Inicialmente, os direitos fundamentais eram entendidos, como dizia CARL SCHMITT, como “os direitos do homem livre e isolado, direitos que possui em face do Estado”, constituindo os direitos da liberdade da pessoa particular diante do Estado burguês. Essa concepção, no entanto, correspondia aos chamados direitos fundamentais de 1.a geração, com seus três princípios cardeais: liberdade, igualdade e fraternidade. Em seguida, de acordo com as lições de PAULO BONAVIDES, surgiram os direitos de 2.a geração, que eram os direitos sociais, culturais e econômicos, como os direitos coletivos; depois, os de 3.a geração, relativos aos direitos ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, ao patrimônio da humanidade e à comunicação. Como direitos fundamentais de 4.a geração aponta o mesmo autor os direitos à democracia, à informação e ao pluralismo (Curso de direito constitucional, p. 517-525). Daí por que os direitos fundamentais abrangem os direitos individuais, os sociais, os coletivos e aqueles que interessam à humanidade de um modo geral.
São fundamentais ao desenvolvimento pleno e à felicidade da pessoa humana vista não somente do prisma individual, como alguém autônomo, deslocado da comunidade onde vive, mas, ao contrário, inserida num universo maior, onde estão também presentes e merecem ser protegidos os direitos da coletividade.
O Estado deve respeitar os direitos do indivíduo, mas precisa também limitá-los, em nome da democracia, pois, para manter o equilíbrio entre o direito isolado de um cidadão e o direito à segurança da sociedade, é preciso um sistema de garantias e limitações. Aliás, esse já era o alerta feito por KARL LOEWENSTEIN ao mencionar que o Estado democrático constitucional, muitas vezes, entra num dilema, quando resolve usar fogo contra fogo, ou seja, para evitar que agitadores totalitários utilizem as liberdades democráticas para destruir a própria democracia, acaba atentando contra os princípios de liberdade e igualdade que tanto defende. Mas essa aparente contradição é passível de solução, desde que o Estado saiba dosar o quanto invade a esfera de liberdade individual em nome da segurança social e o quanto precisa limitar o direito individual para não ferir o coletivo (Teoría de la Constitución, p. 404-405). Para assegurar o exercício de direitos tão importantes como os inerentes à natureza humana é preciso contrabalançar autoridade e liberdade, pois uma complementa a outra. Disse Madison, durante a Assembleia Constituinte de Filadélfia: “Se homens fossem anjos, nenhum governo seria necessário. Se anjos governassem homens, nem controles externos, nem internos sobre o governo seriam necessários. Na estruturação de um governo que deve ser administrado por homens sobre homens, a grande dificuldade consiste no seguinte: deve-se em primeiro lugar tornar o governo apto a controlar os governados; num segundo momento, obrigá-lo a se controlar” (cf. CHRISTOPHER COLLIER e JAMES L. COLLIER, Decision in Philadelphia, p. 244, traduzi).
Fundamental é o básico, necessário, essencial. E por tal razão são fundamentais os direitos e garantias individuais. A sua origem foi justamente para combater os abusos do Estado, reconhecendo-se que o homem possui valores que estão acima e fora do alcance estatal. Os mandamentos cristãos em muito auxiliaram o cultivo cada vez maior desses direitos, mas nem por isso a Igreja, quando se tornou totalitária na Idade Média, deixou de sofrer o refluxo causado pelos protestantes que, em última análise, clamavam por direitos e valores que vinham sendo deixados de lado pela Inquisição. Desde então, evoluíram o constitucionalismo e as liberdades individuais lado a lado, formando as bases do Estado democrático de Direito.
É natural poder afirmar que a Antiguidade não conheceu os direitos individuais, visto que somente a partir do desenvolvimento do direito constitucional inglês, com a edição da Magna Carta, é que o mundo passou a gozar paulatinamente de maiores liberdades, especialmente diante do Estado, que era absoluto e onipotente. Mesmo o que se titulava democracia na Grécia antiga, com a participação direta e efetiva dos cidadãos no governo, era relativo, pois a maioria da população era constituída de escravos e não tinha direito a voto (DARCY AZAMBUJA, Teoria geral do Estado, p. 142 e 217; SAMPAIO DÓRIA, Direito constitucional, p. 177).
Fixadas as bases para ser consagrado o entendimento de que os direitos fundamentais englobam os direitos individuais, é preciso verificar se há direitos fundamentais em sentido material e em sentido formal, tal como se dá na conceituação de Constituição. Para tanto, pode-se invocar o ensinamento de JORGE MIRANDA, ao concluir que “por direitos fundamentais entendemos os direitos ou as posições jurídicas subjetivas das pessoas enquanto tais, individual ou institucionalmente consideradas, assentes na Constituição, seja na Constituição formal, seja na Constituição material – donde, direitos fundamentais em sentido formal e direitos fundamentais em sentido material” (Manual de direito constitucional, t. IV, p. 7). Formalmente, pois, são direitos fundamentais os que estiverem previstos como tais na Constituição Federal, vale dizer, “toda a posição jurídica subjetiva das pessoas enquanto consagrada na Lei Fundamental” (op. cit., p. 8). Mas há direitos inerentes à pessoa humana, não constantes no Texto Magno, por questões políticas e sazonais, que são efetivamente fundamentais, essenciais. Como exemplo pode-se mencionar o direito à vida. Houvesse uma Constituição que não o consagrasse e ainda assim jamais deixaria de ser um direito fundamental, materialmente falando.
O importante é ressaltar que todos os direitos fundamentais devem ser rigorosamente observados pelo Estado que se pretenda democrático e de Direito.
Mas não é inútil, no entanto, essa diferença (direitos fundamentais em sentido material e em sentido formal), pois conhecendo a essência desses direitos é possível detectar quando uma Constituição deixou de fazer previsões indispensáveis a uma ordem realmente democrática. E mais: o fato de algum direito fundamental não ter constado na Lei das leis não exclui a possibilidade da ordem jurídica reconhecê-lo. Nesse sentido, note-se o constante no art. 5.°, § 2.°, da Constituição brasileira: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
Se por um lado os direitos fundamentais, em sentido material, são aqueles indispensáveis ao desenvolvimento da pessoa humana – direito à vida; igualdade jurídica; liberdades física, de pensamento, de crença e de se manifestar; inviolabilidade de domicílio; sigilo de correspondência; liberdade de reunião e de associação; liberdade laborativa; direito de propriedade, entre outros –, por outro, os direitos fundamentais, em sentido formal, vale dizer, aqueles que apenas estão previstos na Constituição, podem não ser, de fato, direitos que façam parte do fluxo indispensável da vida do indivíduo.
PONTES DE MIRANDA chama os direitos verdadeiramente fundamentais de supraestatais, aqueles que procedem do direito das gentes, o direito humano no mais alto grau. Por isso, algumas Constituições podem transformar em fundamental o que não é supraestatal. Importante mencionar expressamente suas palavras: “Quando o Estado, sem ser obrigado a editar alguma regra jurídica, ou a reconhecê-la como implícita, porque a ordem jurídica supraestatal não o contém, consagra regras em que se traduz a equação the man versus the State, portanto, por sugestão sua, própria ou do seu povo, – o direito é fundamental, porém não supraestatal. Assim, nem todos os direitos que aparecem nas Declarações de Direitos são supraestatais: são fundamentais, ou, apenas, constitucionais (direitos e garantias). Os direitos supraestatais, pelo menos sistematicamente, são concebidos como anteriores ao Estado; os direitos fundamentais, nem sempre: se a Constituição os considera tais, é porque o legislador constituinte costuma traduzir em tempo (‘pré-estatal’) o que se lhe revela em intensidade (the man versus State)” (Comentários à Constituição de 1946, p. 243).
Sob tal prisma, poder-se-ia dizer que os direitos fundamentais em sentido material são os direitos supraestatais, reconhecidos como inerentes à dignidade da pessoa humana pela maioria das nações e que formam, na atualidade, o cerne das Declarações Universais dos Direitos do Homem, seja a de 1789 (França) ou a de 1948 (ONU), mas também todos os que figuram nos inúmeros tratados celebrados e assinados pela comunidade internacional.
Uma Constituição pode transformar um direito qualquer em fundamental, levando em conta os interesses de determinado povo, titular do poder constituinte originário, que tudo pode, mas nem por isso esse direito fundamental torna-se, automaticamente, supraestatal, ou seja, reconhecido internacionalmente como tal. De outro lado, quando a Lei Básica de um povo deixa de lado algum direito materialmente fundamental é preciso compreender que, nem por isso, ele deve deixar de ser reconhecido como tal pelo sistema jurídico.
O direito à liberdade de locomoção e à liberdade de consciência, por exemplo, são direitos fundamentais supraestatais (em sentido material, portanto) e não devem deixar de constar no rol dos direitos fundamentais da Constituição de um Estado que se pretenda verdadeiramente democrático.
Trilhando para um conceito mais definido, pode-se sustentar que direitos do homem e direitos fundamentais são normalmente expressões utilizadas como sinônimas, embora a diferença feita por CANOTILHO apresente interesse: “Segundo a sua origem e significado poderíamos distingui-las da seguinte maneira: direitos do homem são direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos (dimensão jusnaturalista-universalista); direitos fundamentais são os direitos do homem, jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espácio-temporalmente. Os direitos do homem arrancariam da própria natureza humana e daí o seu caráter inviolável, intemporal e universal; os direitos fundamentais seriam os direitos objetivamente vigentes numa ordem jurídica concreta” (Direito constitucional, p. 517; JORGE MIRANDA, Manual de direito constitucional, t. IV, p. 51).
Inexistem grandes reparos a fazer por conta disso. É possível sustentar que os direitos do homem são os direitos fundamentais em sentido material ou os direitos supraestatais, enquanto os direitos fundamentais, nessa definição jurídico-institucional de CANOTILHO, seriam os obtidos no sentido formal, não necessariamente supraestatais.
O fato é que a expressão direitos fundamentais, seja em sentido material, seja em sentido formal, vem sendo a preferida dos textos constitucionais nas últimas décadas, remontando principalmente da Constituição de Weimar (século XX), conforme preleciona JORGE MIRANDA (op. cit., t. IV, p. 48). O mesmo autor, aliás, ressalta que no plano internacional usa-se mais a expressão direitos do homem, possivelmente para expressar que são inerentes aos indivíduos e não aos Estados.
Portanto, a expressão direitos fundamentais, embora abranja também os direitos do homem ou os direitos humanos, fica reservada aos direitos consagrados na Lei Fundamental de um povo e são também conhecidos como liberdades públicas. Engloba, como se disse, os direitos individuais.
A par do conceito traçado para os direitos fundamentais, torna-se necessário distingui-los das garantias fundamentais. É certo que parte da doutrina menciona ser difícil a missão de conceituar uns e outras, mas não é menos correto afirmar que a maioria dos constitucionalistas veem dessemelhança entre eles. Realmente não se pode dar o mesmo significado a direitos e garantias.
Esclarece JORGE MIRANDA que “os direitos representam só por si certos bens, as garantias destinam-se a assegurar a fruição desses bens; os direitos são principais, as garantias são acessórias e, muitas delas, adjetivas (ainda que possam ser objeto de um regime constitucional substantivo); os direitos permitem a realização das pessoas e inserem-se direta e imediatamente, por isso, nas respectivas esferas jurídicas, as garantias só nelas se projetam pelo nexo que possuem com os direitos; na acepção jusracionalista inicial, os direitos declaram-se, as garantias estabelecem-se.” Poder-se-ia dizer então que os direitos assentam na pessoa, independentemente do Estado; são formas de a pessoa agir e valem por aquilo que vale a pessoa; enquanto as garantias reportam-se ao Estado em atividade com relação à pessoa; são modos de organização ou atuação do Estado e têm valor instrumental e derivado (Manual de direito constitucional, t. IV, p. 89).
Em que pese tal diferença ser correta, não é menos verdadeiro que muitos direitos fundamentais são, na prática, garantias fundamentais de outros direitos fundamentais e assim por diante. É bem difícil distinguir um direito e uma garantia, como aponta VICENTE GRECO FILHO (Tutela constitucional das liberdades, p. 40), embora seja também possível que haja uma superposição desses preceitos.
O direito à liberdade física é fundamental. Para amparar tal direito, surge a garantia de que ninguém será levado ao cárcere sem o devido processo legal. Para dar-se um regular processo constitucional, surge a garantia da ampla defesa, que, por sua vez, é garantida pelo contraditório. O devido processo legal também é garantido pelo direito à prova e pela não admissão, no processo, das provas ilícitas. Nos debates ocorridos na Assembleia Nacional Constituinte de 1946, disse o representante paulista ALVES PALMA: “É preciso garantir a ampla defesa e só o princípio contraditório pode fazê-lo” (JOSÉ DUARTE, A Constituição brasileira de 1946, v. 3, p. 71).
Visualizado sob outro prisma, o ser humano tem direito a produzir, no processo criminal, quando acusado pelo Estado, uma ampla defesa e, para garantir tal direito, surge a garantia do habeas corpus, como remédio contra o abuso estatal eventualmente vedando o acesso do réu à produção de provas lícitas.
Possivelmente porque existe tal possibilidade de confusão entre direitos e garantias, CELSO BASTOS enumera as garantias supracitadas (devido processo legal, ampla defesa e contraditório) como direitos individuais. Para garanti-los, elenca as ações constitucionais, tais como o habeas corpus, o mandado de segurança, o mandado de injunção, a ação popular, o habeas data e a ação civil pública (Curso de direito constitucional, p. 177 e ss.). E CANOTILHO afirma: “Rigorosamente, as clássicas garantias são também direitos, embora muitas vezes se salientasse nelas o caráter instrumental de proteção dos direitos. As garantias traduziam-se quer no direito dos cidadãos a exigir dos poderes públicos a proteção dos seus direitos, quer no reconhecimento de meios processuais adequados a essa finalidade (ex.: direito de acesso aos tribunais para defesa dos direitos, princípios do nullum crimen sine lege e nulla poena sine crimen, direito de habeas corpus, princípio non bis in idem)” (Direito constitucional, p. 520).
Muitas poderiam ser as soluções, embora seja essencial extrair um método de análise para o quadro dos direitos e garantias individuais. Retornando, pois, às diferenças sugeridas por JORGE MIRANDA, que aliás encontram respaldo nas lições de RUI BARBOSA (direitos individuais são aspectos ou manifestações da personalidade humana em sua existência subjetiva ou em relação à sociedade, enquanto garantias são as solenidades que tutelam alguns desses direitos contra os abusos do poder, conforme menção feita por ARAUJO CASTRO, A nova Constituição brasileira, p. 356), tem-se que, numa visão individualizada de determinado preceito constitucional (por exemplo, o do devido processo legal), como direito de todo homem, suas garantias são o contraditório e a ampla defesa, embora, num prisma sistêmico, o verdadeiro direito fundamental que está sendo protegido pelo devido processo legal, pela ampla defesa e pelo contraditório é a liberdade física do indivíduo.
Desse modo, são direitos individuais – porque inerentes à pessoa humana – o direito à liberdade de locomoção, garantido, como mencionado, pelo devido processo legal e seus corolários; o direito à liberdade de consciência e de crença, garantido pelo livre exercício de cultos religiosos, protegidos os locais onde se realizam tais cultos e suas liturgias; o direito à livre manifestação do pensamento e o direito à honra, garantidos pelo direito de resposta; os direitos à vida e à integridade física, garantidos pela proibição da pena de morte e da tortura, e assim sucessivamente.
Sem a pretensão de esgotar o assunto, mas adotando a diferença existente entre direito e garantia, num enfoque sistemático, tem-se que os direitos fundamentais são meramente declaratórios (direito à liberdade, p. ex.) e as garantias fundamentais são assecuratórias (devido processo legal, e.g.).
Logicamente, a garantia não deixa de ser um direito. No exemplo já mencionado, o devido processo legal é uma garantia do direito à liberdade, mas também é um direito, garantido pela ampla defesa e pelo contraditório. Até mesmo o habeas corpus, que é uma garantia, pode ser visto como um direito: o direito de utilizar um instrumento constitucional. Entretanto, ainda assim, a diferença entre direito e garantia é sensível. Há direitos que não são garantias, como é o caso do direito à vida, embora todas as garantias sejam também direitos. Eis por que JOSÉ AFONSO DA SILVA chama as garantias fundamentais de direitos instrumentais, já que destinados a tutelar um direito principal (Curso de direito constitucional positivo, p. 365).
Os direitos fundamentais, pois, constituem-se de direitos individuais, coletivos, sociais e políticos, exaltados na Constituição, e são os indispensáveis ao pleno desenvolvimento do homem e do cidadão, especialmente frente ao Estado, que tem por obrigação não somente respeitá-los, mas também assegurá-los e protegê-los. As garantias fundamentais são os instrumentos constitucionais colocados à disposição dos indivíduos e das instituições para fazer valer os direitos fundamentais. “Em última análise, é a Constituição a garantia tanto dos direitos stricto sensu como dos direitos-garantia” (JORGE MIRANDA, Manual de direito constitucional, t. IV, p. 91) e “o reconhecimento e a proteção dos Direitos e das Liberdades Fundamentais são o núcleo essencial do sistema político da democracia constitucional” (KARL LOEWENSTEIN, Teoría de la Constitución, p. 392).
A hegemonia da Constituição sobre todo o sistema normativo é uma realidade inerente ao próprio processo de criação da Lei Fundamental, alicerçado sobre a vontade do povo, detentor do poder constituinte originário.
É certo que atualmente se fala na existência de três Poderes do Estado (Executivo – que administra, aplicando as leis; Legislativo – que produz as normas a serem seguidas pela sociedade e pelo Estado; Judiciário – que faz atuar o direito objetivo, resolvendo os conflitos porventura existentes entre normas e interesses violados), mas o certo também é que o poder do Estado é uno, decorrente da sua soberania, de forma que, em verdade, ele apenas atua em diferentes funções (KARL LOEWENSTEIN, op. cit., p. 55). Ensina JOÃO MENDES JÚNIOR que “a força vital da sociedade civil se manifesta nos poderes: Legislativo, cujo fim é definir o direito e desenvolver o interesse social; Executivo, cujo fim é manter o direito e promover o interesse social; e Judiciário, cujo fim é aplicar o direito às relações individuais” (Noções ontológicas de Estado, soberania, autonomia, federação, fundação, p. 26-27).
Assim sendo, cabe ao Estado – através de seus poderes – cumprir e fazer cumprir a Constituição, concretizada pela vontade do povo, autêntico titular do poder constituinte. Sob tal prisma, nenhuma norma infraconstitucional pode conflitar com a Constituição sem ter de ceder o seu espaço para a supremacia da Lei Fundamental. Tanto assim que o governante não está obrigado a cumprir leis inconstitucionais, nem o Legislativo deve criá-las e cabe ao Judiciário zelar pelo controle de constitucionalidade das normas em geral.
A par da discussão existente a respeito da supremacia do Judiciário sobre os demais poderes, porque ele, em última análise, declarando o que é constitucional e o que não é, poderia acabar invadindo a esfera de competência do Legislativo, não menos certo é que se torna imperiosa a necessidade de garantir um equilíbrio razoável entre a atividade legiferante e a atividade julgadora. Buscando evitar justamente a superposição de um Poder sobre outro, com cautela deve agir o Judiciário ao considerar inconstitucionais certas normas, porque cabe aos representantes do povo criá-las. Isso não significa, no entanto, que deva abrir mão de sua principal tarefa: garantir, pela aplicação do direito ao caso concreto, a hegemonia da Constituição, que visa a dar unidade a todo o sistema.
Essa é uma concepção herdada do direito americano, no qual cabe ao Judiciário o papel de interpretar a Constituição e fazer com que as normas editadas pelo Legislativo sejam conformes ao Texto Básico.
A supremacia da Lei Fundamental é mais claramente compreendida quando se trata da legislação ordinária; mais difícil e complexa é a situação quando possa existir eventual antinomia entre normas constitucionais. É bem verdade que tal ocorrência não é comum, mesmo porque o constituinte elabora a Constituição de uma só vez, num só processo e, em regra, o seu texto é fruto de uma única vontade que não pode ser contraditória.
O processo constituinte que o Brasil vivenciou nos anos de 1987 e 1988, até culminar com a promulgação da atual Constituição em 5 de outubro de 1988, dá mostra disso. Durante quase dois anos, o Congresso Nacional, transformado em Assembleia Nacional Constituinte, eleito pelo povo, deliberou sobre o novo Estado brasileiro que estava sendo criado. Através de várias votações e revisões, bem como através das comissões de sistematização e redação, o Texto Magno concluiu-se, de forma geral, harmonicamente.
Entretanto, como é fruto do ser humano, nada mais natural do que conter contradições e erros. Quando tais confrontos parecem ocorrer entre normas e princípios constitucionais, vale aplicar a regra propugnada pelas lições de LUÍS ROBERTO BARROSO: “A grande premissa sobre a qual se alicerça o raciocínio desenvolvido é a de que inexiste hierarquia normativa entre as normas constitucionais, sem qualquer distinção entre normas materiais ou formais ou entre normas-princípio e normas-regra. Isso porque, em direito, hierarquia traduz a ideia de que uma norma colhe o seu fundamento de validade em outra, que lhe é superior. (...) Não obstante isso, é inegável o destaque de algumas normas, quer por expressa eleição do constituinte, quer pela lógica do sistema. No direito constitucional positivo brasileiro, foram expressamente prestigiadas as normas que cuidam das matérias integrantes do núcleo imodificável da Constituição, que reúne as chamadas cláusulas pétreas. Consoante o elenco do § 4.°, do art. 60, não podem ser afetadas por emendas que tendam a abolir os valores que abrigam, as normas que cuidam: a) da forma federativa do Estado; b) do voto direto, secreto, universal e periódico; c) da separação dos Poderes; d) dos direitos e garantias individuais. Estes últimos fazem parte do princípio democrático. Porque assim é, deve-se reconhecer a existência, no Texto Constitucional, de uma hierarquia axiológica, resultado da ordenação dos valores constitucionais, a ser utilizada sempre que se constatarem tensões que envolvam duas regras entre si, uma regra e um princípio ou dois princípios” (Interpretação e aplicação da Constituição, p. 187).
Assim, diante de eventual antinomia entre normas constitucionais, é preciso que o intérprete da Constituição busque conciliá-las, sem fazer com que uma prevaleça sobre a outra, pois todas provêm da mesma fonte, ou seja, da vontade soberana do poder constituinte (CANOTILHO, Direito constitucional, p. 601). Mas, em caso de não ser possível tal compatibilização, é mais indicado que as normas-princípio, eleitas como cláusulas imodificáveis pelo criador da Lei Fundamental, prevaleçam. Não teria o constituinte erigido determinados princípios à categoria de pétreos se não fossem de crucial importância para todo o sistema normativo e para a própria harmonia das normas constitucionais.
Se eventualmente uma norma-regra, constante na Constituição, chocar-se com outra norma, sendo esta última um direito fundamental (norma-princípio), por exemplo, deve prevalecer este último, homenageando-se o valor a ele atribuído pelo poder constituinte originário.
Vê-se, pois, que os direitos e garantias individuais são considerados axiologicamente superiores a outras normas constitucionais que não tenham o mesmo valor, embora, sempre que possível, deva o intérprete conciliar casuais contradições, sem que haja a prevalência de uma norma sobre outra. Essa superioridade decorre, como já mencionado, da necessidade imposta pelo Estado Democrático de Direito, afinal, democracia não significa somente o exercício do poder pela maioria, mas também o respeito pelos direitos da minoria. Diz COMPARATO que “nos países politicamente desenvolvidos, democracia significa lei da maioria, mais o respeito aos direitos fundamentais do homem. No Brasil, a autêntica democracia realizar-se-á com a atribuição do poder soberano à maioria, por meio do respeito aos direitos essenciais da pessoa humana” (Por que não a soberania dos pobres?, p. 106).
Pode-se argumentar que, existindo direitos e garantias fundamentais em sentido material e em sentido formal, somente os primeiros mereceriam triunfar nessa supremacia de uma norma-princípio em conflito com uma norma-regra. Não é o correto, pois uma vez eleita determinada norma como direito ou garantia individual pelo constituinte, mesmo que seja só formalmente um direito ou uma garantia fundamental, deve ser respeitada como tal. Inexiste, pois, esse contraste entre o formal e o material: todos os direitos e garantias individuais são valorativamente superiores.
Em conclusão: a Constituição é suprema no sistema normativo; dentre suas normas, são axiologicamente hegemônicas as que tiverem sido eleitas pelo poder constituinte originário como pétreas, pois evidenciam o cuidado especial que possuiu o povo ao tratar dos assuntos por elas regidos. É o caso dos direitos e garantias individuais. Se normas ordinárias entrarem em confronto com tais normas constitucionais, devem estas últimas prevalecer; se normas constitucionais não constantes do rol do art. 60, § 4.°, da Constituição, conflitarem com os direitos e garantias individuais, mais uma vez devem estes preponderar.
Finalmente, se dentre os direitos e garantias individuais aparentemente houver uma antinomia, deve o intérprete, necessariamente, buscar a conciliação, conforme o caso concreto, pois não há qualquer prevalência de um sobre outro. Se algo for permitido por um princípio e vedado por outro, um dos princípios deve recuar, o que não significa ter sido considerado nulo ou revogado (cf. PAULO BONAVIDES, Curso de direito constitucional, p. 251).
Direitos fundamentais: são os direitos consagrados na Constituição Federal, abrangendo os direitos individuais, os sociais, os coletivos e todos aqueles que interessam à humanidade de um modo geral, como, por exemplo, o meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Direitos humanos: são os direitos válidos para todos os povos em todos os tempos, decorrentes da própria natureza humana e, portanto, invioláveis e universais, considerados supraestatais.
Direitos individuais: são aspectos ou manifestações da personalidade humana em sua existência subjetiva ou em relação à sociedade.
Garantias individuais: são instrumentos de tutela dos direitos individuais em face do poder estatal e de eventuais abusos dos órgãos do Estado.