de Maurice, filha mais nova de Celeste, também estava lá, visitando-as. Maurice cruzou a esquina, olhou para o apartamento e parou de repente no meio do caminho.
Tudo o que viu foi buracos carbonizados no lugar das janelas do apartamento de sua mãe. Houvera um incêndio.
Maurice subiu as escadas correndo, desnorteado, à procura de sua família. Seu apartamento fora destruído pelo fogo. Perguntou aos vizinhos sobre sua mãe, mas ninguém soube informar o paradeiro dela. Somente mais tarde, naquele mesmo dia, Maurice descobriu que a mãe, a irmã, o sobrinho e a sobrinha estavam sãos e salvos. Também descobriu o que havia causado o incêndio.
Seus sobrinhos estavam brincando com um isqueiro e colocaram fogo no urso de pelúcia gigante de Maurice; o apartamento foi tomado pelas chamas.
Em um instante, Maurice estava sem casa novamente.
Quando Maurice me contou que teve um filho, não fiquei muito feliz. Claro que eu sabia que um dia ele teria filhos, mas ele tinha apenas dezenove anos e eu o considerava muito jovem e sem uma vida estável para criar uma criança. Havia dito a ele que trazer um filho ao mundo diante das circunstâncias em que ele vivia era algo irresponsável e que eu temia que o ciclo que consumiu os seus pais pudesse se repetir com ele. Maurice entendeu como eu me sentia e tudo que ele me disse foi que tudo ficaria bem:
– Não se preocupe, Laurie. Eu posso lidar com isso.
Diante da minha reação, ele não me convidou para visitar seu filho, nem mesmo o trouxe quando nos encontramos na cidade. Gostaria de me sentir mais feliz e de dar-lhe todo o meu apoio, mas eu não conseguia. Preocupava-me que a responsabilidade da paternidade levasse Maurice a tomar decisões erradas. Também sentia dificuldade em ver Maurice como um homem adulto. Eu o conhecera oito anos atrás, quando ele era apenas uma criança. E aqui estava ele agora, era pai, responsável por educar o seu próprio filho. Para ser franca, aquela ideia me aterrorizou. Acreditava em Maurice e sabia que ele era especial, mas sentia que qualquer ganho obtido por ele desde que nos conhecemos era frágil; não por causa dele, mas por causa do mundo em que ele vivia.
Também me perguntei se o meu problema com filhos estava de alguma forma ligado com a minha reação. O filho de Maurice nasceu no mesmo momento em que ficava muito claro para mim que eu nunca teria um filho. Algo que eu desejava mais que tudo estava se esvaindo e não havia nada que eu pudesse fazer. E ali estava Maurice, jovem demais para ser pai, inapto para assumir tal responsabilidade, e ainda assim tendo um filho aos dezenove anos. Será que alguma parte de mim teria se ofendido ao ver a falta de importância que Maurice dava à paternidade? Estaria eu com raiva de Deus pela injustiça que tudo aquilo aparentava? Talvez.
Algo que me ajudou a lidar com isso foi observar o entusiasmo de Maurice em relação ao filho. Ele disse que desejava para a criança tudo o que ele nunca tivera e que não queria que ela tivesse de enfrentar todos os problemas que ele mesmo enfrentou. Os olhos de Maurice brilhavam sempre que falava sobre o filho. Chamava-o de Júnior, me mostrou as fotos e me prometeu inúmeras vezes que seria um bom pai para o garoto. Percebi que, se eu realmente confiava em Maurice, tinha que acreditar nele até mesmo nos tempos mais difíceis. Tinha que deixar Maurice viver sua própria vida.
Certo tempo depois do primeiro aniversário de seu filho, Maurice e eu nos encontramos em Manhattan. O Natal estava se aproximando e o vento de inverno começava a ficar forte e frio. Maurice e eu conversamos sobre Meka, Júnior e sobre a vida deles.
Então, Maurice fez algo que nunca havia feito antes.
Pediu-me dinheiro emprestado.
Contou que Meka gostara muito de um casaco de inverno que tinha visto e ele queria presenteá-la. O casaco custava trezentos dólares.
– Maurice, trezentos dólares é um valor muito alto para um casaco – eu disse.
– Mas ela viu e gostou e eu quero dar esse presente pra ela.
Nunca pensei sobre o que faria se um dia Maurice me pedisse dinheiro. Lembrei de quando pedi que ele escolhesse entre o dinheiro e os lanches e ele preferiu os lanches. Havia gasto milhares de dólares com Maurice, mas a nossa relação nunca envolveu dinheiro. Fiquei surpresa ao vê-lo pedindo isso agora.
Também estava me sentindo culpada por não passar tanto tempo com ele, e por ter reagido mal quando ele me contou sobre seu filho, então disse a ele que faríamos um trato.
– Vou te dar duzentos dólares e empresar os outros cem. Você terá de pagar aos poucos. Que sejam 25 centavos por semana; o importante é que você me pague. Entendeu, Maurice?
– Com certeza – ele disse. – E muito obrigado, Laurie.
Fomos a um caixa eletrônico, saquei os trezentos dólares e Maurice me abraçou e agradeceu novamente. Em seguida, nos despedimos.
Na segunda-feira seguinte, quando combinamos de nos encontrar, Maurice não apareceu. Nem na próxima segunda. Um mês se passou, depois outro.
E foi assim que Maurice desapareceu da minha vida.
[11] Empresa americana que faz serviço de entrega de refeições na residência de pessoas com restrição de mobilidade. (N.T.)