Fonte é o lugar de onde algo se origina. Em Direito, analisamos dois enfoques: fontes criadoras e fontes de expressão da norma. As primeiras são chamadas de fontes materiais; as segundas, fontes formais.
O Direito Processual Penal possui âmbito nacional, cabendo à União legislar e criar normas de processo (art. 22, CF: “Compete privativamente à União legislar sobre: I – direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho”, grifamos). Por isso, está em vigor o Decreto-lei 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal) para aplicação em todos os Estados brasileiros.
Como exceção, prevê o parágrafo único do referido art. 22 a possibilidade de haver lei complementar, editada pela União, autorizando os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas nesse artigo, entre elas, direito processual penal. Não se tem notícia de que isso tenha sido feito recentemente no Brasil.
Ressaltemos, ainda, a competência da União (Presidente da República referendado pelo Congresso Nacional) para celebrar tratados e convenções internacionais, fontes criadoras de normas processuais penais (aliás, o que vem ressaltado no art. 1.°, I, do CPP). A Convenção Americana dos Direitos Humanos (Decreto 678/92) criou pelo menos três regras (verdadeiras garantias humanas fundamentais) de processo penal: o direito ao julgamento por um juiz ou tribunal imparcial (Art. 8, n. 1), o direito ao duplo grau de jurisdição (Art. 8, n. 2, h) e a vedação ao duplo processo pelo mesmo fato (Art. 8, n. 4).
Por outro lado, deve-se destacar o disposto no art. 24 da Constituição: “Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: I – direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico; (...) IV – custas dos serviços forenses; (...) X – criação, funcionamento e processo do juizado de pequenas causas; XI – procedimentos em matéria processual” (grifamos). Percebe-se, pois, que, por via reflexa, os Estados e o Distrito Federal têm competência concorrente com a União, isto é, nas lacunas da legislação federal, cabe-lhes editar leis que envolvam, de certo modo, direito processual penal, apontadas as seguintes matérias: direito penitenciário (organização e funcionamento de presídios, o que não significa execução penal, matéria pertinente tanto a penal quanto a processo penal); custas dos serviços forenses (envolvendo o gasto da parte para estar em juízo); processo do juizado especial criminal; procedimentos em matéria processual. Neste último caso, encontramos aplicação importante da competência concorrente no contexto da correição parcial. Este recurso, criado por lei federal (Lei 1.533/51 e Lei 5.010/66), padecia da falta de procedimento para o seu processamento, o que foi conseguido pela edição do Código Judiciário do Estado de São Paulo (Lei de Organização Judiciária), indicando o mesmo rito do agravo de instrumento para tanto (atualmente, utiliza-se o rito do recurso em sentido estrito). Outros Estados podem ter atuado da mesma forma. Revogada a Lei 1.533/51, substituída pela Lei 12.016/2009, perde a correição parcial o amparo legal dessa fonte normativa. Porém, a tradição em sua utilização, além dos vários Regimentos de Tribunais, que a consagram, permitem a continuidade de sua existência processual.
Vale ressaltar, ainda, que a Constituição Federal autorizou os Estados a editar lei de organização judiciária própria (art. 125: “Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição. § 1.° A competência dos tribunais será definida na Constituição do Estado, sendo a lei de organização judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça”), o que termina por influir nas normas gerais acerca de competência. Exemplo: o Estado de São Paulo editou a Lei 3.947/83, atribuindo ao juízo cível, onde foi decretada a falência, a competência para julgar crimes falimentares, o que já foi considerado constitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Logo, embora o art. 512 do Código de Processo Penal (atualmente revogado pela Lei. 11.101/2005), juntamente com o art. 109, § 2.°, do Decreto-lei 7.661/45 (também revogado pela Lei 11.101/2005), preceituassem que, recebida a denúncia ou queixa, o processo deveria prosseguir em Vara Criminal pelo rito comum, não se observa essa regra na esfera da Justiça Paulista. Nem mesmo a edição da Lei 11.101/2005, que reiterou a competência do juízo criminal (art. 183), alterou esse entendimento. Sustenta-se ser a lei de organização judiciária do Estado-membro especial em relação à lei federal. Logo, continuam os crimes falimentares a ser julgados pelas Varas Cíveis (no Estado de São Paulo), embora existam algumas Varas específicas para Falências e Recuperações Judiciais (consultar a nota 113 ao art. 183 da Lei 11.101/2005 do nosso Leis penais e processuais penais comentadas – vol. 2).
A Lei de Organização Judiciária do Estado pode criar Varas Especializadas em determinada matéria, o que reflete, sem dúvida, na competência do juízo, matéria típica de processo penal.
Outro aspecto importante é destacar a força que os Regimentos Internos dos Tribunais possuem para cuidar de rito e processamento de recursos, por vezes com possibilidade de criar determinados tipos de recurso, de trâmite interno, como ocorre com o denominado agravo regimental. Exemplo de alteração do disposto em lei pelo Regimento Interno do STF: no procedimento de homologação de sentença estrangeira (atualmente, após a Emenda 45/2004 à CF, de competência do STJ), o CPP (art. 789, § 2.°) fixa o prazo de dez dias para o interessado, citado, manifestar-se. Entretanto, o Regimento Interno concedeu o prazo de quinze dias para isso. Nenhum prejuízo adveio, ao contrário, ampliou-se a oportunidade de defesa, motivo pelo qual foi aceita a modificação. Atualmente, encontra-se em vigor a Resolução 9/2005 da Presidência do Superior Tribunal de Justiça, que, no art. 8.°, manteve o prazo de quinze dias para a contestação.
Outra ilustração que se pode inserir acerca da importância dos Regimentos Internos em matéria de disciplina do procedimento e do trâmite dos recursos nas Cortes, encontramos em julgamento do Supremo Tribunal Federal: “A Turma concluiu julgamento de habeas corpus impetrado em favor de condenado por latrocínio (CP, art. 157, § 3.°, in fine) no qual se pretendia a declaração de nulidade do julgamento proferido pelo STJ em idêntica medida, sob a alegação de cerceamento de defesa consistente: a) no indeferimento do pedido de prévia intimação do dia em que seria julgado o writ, para fins de sustentação oral; b) no prejuízo advindo da condenação do paciente em razão de deficiência técnica da defesa, apresentada por defensor dativo – v. Informativo 427. Preliminarmente, não se conheceu do writ relativamente à suposta deficiência na defesa, porquanto esta seria reiteração de outro habeas corpus examinado pelo STF (HC 83503-GO, DJU 07.11.2003). No mérito, indeferiu-se a ordem por se entender que à parte caberia a diligência de acompanhar, junto ao gabinete do relator, a colocação do processo em mesa, haja vista a ciência tanto do indeferimento da solicitação quanto do teor do dispositivo do Regimento Interno do STJ – o qual dispõe que o julgamento de habeas corpus independe de pauta (RISTJ, art. 91, I). Ademais, considerou-se violado o art. 571, VIII, do CPP, uma vez que a alegada nulidade somente fora arguida dois anos depois da publicação do acórdão, asseverando que esta matéria estaria preclusa, já que não aduzida naquele writ aqui impetrado. Por fim, ressaltou-se que, embora o STF tenha modificado o seu regimento interno (RISTF, art. 192, parágrafo único-A, incluído pela Emenda Regimental 17/2006 [atual § 2.°, com redação determinada pela Emenda Regimental STF 30/2009]) para permitir que o impetrante, caso requeira, seja cientificado pelo gabinete da data do julgamento, não existe previsão semelhante no RISTJ” (HC 87.520-GO, 1.a T., rel. Ricardo Lewandowski, 24.10.2006, v.u., Informativo 446, grifos nossos).
Em suma, normas processuais penais – diversamente das normas penais, cujo âmbito de criação é limitado à União e excepcionalmente ao Estado, se autorizado por lei complementar – têm mais opções no campo das fontes materiais.
E, após a Emenda Constitucional 45/2004, autorizou-se o STF a editar súmulas vinculantes, que passam a ter força de lei. Logo, temos novas fontes material e formal. O Pretório Excelso, como fonte material; a súmula vinculante, como fonte formal. Confira-se no art. 103-A da Constituição Federal: “O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei. § 1.° A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica. § 2.° Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade. § 3.° Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso”. Atualmente, editou-se a Lei 11.417/2006, regulamentando o disposto no referido art. 103-A da CF.
O Direito Processual Penal se expressa, como regra, por lei ordinária, editada pela União. Excepcionalmente, podemos encontrar regras de processo penal em leis complementares e, em tese, até em emendas à Constituição. Afinal, essas fontes normativas, embora não sejam o palco ideal para cuidar de processo, estão hierarquicamente acima da lei ordinária e provêm do Congresso Nacional. Por isso, nada impediria que criassem alguma norma processual penal. Lembremos que a Constituição Federal contém vários dispositivos tratando de matéria concernente a essa área, como a norma do art. 5.°, LVIII, cuidando da identificação criminal (“o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei”) ou ainda tratando do direito ao silêncio (art. 5.°, LXIII), da liberdade provisória (art. 5.°, LXVI), dentre outros.
Além das leis em geral, lembremos que os tratados e convenções, aprovados por decreto legislativo e promulgados por decreto, servem de fonte de expressão do direito processual penal.
Não estando a norma processual penal vinculada estreitamente ao princípio da legalidade penal (não há crime sem lei que o defina, nem pena sem lei que a comine), é viável admitir que outras fontes de expressão sejam incluídas nesse contexto, denominadas de fontes indiretas.
Os costumes (regras habitualmente praticadas, que se incorporam ao ordenamento jurídico, tornando-se obrigatórias, embora não previstas em lei) podem servir de base para expressar normas processuais penais. Lembremos o uso tradicional das vestes talares, tradicionalmente utilizadas por magistrados em sessões de julgamento e por todos os operadores do direito (juiz, promotor e advogado) no plenário do Júri e nas Câmaras, Turmas ou Plenários de instâncias judiciais superiores. A quebra do costume pode inviabilizar um julgamento ou cercear o exercício de um direito (ex.: um advogado não seria admitido a fazer sustentação oral no tribunal vestindo-se informalmente, como se estivesse em atividade esportiva).
Outro exemplo pode ser encontrado no art. 793 do Código de Processo Penal, disciplinando o modo de agir das partes e dos presentes em audiências ou sessões do tribunal. Não há mais sentido em se obrigar que cada pessoa da sala de audiências somente se dirija ao juiz se estiver em pé, nem mesmo se levante a cada momento em que o magistrado se levantar. Novos tempos e outros hábitos, mais abertos e flexíveis, permeiam o comportamento em audiência.
Os princípios gerais de direito (postulados éticos que inspiram a formação de normas e a aplicação da legislação ao caso concreto, sem expressa previsão legal) também podem contribuir para o cenário do processo penal. Exemplo: ninguém pode beneficiar-se da própria torpeza ou má-fé. Esse princípio geral de direito pode dar margem ao juiz para resolver situações de conflito geradas pela defesa que, interessada na prescrição, arrola pessoas em outros Estados da Federação, sem justificar a medida, somente para prorrogar indefinidamente a instrução, expedindo-se sistematicamente precatórias para ouvi-las, sem êxito imediato. Se o magistrado fixar prazo para o cumprimento das precatórias, não admitindo prorrogação, fundado nesse, estará atuando em homenagem à ética que deve reger os atos processuais.
A analogia é um processo de integração da norma, por um método de semelhança, voltado ao suprimento de lacunas. Assim, inexistindo lei específica para regular determinada situação, podemos usar outra, análoga, para solucionar o impasse. Voltaremos a tratar do tema no contexto da interpretação, pois muitos admitem que a analogia é, não somente fonte de expressão do direito processual penal, mas elemento de suprimento de lacunas, logo, de interpretação.
Interpretar a lei é atividade inerente a todo operador do direito, especialmente pelo fato de que o legislador nem sempre é feliz ao editar normas, valendo-se de termos dúbios, contraditórios, obscuros e incompletos. Não se trata de processo de criação de norma, nem de singelo suprimento de lacuna, mas de dar o real significado a uma lei.
Em processo penal, qualquer forma de interpretação é válida: literal (espelha-se no exato significado das palavras constantes do texto legal); restritiva (restringe-se o alcance dos termos utilizados na lei para atingir seu real significado); extensiva (alarga-se o sentido dos termos legais para dar eficiência à norma); analógica (vale-se o intérprete de um processo de semelhança com outros termos constantes na mesma norma para analisar o conteúdo de algum termo duvidoso ou aberto) ou teleológica-sistemática (busca-se compor o sentido de determinada norma em comparação com as demais que compõem o sistema jurídico no qual está inserida).
O art. 3.° do Código de Processo Penal é claro ao autorizar a interpretação extensiva (logo, as demais formas, menos expansivas, estão naturalmente franqueadas), bem como a analogia (processo de integração da norma, suprindo lacunas).
Somente para exemplificar, utilizando-se a interpretação extensiva podemos corrigir um aspecto da lei, que disse menos do que deveria ter previsto: quando se cuida das causas de suspeição do juiz (art. 254), deve-se incluir também o jurado, que não deixa de ser um magistrado, embora leigo. Outra ilustração: onde se menciona no Código de Processo Penal a palavra réu, para o fim de obter liberdade provisória, é natural incluir-se indiciado. Amplia-se o conteúdo do termo para alcançar o autêntico sentido da norma.
Como exemplo de interpretação analógica, vê-se o caso do art. 254, II, do Código de Processo Penal, cuidando das razões de suspeição do juiz, ao usar na própria lei a expressão “estiver respondendo a processo por fato análogo”.
Quanto à analogia, ensina Carlos Maximiliano que “no sentido primitivo, tradicional, oriundo da Matemática, é uma semelhança de relações. (...) Passar, por inferência, de um assunto a outro de espécie diversa é raciocinar por analogia. Esta se baseia na presunção de que duas coisas que têm entre si um certo número de pontos de semelhança, possam consequentemente assemelhar-se quanto a um outro mais. Se entre a hipótese conhecida e a nova a semelhança se encontra em circunstância que se deve reconhecer como essencial, isto é, como aquela da qual dependem todas as consequências merecedoras de apreço na questão discutida; ou, por outra, se a circunstância comum aos dois casos, com as consequências que da mesma decorrem, é a causa principal de todos os efeitos; o argumento adquire a força de uma indução rigorosa” (Hermenêutica e aplicação do direito, p. 253).
Como exemplos, temos os seguintes: a) o art. 207 do Código de Processo Civil prevê a possibilidade de se transmitir por telefone uma carta de ordem ou precatória, dependendo somente da confirmação do emissor. Não havendo dispositivo semelhante no Código de Processo Penal, tem-se usado tal preceito para a transmissão de ordens de habeas corpus, para a soltura do paciente, justamente porque mais eficaz; b) não há um número especificado no Código de Processo Penal para ouvir testemunhas no caso de exceção de suspeição apresentada contra o juiz, razão pela qual deve-se usar o disposto no art. 407, parágrafo único, do CPC, ou seja, três para cada fato.
SÍNTESE
Fontes materiais: constituem a base criadora do processo penal, isto é, a União, principalmente, mas também os Estados, se autorizados a fazê-lo por lei complementar editada pela União, além de outros campos especificamente destinados pela Constituição, como a edição de leis de organização judiciária e legislação concorrente de direito penitenciário, procedimentos e processo de juizados especiais criminais.
Fontes formais: são as maneiras de expressão do processo penal, que se concentram basicamente na lei, mas admitem outras formas, como os costumes, os princípios gerais de direito, a analogia e os tratados e convenções.
Interpretação: é a extração do real conteúdo da norma, buscando dar sentido lógico à sua aplicação.