Capítulo 10
Tártaro
Kara estava de pé sobre uma plataforma cinza de concreto no edifício do Alto Conselho. Uma brisa leve soprava o cabelo em seu rosto. A sua mente estava anestesiada e seus membros se moviam por conta própria, como um zumbi vagando pelo mundo com uma abóbora esmagada no lugar do cérebro. Ela piscou. Kara não conseguia se lembrar de como havia caminhado do conselho até a zona de pouso.
Ela concluiu que isto não importava. O conselho a havia condenado por traição — mais ou menos. Eles tinham votado por confiná-la no Tártaro — onde eles mantinham traidores antes de determinarem o que fariam com eles. Ela imaginava o Tártaro como um sombrio calabouço, onde carecas gordos e suados aguardavam para torturá-la. Ela os visualizou enquanto amarravam os membros de suas vítimas com corda ao potro de madeira e giravam uma manivela, fazendo com que a corda puxasse os braços da vítima. Eventualmente, com um alto som de ruptura, os membros seriam arrancados.
Não importava, de qualquer modo — o que eles fariam com ela — ela não era especial, com um dom de poder elemental. Ela era uma abominação — era a filha do senhor dos demônios, o inimigo da Legião. A alma de sua mãe morreria por causa dela. E ela não podia fazer nada para evitar isto.
Um tênue som de bater de asas interrompeu a cadeia de seus pensamentos. Dois pontos negros surgiram no céu como pipas apanhadas numa corrente de ar. Eles se aproximaram incrivelmente rápido.
Kara precisou cobrir os olhos por causa de toda a poeira e areia que se ergueu ao redor dela quando duas águias douradas e gigantes bateram suas enormes asas para reduzirem a velocidade e pousaram na plataforma ao lado dela. Assim que a poeira assentou, Kara deu uma boa olhada nelas. Como gigantescos pássaros de guerra, elas usavam capacetes de metal com intrincados desenhos circulares inscritos deles e grandes peitorais de metal. Correntes prateadas com brilhantes pingentes azuis em forma de estrelas balançavam e batiam em seus peitos poderosos. Seus olhos eram de um marrom dourado como caramelos e seus pontudos bicos reluziam como lâminas douradas. Suas garras arranhavam o chão de concreto e Kara tinha certeza de que elas poderiam arrancar facilmente a plataforma. Elas eram idênticas. A águia que estava mais próxima voltou seu olhar para Kara, que recuou.
Um oráculo rolou sua bola de cristal em direção a Kara.
— Bem, aqui estamos. Os guardas da prisão chegaram. Eles vão levá-la para o Tártaro. — Ele lhe deu um tímido sorriso e Kara ficou agradecida por ser o mesmo oráculo que a havia escoltado até a câmara do conselho.
Os olhos de Kara se fixaram em suas garras gigantes. O estômago dela se apertou. Penas douradas farfalhavam nos peitos enormes dos pássaros, como uma seda cintilando sob a luz. Elas eram magníficas. Kara se indagou se ela subiria nas costas delas e as cavalgaria como se fossem cavalos.
As águas abriram as asas e subiram no ar com grande força. Kara saiu do caminho. Ela sentiu uma pressão quando uma enorme garra cobriu seu ombro direito. E antes que pudesse reagir, ela foi erguida do chão. Ela olhou para baixo e viu o oráculo olhando para ela. No instante seguinte, ele era estava pequeno como uma formiga, então desapareceu completamente.
Kara balançava as pernas e acertava as grandes patas do pássaro com seus punhos, mas quando viu o quão alto eles voavam, pensou que era melhor parar antes que ele ficasse bravo e deixasse que ela caísse. Ela não acreditava que anjos poderiam sobreviver a uma queda como aquela, mesmo sendo imortais.
Elas se moviam surpreendemente rápido. As cidades flutuantes do nível seis passaram borradas por elas. E logo Kara estava imersa em um céu azul perfeito, preenchido apenas por nuvens brancas fofinhas. As águias fizeram uma manobra e mergulharam em uma parede de nuvens. A névoa fazia com que sua pele formigasse e a umidade grudava nela como roupas molhadas, retiradas cedo demais da secadora. A névoa se tornou como um nevoeiro espesso e Kara mal conseguia enxergar um palmo à sua frente. Com cada bater de asas do pássaro gigante, Kara era açoitada por uma poderosa lufada de vento. Ela fechou os olhos e esperou que tudo terminasse.
O ar perdeu sua umidade. Quando Kara abriu os olhos, ela estava novamente cercada pelo céu azul. Ela não conseguia distinguir por quanto tempo estavam viajando. Pareciam ser horas e ela se perguntava quando aquilo iria acabar. Ou será que tudo fazia parte da punição? Ser arrastada para todo o sempre por um turbilhão de nuvens nas garras de um gigantesco pássaro raivoso.
Um objeto voador surgiu adiante. Era a única estrutura em quilômetros de céu aberto, como um navio perdido no mar aberto. Parecia que as águias a estavam levando para lá. Ao se aproximarem, ela podia ver que era um cubo gigante. Esta devia ser a prisão. Ela sentiu sua última gota de esperança indo embora.
Era um enorme bloco de concreto sem janelas ou aberturas. Ele flutuava no ar, destoando do céu azul perfeito com nuvens brancas e fofinhas como uma nave espacial alienígena.
Parecia uma entidade morta e desabitada esperando para sugar a fonte vital de seus prisioneiros. Dele não brotava vida alguma. Nem mesmo a luz do sol refletia naquelas paredes que fediam a óleo e mofo. Os pelos de seu corpo se arrepiaram e o medo a preencheu. Era um lugar onde os espíritos vinham para morrer, um cubo negro de desolação.
E era a nova casa de Kara agora. O conselho havia garantido isto.
As águias manobraram para a direita e mergulharam em direção ao centro do enorme cubo. Uma pequena parte da parede se abriu e se ergueu, como uma prancha solitária de um navio pirata. Com um último bater de asas, as águias mergulharam na pequena plataforma quadrada que saía da imensa prisão. As garras da águia se soltaram de seus ombros e ela caiu com um alto ruído na superfície dura. A plataforma tremeu, enquanto as águias pousaram graciosamente ao lado dela. Ela queria que as aves lhe tivessem proporcionado um pouso melhor. Uma das águias inclinou a cabeça.
— Por aqui. — A voz da águia era profunda e soava estranhamente humana. Kara não podia evitar de olhar para seu bico, se perguntando como é que ela conseguia falar tão claramente.
— Por aqui — a águia repetiu. Um pássaro de poucas palavras, Kara pensou consigo.
Ela se levantou. Uma porta com no mínimo quatro metros e meio de altura, grande o bastante para que as águias passassem, estava aberta diante dela. Ela não conseguia ver através dela — havia apenas trevas do outro lado. Ela se esforçou para não tremer, pois não queria que os guardas vissem o tamanho do medo que sentia. Kara caminhou em direção à porta com a cabeça erguida.
Assim que atravessou a entrada, pequenos orbes verdes apareceram, iluminando as paredes negras com uma luz verde e sombria, para que Kara conseguisse ver através das trevas. Kara sorriu diante do fedor de óleo e cocô de pássaro. Ela se lembrava de ter sentido um cheiro tão horrível quanto aquele na oficina mecânica de sua mãe, mas aquilo era cem vezes pior. Após terem passado pela porta, a plataforma tremeu, virou e girou. Com um derradeiro rangido, a plataforma de concreto se fechou atrás dela. O Tártaro estava isolado novamente, como um gigantesco bloco de Lego.
As águias empurraram Kara para frente com seus bicos poderosos, forçando-a pelos corredores escuros. As esferas brilhantes permitiam que Kara visse um poço negro e sem fim diante dela. Não havia caminho. Ela cairia no abismo. Kara começou a entrar em pânico.
— Mas... mas aqui não há nada sobre o qual eu possa caminhar?
As águias empurraram Kara novamente nas costas e ela deu dois passos adiante. Blocos de rocha voaram de cima e de baixo e se uniram sob seu pé para formar uma passagem de pedra. Até mesmo nas trevas, Kara podia ver as pedras saindo das paredes e planando uma sobre a outra diante dela, prendendo-se como um quebra-cabeça.
Kara deu uma olhada no poço debaixo dela. Ela poderia já estar morta, mas sentia que o seu espírito poderia não sobreviver a uma queda nas trevas impenetráveis. Que tipo de lugar é este?
As águias pararam de empurrá-la. Ela estava diante de uma grande porta esculpida a partir da impenetrável rocha negra — sua cela, ela pensou. Ela podia ver uma única abertura retangular no topo da porta. Era grande o suficiente para passar uma mão, ou para alguém espiar lá dentro. Não havia maçaneta na porta.
Um dos pingentes das águias começou a brilhar intensamente, até que a luz brilhou como uma estrelinha brilhante e Kara cobriu os olhos. Com um alto rangido, a porta se abriu nas dobradiças.
Kara sentiu a pressão contra suas costas novamente e ela foi jogada para dentro da câmara. Ela se levantou e olhou rapidamente ao redor. O quarto tinha o tamanho de um banheiro.
A águia olhou para ela e falou:
— Nem desperdice seu tempo pensando em escapar. Nenhum anjo ou demônio jamais escapou do Tártaro. Se você pular ... a atmosfera da Terra vai destruí-la. Sem Vega, o seu corpo angelical não sobreviverá à transição. Você morrerá e não retornará. É melhor que você se sente e torça para que o conselho seja complacente. Reze para que a sua estadia aqui seja breve.
— Mas eu não fiz nada de errado — Kara suplicou.
— É claro que não. Como todos os outros.
A águia deu um passo para trás e seu pingente começou a brilhar novamente. Com um solavanco súbito a porta de fechou. Uma lufada de ar mofado soprou no rosto de Kara.
Uma águia apareceu na abertura no topo da porta.
— Já vi anjos apodrecerem neste lugar, esquecidos pelo conselho. Você nunca sairá daqui. — O olho desapareceu.
Kara correu para a janelinha.
— Espere! Quando o conselho tomará uma decisão? Ei!
Sem resposta.
Kara assistia consternada enquanto as águias desapareciam nas sombras. Ela ouviu um estrondo e assistiu aos blocos girarem e se soltarem do caminho. As rochas voaram e desapareceram nas trevas. Kara ouviu ruídos e estalos vindo do caminho. Ela esperou encostada na porta até que não ouvisse mais nada. Kara estava sozinha no silêncio macabro. Ela se arrastou para um canto e caiu contra a parede de pedra.
Ela encarou as paredes de pedra cinza escura que a cercavam. A única fonte de luz vinha de um pequeno orbe que flutuava no meio do quarto. O silêncio mórbido ao redor dela lhe dava calafrios por todo o corpo. De vez em quando, ela ouviu um som de arranhão, como unhas arranhando na pedra dura, e um gemido distante. Ela se sentou com as costas encostadas na superfície fria da pedra, encarando o globo flutuante.
A sua mente vagou, pensando nas palavras de Uriel. Simplesmente não podia ser verdade. Ela sentiu uma mistura de ódio e medo — medo de que ela realmente fosse parte demônio mau — e ódio por Asmodeus estar usando sua mãe. Ela se lembrava vagamente de um lindo homem de meia-idade com cabelo negro e queixo quadrado sorrindo para a bebezinha. Sua mãe tinha fotos deste homem por todo o apartamento. Kara cresceu acreditando que ele era seu pai mortal que havia morrido em um acidente de carro quando ela tinha cinco anos. Se o que o conselho havia dito fosse verdade, então ele não era um homem comum, mas o senhor dos demônios, o mesmo demônio que havia tentado matá-la.
Kara ficou com raiva. A sua mãe chorava sobre aquela foto — ela amava aquele homem homem — este homem que havia mentido para ela e a traído. E agora Kara sabia a verdade. Ele havia enganado sua mãe, fazendo-a acreditar que ele a amava, mas a usou para seu propósito doentio.
Um lampejo de fúria a consumiu e Kara acertou a parede com seu punho. Ela se lembrava muito bem da dor da mãe, e as lágrimas que ela mesma havia derramado pelo pai que lembrava. Mas agora parecia que havia sido uma piada cruel, uma piada em uma solitária mulher mortal que merecia mais.
Kara amaldiçoou em silêncio. Você vai pagar por isto.
— Ahã — uma voz disse atrás da porta de pedra — alguém chamou pelo serviço de quarto?
O queixo de Kara caiu. A voz que vinha da porta não soava como a dos guardas. Ela se levantou nas pontas dos dedos e virou a cabeça na direção da pequena janela.
— Quem está aí? — perguntou Kara. Parte dela temia que a voz pertencesse a quem estava gemendo antes.
Houve um momento de silêncio, então a voz falou.
— Bem, cara Madame. Este é o seu cavaleiro em armadura reluzente, minha dama.
A raiva de Kara a deixou.
— David — ela chamou — o que você está fazendo aqui? Está louco? Você não pode estar aqui! Se eles o apanharem... você provavelmente ficará preso neste lugar horrível como eu! Saia daqui!
— Ei, estas não são as boas-vindas que eu estava esperando. Está ferindo o meu ego — disse David atrás da porta.
Kara deu uma risada.
— Não, é sério. Você deve partir antes que alguém o ouça. Eles não são dos pássaros mais amigáveis do mundo. Ei... espere um minuto... como você chegou aqui? Não tem chão aqui — Ela sentiu um instante de pânico.
— Não se preocupe, minha dama. O seu navio a espera.
BOOM!
Kara caiu para trás enquanto a porta tremeu. Poeira e pequenas partículas se soltaram do teto e caíram sobre ela.
— David! Você está louco! Eles vão ouvir você! O que está fazendo?
Outro grande boom foi a resposta.
— Para trás! — ela ouviu David gritar atrás da porta.
Pequenas fagulhas vermelhas disparam da porta. Elas percorreram a porta para cima e ao redor como veias vermelhas, até que a porta estivesse completamente coberta por elas. A porta silvou, rachou e explodiu. Fragmentos de pedra afiada passaram voando perto do rosto de Kara. Ela esfregou a poeira dos seus olhos e observou sem acreditar. Ali, atrás da porta, um carro celeste flutuava nas trevas. David, Jenny e Peter olhavam para ela com expectativa.
Eles saltaram para a cela dela um por vez.
— Oh, meu Deus, este lugar fede. — Jenny apertou o nariz. — Tem cheiro de cocô antigo de pássaro... como se estivesse aqui desde sempre e tivessem se esquecido de pagar a empregada.
— É uma prisão, lembra? — disse Peter, enquanto tirava a poeira de si. — Não é o Hilton. Não se espera que seja limpa.
— Pessoal... o que vocês estão fazendo... — A voz de Kara ficou presa na garganta dela. David apareceu atrás de Peter vestindo apenas uma cueca samba-canção azul com bolinhas brancas.
Kara sentiu uma estranha sensação de formigamento em seu rosto e corpo do que ela imaginava ser a sensação que os anjos deviam ter quando coravam. Ela não conseguia desviar os olhos de David. As meias e as botas dele davam ao garoto um visual engraçado e ela conseguiu esconder os verdadeiros sentimentos dos amigos.
— Com licença, minha dama — riu David, enquanto a flagrava olhando para ele. Ele se cobriu com suas mãos. — Este cavalheiro — ele apontou para trás de si — requisitou como pagamento os meus pertences. — David deu um passo para o lado.
A nuvem com forma ovalada do carro celeste com quatro assentos azuis acolchoados flutuava atrás da porta. Kara imediatamente reconheceu o pássaro preto e branco empoleirado na frente do carro.
— Sam! Como você se envolveu nisto? — disse Kara. Ela deu um passo para o lado para ter uma visão melhor.
O pássaro pulou e deu uma pirueta.
— O nome é Sam e o negócio é voar! — Ele ergueu as asas. — Eu estava entediado e o David aqui tinha algo interessante para me oferecer. E quando ele concordou com os termos do meu pagamento... nós voamos como o vento!
Kara apertou as mãos na cabeça. Ela sorriu.
— Não consigo acreditar que vocês foram loucos o bastante para isto. Mas estou feliz. — Ela deixou os braços penderem ao lado do corpo. — Ouçam. Vocês têm de voltar. Se os guardas os apanharem, vocês podem ficar presos aqui para sempre. Não podem ficar. Realmente agradeço o esforço... mas não quero isto também na minha consciência. Vocês têm de ir.
— Não vamos embora sem você, Kara. — David abriu caminho até ela. — Você vem conosco e vamos todos dar o pé desta caixa de titica juntos.
— Mas os guardas... eles vão nos ver.
— Não, eles não vão — disse Jenny. — Entramos aqui sem que eles percebessem... não foi?
— Falando dos guardas, temos de ir. — Peter deu uma espiada pela porta. — Não temos muito tempo. Temos de ir.
Como se fosse um sinal, as grandes paredes de pedra começaram a tremer. Poeira e pedrinhas caíram do teto. Kara correu para a porta. Ela constatou que o caminho de pedra estava se formando novamente. Alguma coisa azul estava brilhando nas trevas — as águias — e elas estavam vindo rapidamente.
— Se vocês estão planejando me libertar... é melhor fazerem isto rápido! — Ela apontou para os guardas. Ela torceu para que o carro celeste fosse mais rápido do que os pássaros gigantes.
— Vamos, rapazes e garotas! O navio espera! — David saltou para dentro. O carro balançou um pouco com o peso dele. Ele estendeu o braço para Kara. — Aqui... rápido!
Ela olhou para a mão aberta dele. Ela sabia que isto era loucura. Ela sabia, no fim, que eles seriam pegos. Mas também sabia que era inocente. Mesmo assim, eles a haviam colocado na prisão. Ela tomou uma decisão e agarrou a mão do David, chegando até ele com um pulo.
Jenny e Peter pularam na traseira do carro.
— Cuidado agora — gritou Sam. — Vocês não vão querer cair no abismo!
— Pare de falar, pássaro, e vamos dar no pé! — David apontou para trás dele. Os guardas estavam quase chegando.
— Segurem-se! — Sam empurrou com o peso do corpo o manche em forma de T. O carro celeste foi acionado e o impulso lançou Kara para cima de David. Ela olhou para baixo e viu o rosto sorridente dele. O corpo dela estremeceu e ela ficou ali, sobre ele, por mais um instante, antes de rolar para fora e pular para um assento.
Ela percebeu com certa preocupação que o carro celeste estava disparando para as trevas absolutas. Mesmo com o vento açoitando seu rosto, ela ainda conseguia sentir o cheiro horrível de titica de pássaros.
— Como ele consegue ver para onde estamos indo? — Kara gritou, apontando para o pássaro.
Os olhos de David estavam apertados.
— Não tenho ideia! — ele gritou de volta.
Kara se sentia inquieta. Eles provavelmente bateriam nas paredes e cairiam nas trevas.
— Não se preocupe — gritou David. — Ele sabe para onde estamos indo.
Kara concordou.
— Certo, isto faz com que eu me sinta muito melhor!
Ela virou a cabeça a redor e seu corpo imediatamente ficou tenso. Os guardas estavam tão perto que ela podia sentir as lufadas de vento causadas pelas pedras que formavam o caminho. Eles seriam pegos.
— Não podemos ir mais rápido? — Kara gritou mais alto que o vento, e apontou para os guardas atrás deles.
Por um instante, medo surgiu nos olhos de David. Ele se inclinou para Sam.
— Ei, amigão. Você acha que consegue fazer esta coisa ir mais rápido?
Sam deu uma olhada para as águias gigantes na sua cola.
— Apertem o cinto, senhoras e senhores! Esta belezinha voa para valer!
Kara mal teve tempo para agarrar o cinto antes que o carro celeste desse uma guinada para cima num ângulo de noventa graus, então uma curva fechada para a esquerda. Kara não entendia como o pássaro enxergava nestas trevas. Agora mesmo, tudo que ela queria era sair daquele carro maluco.
Com seus olhos estreitos, ela viu uma luz acima. Ao se aproximarem, ela constatou que era uma pequena abertura, grande o suficiente apenas para passar um carro celeste.
David se virou e apontou.
— Esta é a abertura que fizemos. Foi assim que entramos. Nós a abrimos com uma adaga. Abaixe-se! — Ele gritou.
A cabeça de Kara estava entre seus joelhos. Ela sentiu uma pressão súbita. Então, a luz brilhou sobre suas pálpebras fechadas. Ela abriu os olhos.
Eles estavam fora da prisão. Ela temia nunca mais ver o lindo céu azul novamente. Kara olhava para trás deles a cada dois segundos. Mas as águias não estavam em lugar algum. Eles voaram por pelo menos uma hora antes que finalmente passaram por sobre a cidade flutuante. Eles avistaram o prédio do Alto Conselho e ela sentiu raiva dentro de si.
— Conseguimos! Conseguimos! — gritou Peter, mal conseguindo conter sua surpresa.
— Mas não escapamos do perigo ainda. Veja... — Jenny apontou para trás dela.
Duas águias monstruosamente grandes voavam na direção deles. Seus capacetes de metal reluziam sob a luz do sol. Suas asas poderosas se abriam e batiam contra o vento. Suas grandes garras estavam abertas e prontas. Aterrorizada, Kara observava uma das águias dobrar suas asas e mergulhar na direção deles.
— Faça algo! Elas vão nos pegar e me levar de volta!
David apanhou uma bolsa no chão.
— Eles não vão levá-la de volta.
Kara não estava convencida.
— O que você quer dizer? Se elas nos pegarem, elas vão.
— Elas não querem nos pegar.
— O quê? Você não está falando coisa com coisa. — Kara encarou David.
— O que ele está tentando dizer — interrompeu Jenny — é que nós quebramos a lei... eles não vão nos levar de volta... eles vão nos destruir.
Kara ouviu Peter resmungar. Ela observou a águia mergulhando como um míssil. Eles cairiam para a morte se ela os atingissem.
— Temos um plano?
— Eu tenho isto aqui. — David sacou duas adagas e duas Pedras da Lua. — Não sei se vão funcionar com aquelas águias, mas é melhor do que nada.
Kara se sentia horrível.
— Este é o seu plano! Você nem mesmo sabe se vão funcionar! — Kara jogou as mãos para cima. — Isto é muito ruim. — O guarda estava se precipitando na direção deles.
— Ei... espere um minuto? Onde está a outra? — O segundo guarda sumiu de vista.
— Ahhhh! — gritou Peter, apontando para cima.
Mas era tarde demais.
A segunda águia gigante se chocou contra o carro celeste com uma força inacreditável. As grandes garras rasgaram o carro no meio como se fosse de papel. Kara e o resto do grupo foram arremessados para fora do carro, como os bonecos de teste em vídeos de acidente de carro. O vento uivava no ouvido dela, enquanto ela sentiu cair.
Este é o fim, ela pensou. Vamos todos morrer.
Ela sentiu um aperto no braço. A força da queda era tão intensa que precisou de toda a força para virar a cabeça e ver que era David a segurando.
Uma sensação de ardor alfinetava seu corpo. Pequenas partículas emanavam de seu braço, como bolhas de uma pastilha antiácida jogada em um copo. As bochechas e a testa de David começaram a se desintegrar, como o fluxo de areia numa ampulheta. Fragmentos do corpo angelical flutuavam sobre eles e desapareciam na atmosfera como grãos de sal derretendo na água.
Kara olhou para Jenny e Peter. Ela viu um rastro de partículas flutuando atrás deles no ar como fagulhas de uma fogueira.
Eles não iriam sobreviver desta vez.
Pedaços do próprio corpo de Kara começaram a passar por seus olhos. Eles estavam caindo rapidamente para a atmosfera da Terra, caindo nove mil metros para suas mortes.
— Não vamos conseguir, David!
A esperança de Kara de salvar a sua mãe estava se esvaindo tão rápido quanto seu corpo que sumia no ar.
David apertou com mais força o braço de Kara.
— Vamos conseguir! — ele gritou mais alto que o vento. Parecia que David iria evaporar completamente a qualquer segundo. Ele inclinou a cabeça para baixo. — Veja!
Kara seguiu o exemplo dele e olhou para baixo, com os olhos apertados. Uma enorme massa de oceano azul turquesa estendia-se sob eles.
— É o oceano! Água! Estamos salvos!
— Se não acertamos alguma ilha... vamos ficar bem.
— O quê? — Kara gritou.
— Ilhas. — David apontou para baixo com o seu braço livre.
Para o terror de Kara, eles estavam se dirigindo para uma grande ilha, com montanhas e rochas bastante espessas. Ela olhou para Jenny e Peter. Eles também estavam olhando para a ilha. Peter olhou para cima. Seus olhos estavam cheios de medo. O corpo de Kara ficou tenso. Era culpa dela que eles estavam aqui. Se morressem agora, seria por causa dela.
— Kara... endireite o seu corpo assim... — David apertou as pernas e os braços contra o corpo.
Kara fez o mesmo. E, quando ela olhou para cima, Jenny e Peter os imitavam.
— Incline o seu corpo mais para a esquerda! Rápido!
Kara seguiu David e se inclinou para a esquerda, como paraquedistas fazendo uma apresentação. Por entre seus olhos apertados, ela podia ver a ilha se aproximando rapidamente. Ela não tinha certeza se acertariam a água ou se chocariam contra os rochedos afiados. Eles tinham apenas segundos antes de acertar alguma coisa. Kara fechou seus olhos para o impacto.
Mas o impacto nunca ocorreu.
Ela se dissolveu em milhares de luzes cintilantes ao atingir a água.