A maior das dádivas
Sexta-feira, 5 de outubro de 2001. Westchester Country Club em Rye, Nova York. Aproximadamente noventa pessoas com trajes formais estão presentes em uma sala toda mobiliada em mogno. Vasos enfeitados com lindas flores preenchem todas as mesas. Todos estão ali reunidos para celebrar uma ocasião especial.
Laura Schroff – sim, eu – está completando cinquenta anos.
Michael, meu marido, planejou a minha festa de aniversário por meses. Eu havia escolhido o vestido perfeito, uma confecção muito bonita da Bergdorf Goodman feita de seda xantungue. Meu irmão, minhas irmãs e suas respectivas famílias estariam lá – era a primeira vez que nos reuniríamos após mais de cinco anos. Eu tinha selecionado um tema para a festa – “Minha vida em músicas” –, e escolhi três músicas para cada década da minha vida.
Três semanas antes da festa, as torres do World Trade Center sofreram o ataque.
O primeiro pensamento que tive foi cancelar a festa, mas nos dias e semanas que seguiram, percebi que não haveria momento melhor para celebrarmos as nossas bênçãos e agradecer a família e os amigos que fazem a nossa vida valer a pena. Concordamos em manter a festa e todos os convidados compareceram.
Foi uma noite mágica. A tragédia do 11 de setembro nos fez tomar consciência do quão sortudos éramos por termos uns aos outros. Havíamos escolhido a música como o tema da minha festa porque ela teve um grande significado para a nossa infância – minha e de minhas irmãs. Lembro-me que ligava o aparelho de som na sala de estar da nossa casa em Huntington Station e dançava por horas com Annette ao som de músicas como The Twist, de Chubby Checker. A dança era o nosso refúgio naquela época, o que também aconteceu naquela noite.
Bebemos e comemos. Michael, vestindo um smoking, fez um brinde a mim, junto aos meus amigos Phoebe e Jules, minha sogra Jean e minha irmã Annette. Quando chegou a vez de Steven, ele me convidou para dançar The Wonder of You. Lembro-me que estava me sentindo quase tonta de tanta felicidade. Ali estava eu, rodeada pelas pessoas que eu mais amava no mundo. Senti uma profunda gratidão por tudo o que tinha. Não é sempre que temos a chance de olhar para a vida, observar o caminho que percorremos e agradecer a todas as pessoas que nos acompanharam nessa viagem, refletindo sobre como somos sortudos. Claro, as pessoas dizem coisas bonitas a seu respeito no seu funeral, mas você não está lá para ouvi-las. Tive a chance não apenas de ouvi-las como também de agradecê-las, e foi uma noite a qual eu jamais me esquecerei.
Então veio o brinde final. O porta-voz vestia um smoking preto e calçava sapatos lindos, nas cores preto e branco; sua esposa trajava um vestido azul-marinho lindíssimo e estava com o cabelo impecável. Quase todo mundo na festa o conhecia ou pelo menos conhecia a sua história, então todos estavam muito animados e ansiosos por ouvi-lo. Ele beijou sua esposa, foi até o microfone e começou o brinde.
– Laurie, por onde devo começar? Nos conhecemos... a maneira como nos conhecemos foi muito especial para mim. Eu era apenas um garoto que vivia nas ruas, não tinha quase nada. Estava com muita fome naquele dia e perguntei: “Senhora, tem uma moeda?”. E ela saiu andando. Depois de alguns passos, parou. Ela estava no meio da rua, quase foi atropelada, olhou para mim, voltou e me levou até o McDonald’s. Comemos e depois fomos caminhar no Central Park, em seguida ela me levou para tomar um Häagen-Dazs e fomos jogar fliperama. Sabe, naquele momento, ela salvou a minha vida. Eu estava indo para o caminho errado, o lado errado e, sabe, a minha mãe, que descansa em paz, usava drogas o tempo todo. Então o Senhor me enviou um anjo. E esse anjo foi Laurie.
E continuou:
– Sem você, – disse, elevando a taça que segurava em uma das mãos – eu não seria o homem que sou hoje.
Fiquei extremamente emocionada ao ouvir Maurice dizendo que eu havia salvo a vida dele. Na verdade, fiquei muito desconcertada durante o brinde. Sempre que ouvia alguém dizer que Maurice era um sortudo por ter me encontrado, interrompia essa pessoa para corrigi-la: a verdade é que a grande sortuda fui eu.
Maurice ensinou-me muitas coisas; é impossível listar todas elas. Ensinou-me a viver. Ensinou-me uma das lições mais importantes que uma pessoa pode aprender: como ser grata a tudo o que tenho. Com ele, aprendi a ser uma pessoa resistente, corajosa, perseverante, e aprendi a força especial que adquirimos ao superar uma adversidade. Ensinou-me o verdadeiro valor do dinheiro, o significado de uma refeição embrulhada em um simples saco de papel marrom e a importância do singelo ritual de preparar biscoitos. Maurice ensinou-me, muito mais do que eu a ele, o que significa ter um amigo.
Tudo que dei a Maurice, ele me devolveu dez vezes mais. Cada refeição, cada camiseta, bicicleta ou escova de dentes, tudo era apreciado por ele da maneira mais autêntica que já vi em toda minha vida. Todas as vezes em que lhe ofereci uma mão, ele me deu um abraço em troca; cada gesto de bondade era pago com um sorriso incrivelmente otimista. Se o amor é o maior presente de todos – e eu acredito que é –, então o maior privilégio que temos em nossa vida é a capacidade de amar alguém. Maurice surgiu do nada e permitiu que eu o amasse, e eu nunca poderei lhe agradecer suficientemente por isso. Sua generosidade de espírito continua a me surpreender e até hoje a minha relação com ele é a relação da qual eu mais me orgulho.
Aproximadamente um ano após o meu aniversário de cinquenta anos, Michael e eu nos divorciamos. Talvez o meu ressentimento em relação a Maurice tenha persistido. E não estou certa de que as nossas divergências a respeito de ter um filho tenham sido superadas. Lembro-me que optei por ter um cachorro em vez disso, mas Michael também resistiu a essa ideia. Por fim, mantive a minha palavra e avisei que teria uma poddle, e que daria a ela o nome de Lucy – gostasse Michael ou não. E foi exatamente o que fiz. Lucy – minha pequena e adorável Lucy – me ajudou a superar a dor que eu sentia por não ter tido um filho. Dois anos depois, dei a Lucy uma irmã, uma linda poodle chamada Coco. Durante a minha infância, os cachorros entravam e saíam da minha vida, mas Lucy e Coco nunca foram nada menos que minha família.
Michel amava as minhas “meninas” da mesma forma que eu, mas não conseguíamos nos acertar. O divórcio nunca é culpa de uma pessoa apenas. Michael e eu tivemos momentos maravilhosos juntos e, sob muitos aspectos, ele foi um marido maravilhoso e até mesmo o amor da minha vida. Tenho certeza de que sempre seremos amigos, mas agora estou por conta própria. Sinto-me bem, forte e feliz com a minha vida e até mais esperançosa com o que está por vir. Finalmente me aposentei da publicidade, após uma longa e bem-sucedida carreira, e sinto-me extremamente abençoada por estar cercada por tantas pessoas incríveis, minhas amigas até hoje. De vez em quando sinto uma coceira para voltar a trabalhar, mas duvido que faria isso. Creio que é tempo de experimentar coisas novas.
Vendi o meu apartamento em Manhattan e me mudei para a Flórida, mas fiquei inquieta e decidi voltar. Gostaria de comprar algum outro apartamento no centro em breve, mas, antes de qualquer coisa, quero fazer um cruzeiro com toda a minha família: Annette e Bruce; minha sobrinha Colette – que está bem crescida agora –, o marido dela, Mike, e a filha deles, Calli, também viajará conosco o meu sobrinho, Derek, sua esposa Brooke e o filho deles, Dashiell; minha sobrinha Brooke e o namorado dela, Steve; Nancy, John, a filha deles, Jena, e o filho, Christian; meu irmãozinho Steven, sua esposa Elise e as filhas deles, Olivia e Emily. E claro que não poderiam faltar Maurice, sua adorável esposa Michelle e seus filhos incríveis.
Não me importo com o nosso destino ou com o que vamos fazer. O que realmente importa para mim é que todos nós estaremos juntos naquele navio.
Gostaria de continuar encontrando o meu amigo Maurice, se não toda segunda-feira, pelo menos com a maior frequência possível. Ao olhar para a nossa relação, fico impressionada quando penso o quanto aquilo era raro. Pertencíamos a dois mundos totalmente diferentes e, pelo menos na superfície, tínhamos muito pouco em comum. Havia muitas coisas a respeito de Maurice que eu ainda não sabia. Apenas recentemente tomei conhecimento de que quando o conheci ele tinha doze anos e não onze como pensávamos. Quando criança, ele não comemorava os aniversários e não sabia ao certo a sua idade. Somente quando começamos a trabalhar no projeto deste livro Maurice descobriu quantos anos tinha de fato. Não fiz as correções nas páginas anteriores porque não seria fiel à sequência da nossa história. A verdade é que há muitas coisas que nos separam um do outro – idade, costumes, circunstâncias – e, olhando de fora, Maurice e eu provavelmente não parecemos uma dupla de amigos dentro dos padrões.
Mas posso dizer sinceramente que nenhuma das minhas amizades é mais importante ou mais valiosa do que a que tenho com Maurice.
Após concluir a graduação na Medgar Evers College, Maurice decidiu que não queria mais ser policial. Começou a atuar no ramo da construção e, no momento, está tentando tocar a sua própria empresa, a Moe’s Finest Contracting, LLC. Maurice visita prédios antigos, faz uma reforma interna, troca toda a tubulação e fios e reconstrói as paredes. Possui muito talento para isso e não tenho dúvidas de que o seu negócio será muito bem-sucedido. Maurice já pode até mesmo contratar alguns empregados.
Em 2010, quando o tio Old saiu da prisão, Maurice ofereceu-lhe um emprego.
O que mais me deixa orgulhosa em relação a Maurice é a família dele. Ele e Michelle estão juntos há mais de catorze anos e ele diz que hoje está mais apaixonado por ela que antes. Depois que sua mãe morreu, Maurice e as irmãs receberam alguns dólares como benefício. Ele usou parte desse dinheiro para comprar um anel de compromisso para Michelle. Casaram-se diante de um juiz de paz – estavam presentes apenas o casal e mais duas testemunhas. Se o negócio da construção der certo, Maurice planeja dar a Michelle um casamento de verdade.
E há também os filhos deles. Quando finalmente os conheci, imediatamente me apaixonei por cada um deles. Quero dizer que são crianças incríveis: inteligentes, alegres, divertidas e cheias de sonhos. Maurice também se tornou um pai para o filho de Michelle, Ikeem, que hoje tem vinte anos, e é um rapaz alto e muito bonito. Ikeem pensa em ingressar no exército algum dia. O filho primogênito de Maurice, Júnior, tem dezessete anos e está mais alto que o pai. Pretende tornar-se chef de cozinha. Jalique, hoje com dezesseis anos – uma cópia física de Maurice quando tinha essa mesma idade –, quer ser detetive. Jahleel, onze anos, pensa em se tornar policial e também adora jogar xadrez. Maurice tem outras duas filhas e a mais velha se chama Princess, tem quatorze anos e seu apelido é “MaMa” e “YaYa”. Candidatou-se para o Fashion Institute of Technology e deseja seguir carreira como designer de moda. É uma moça muito bonita e tem um charme natural. Sua irmã chama-se Precious, tem oito anos e é apaixonada por pular corda e por Miley Cyrus; quer ser veterinária e talvez também seja atriz.
– Quero me aventurar – diz ela.
Jahmed, o filho caçula de Maurice, tem quatro anos. É cheio de energia e ama a luta livre profissional, tal como o pai; certamente em breve mostrará a réplica do seu cinturão de campeão e a elevará sobre a cabeça fazendo uma pose de lutador. Parece que também tem um talento para a música, especialmente para a bateria. Lembro-me que certa vez Maurice entregou a ele dois lápis e ele começou a batê-los em cima da mesa com muita destreza.
– Também sei fazer panquecas – diz ele.
Não posso deixar de dizer o quão amáveis, inteligentes e brilhantes são os filhos de Maurice. Da mesma forma, tenho de dizer o quão forte, amável e paciente é o pai deles. Eu o vejo tentar “roubar” uma barra de chocolate da mão de Princess, esperar Jahleel por duas horas durante um campeonato de xadrez, colocar Jahmed sobre o colo e ficar junto dele por horas, e me emociono ao observar como ele é paciente e carinhoso. Maurice atribui parte de sua habilidade como pai à sua mãe e à sua avó. Ele me conta que, quando está na cozinha no Dia de Ação de Graças, conversa com Darcella e com a avó Rose e fala sobre os seus filhos. Maurice diz que por vezes pode até ouvi-las responder, aconselhando-o para tomar cuidado com isso ou aquilo. E, dessa maneira, elas o ensinam como ser um bom pai.
Maurice também atua como mentor para crianças e grupos de juventude da comunidade e acaba de começar um trabalho voluntário que auxilia crianças desfavorecidas – um ato de bondade que o faz lembrar dos dias em que vivia nas ruas.
– Considero que a minha infância foi um presente – Maurice me disse certa vez. – Tudo o que aconteceu comigo serviu para que eu aprendesse a educar os meus filhos. Vi o que o meu pai fez e eu poderia ter crescido acreditando que aquela era a única maneira de lidar com os filhos. Mas então eu encontrei você e foi quando eu percebi que havia outra forma.
Lembro de uma das primeiras vezes que fui até o apartamento de Maurice para fazer uma visita. Após morar por doze anos no mesmo apartamento no Brooklyn, Maurice e Michelle estavam agora na Madison Street, no centro de Manhattan. Algumas pessoas podem considerar o edifício decadente, mas Maurice o vê de uma forma diferente.
– Comparado ao que era na minha infância, vivo como um rei agora.
Eis o motivo pelo qual ele deu o nome de Princess à sua filha.
– Porque penso nela como realeza – ele diz.
O apartamento de Maurice possui um bom tamanho e está repleto de roupas, brinquedos e tênis. Através da janela da sala de estar é possível ver não somente a ponte de Manhattan, como também a ponte do Brooklyn. É uma vista maravilhosa, quase épica, que sugere promessa e aventura. Em uma parede do apartamento há porta-retratos com as fotos dos filhos e, na outra, uma televisão de tela plana pequena. Há também um Xbox, com o qual Maurice pode ensinar aos filhos a arte do video game, da mesma maneira que me ensinou alguns anos atrás.
Foi então que eu vi algo.
Estava na sala de estar, que funciona também como sala de jantar, e quando eu vi, Maurice sorriu, com orgulho.
Uma mesa de jantar enorme.
Era tão grande que ocupava quase as duas paredes e oito cadeiras cabiam confortavelmente ao seu redor. Se necessário, Maurice poderia adaptá-la e torná-la ainda maior. É ali que Maurice, a esposa e os filhos fazem as suas refeições, conversam sobre o dia, brincam um com o outro e fazem planos para as festas de aniversário, as partidas de futebol e de xadrez e onde Jahmed, quando está de bom humor, batuca com os seus dois lápis.
– Viu – disse Maurice, sorrindo –, não disse que um dia eu teria uma mesa grande?
E então me sentei à mesa e jantei com a minha família.