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1.   CONCEITO

Trata-se da ação ajuizada pelo ofendido, na esfera cível, para obter indenização pelo dano causado pela infração penal, quando existente. Há delitos que não provocam prejuízos, passíveis de indenização – como ocorre nos crimes de perigo, como regra. O dano pode ser material ou moral, ambos sujeitos à indenização, ainda que cumulativa.

A legislação criminal cuida, com particular zelo, embora não com a amplitude merecida, do ressarcimento da vítima, buscando incentivá-lo, sempre que possível.

O Código Penal estabelece como efeito da condenação a obrigação de reparar o dano (art. 91, I). Firma, ainda, uma causa de diminuição da pena, caso o agente repare o dano ou restitua a coisa ao ofendido (art. 16). Estabelece como atenuante genérica a reparação do dano (art. 65, III, b). Incentiva-a para a substituição das condições genéricas da suspensão condicional da pena por condições específicas (art. 78, § 2.°). Fixa como condição para a concessão do livramento condicional a reparação do dano, salvo impossibilidade efetiva de fazê-lo (art. 83, IV). Enaltece-a, como condição para a reabilitação (art. 94, III). Permite a extinção da punibilidade no caso de peculato culposo cujo dano é devidamente ressarcido (art. 312, § 3.°). E não olvidemos o conteúdo da Súmula 554 do Supremo Tribunal Federal, ainda em vigor, que estabelece o seguinte: “O pagamento de cheque emitido sem provisão de fundos, após o recebimento da denúncia, não obsta ao prosseguimento da ação penal”, significando que, antes da propositura, o pagamento retira a justa causa para a ação penal.

O Código de Processo Penal, por sua vez, no Título IV do Livro I, ao cuidar da ação civil, proporciona meios mais eficazes para a vítima buscar reparação. Além disso, garante a utilização do sequestro (art. 125), da busca e apreensão (art. 240), do arresto (art. 136) e da hipoteca legal (art. 134). Assim, também, dispõe a Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei 9.613/98), incrementando o sequestro dos bens, valores ou direitos oriundos dos crimes que deram origem à lavagem, ainda que a ordem de apreensão provenha do estrangeiro (art. 8.°).

2.   SEPARAÇÃO DA JURISDIÇÃO

Privilegia o nosso sistema a separação da jurisdição, fazendo com que a ação penal destine-se à condenação do agente pela prática da infração penal e a ação civil tenha por finalidade a reparação do dano, quando houver. Note-se o disposto no art. 935 do Código Civil: “A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal”.

Apesar da consagração da separação, prevalece a justiça penal sobre a civil, quando se tratar da indenização de crime e aquela julgar que inexistiu o fato ou tiver afastado a autoria. É tempo, no entanto, de repensar esse sistema, permitindo-se que o juiz, na esfera penal, possa estabelecer, no mesmo processo onde há a condenação, a indenização civil completa e necessária à vítima. Privilegiar-se-ia a economia processual, protegendo-se com maior eficácia o ofendido e evitando-se que este, cético com a lentidão e o alto custo da Justiça brasileira, prefira o prejuízo à ação civil ex delicto.

No Código de Trânsito Brasileiro, através da multa reparatória, deu-se início a essa nova fase, estabelecendo-se que o juiz criminal pode, na sentença condenatória, não somente impor a pena, mas também um ressarcimento à vítima. É o que dispõe o art. 297, caput: “A penalidade de multa reparatória consiste no pagamento, mediante depósito judicial em favor da vítima, ou seus sucessores, de quantia calculada com base no disposto no § 1.° do art. 49 do Código Penal, sempre que houver prejuízo material resultante do crime”.

Amplia-se, ainda, a possibilidade de indenização diretamente no juízo criminal, como se observa pela leitura dos arts. 74 e 75 da Lei 9.099/95. Nas infrações de menor potencial ofensivo – cuja pena máxima em abstrato não ultrapassa dois anos, cumulada ou não com multa, e nas contravenções penais (art. 61, Lei 9.099/95) –, é possível haver a composição dos danos civis, homologada pelo juiz, valendo como título a ser executado no cível (art. 74 da referida Lei). Tratando-se de infrações sujeitas à representação da vítima ou de iniciativa privada, o acordo homologado provoca a renúncia à queixa ou ao direito de representação.

Outro exemplo importante advém da Lei 11.340/2006, que cuida da violência doméstica e familiar contra a mulher, determinando a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, com competência cumulativa cível e criminal (art. 14). Assim, se o marido agredir a esposa, no mesmo juízo, pode ser processado e condenado criminalmente, bem como pode ser decretada a separação de corpos, como medida cautelar, com fixação de alimentos provisionais ou provisórios e regulamentação de visitas aos filhos (art. 22, IV e V, c/c art. 23, I a IV).

Finalmente, a reforma trazida pela Lei 11.719/2008, alterando os arts. 63, parágrafo único, e 387, IV, do Código de Processo Penal, passou a permitir que o juiz criminal fixasse a indenização para a reparação do dano decorrente da infração penal, na sentença condenatória.

Entretanto, a modificação ainda foi tímida. Mencionou-se o seguinte: “Transitada em julgado a sentença condenatória, a execução poderá ser efetuada pelo valor fixado nos termos do inciso IV do caput do art. 387 deste Código sem prejuízo da liquidação para a apuração do dano efetivamente sofrido” (art. 63, parágrafo único, CPP). No referido art. 387, IV, estabeleceu-se que, na sentença condenatória, o juiz “fixará valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido”.

Nota-se não ter sido previsto nenhum procedimento para a apuração dos danos, nem o seu grau de abrangência (material ou moral). Nada se mencionou acerca da legitimidade ativa para pleitear a reparação dos danos: somente a vítima ou também o Ministério Público, atuando em seu nome? Poderia o juiz, de ofício, fixar a indenização, sem que ninguém tenha solicitado? Enfim, são questões que poderiam ter sido esclarecidas pelo bem do novo instituto, sob pena de não se concretizar a almejada junção da jurisdição. De todo modo, parece-nos que somente o ofendido poderia solicitar a indenização e o juiz não teria condições de fixá-la de ofício, sem nenhum pedido. Afinal, não tendo havido requerimento expresso, inexistiria discussão nos autos em relação ao valor, motivo pelo qual seria incabível a fixação de um montante qualquer, que não foi objeto de debate entre as partes interessadas.

Há posição em contrário, nos seguintes termos: “entendemos que não há necessidade que este pedido venha expresso na denúncia ou queixa, pois o dever de reparar é um dos efeitos da sentença, de modo que o juiz está autorizado na sentença condenatória a estipular o valor mínimo da reparação, bastando para tal que, ao fundamentar a sua decisão, demonstre os elementos objetivos que o levaram ao valor da condenação” (Leandro Galluzzi dos Santos, As reformas no processo penal, In: MOURA, Maria Thereza (coord.), p. 299).

Sobre tal entendimento, duas considerações básicas: a) o pedido não poderia vir expresso na denúncia, oferecida pelo Ministério Público, pois inexiste legitimidade para o Parquet se manifestar em nome da vítima com fundamento em interesse puramente civil, como é a indenização pleiteada; b) o dever de reparar o dano, em virtude do crime, é consagrado pelo art. 91, I, do CP; porém, o montante da indenização sempre foi discutido sob o crivo do contraditório, permitindo-se a ampla defesa. Se o juiz da condenação, sem prévio debate das partes, simplesmente, fixar um valor qualquer, ter-se-á rompido o tradicional e indeclinável devido processo legal.

Outro ponto que reputamos fraco é a previsão de fixação de valor mínimo para a reparação dos danos, permitindo que o interessado possa ingressar na esfera cível a fim de apurar o prejuízo efetivamente sofrido. O correto seria o estabelecimento de um valor real, debatido no processo criminal, a fim de não sobrecarregar a esfera cível com nova discussão a respeito do mesmo tema. Ademais, se o ofendido conseguir um valor mínimo qualquer, sem atingir o efetivamente devido, poderá sentir-se duplamente enganado. O Judiciário fixa-lhe um valor pífio, que não o deixa satisfeito, embora se sinta desmotivado para, novamente, demandar no cível outros valores.

Não se deve implementar uma modificação pela metade. O ideal é que a reparação civil possa ser apurada no processo criminal de maneira ampla, sem abertura para, depois, renovar-se o debate no cível. Por isso, pode envolver o dano moral, eventualmente, advindo pela prática do delito.

Pensamos deverem os juízes criminais, se instados pela vítima a promover a discussão da indenização civil, buscar atingir o valor real – e não somente o mínimo – deixando consignado, em suas sentenças, tal situação. Com isto, pode-se argumentar ter-se formado coisa julgada material, vedando-se o acesso à órbita civil, evitando-se a sobrecarga inútil de serviço.

3.   SENTENÇA CONDENATÓRIA COMO TÍTULO EXECUTIVO

Transitando em julgado e tornando-se, pois, definitiva, pode a sentença ser levada ao juízo cível para que a vítima obtenha a reparação do dano (art. 63, CPP). Não mais se discutirá se esta é devida (an debeatur), mas tão somente o quanto é devido pelo réu (quantum debeatur). Facilita-se o processo, impedindo-se o reinício da discussão em torno da culpa, merecendo debate somente o valor da indenização, o que é justo, pois o retorno ao debate a respeito da ocorrência do crime ou não somente iria causar o desprestígio da Justiça.

Se a indenização civil for fixada, pelo juiz criminal, de maneira ampla e definitiva, cremos ser indevida a liquidação na órbita do juízo cível. Entretanto, se não for estabelecida a reparação ou se apenas cuidar do valor mínimo, torna-se possível renovar a discussão no cível.

4.   SENTENÇA CONCESSIVA DE PERDÃO JUDICIAL

Entendemos que se trata de decisão de natureza condenatória, pois não se perdoa quem é inocente, mas sim aquele que é culpado, embora não mereça sofrer a imposição de pena. A despeito disso, está em vigor a Súmula 18 do Superior Tribunal de Justiça, considerando-a meramente declaratória, sem qualquer efeito condenatório. Pensamos, no entanto, como já expusemos na nota 30 ao art. 107 do nosso Código Penal comentado, que pode ela ser executada, como título, no cível. Entretanto, para quem optar pelo fiel cumprimento ao disposto na referida Súmula do STJ, será imprescindível reiniciar toda a discussão acerca da culpa do réu, beneficiário do perdão judicial, na esfera cível, para que possa haver indenização.

5.   DECISÃO DE EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE PELA PRESCRIÇÃO OU OUTRA CAUSA

Tratando-se da prescrição da pretensão punitiva, não possui efeito algum a eventual sentença condenatória, que já tenha sido prolatada. Assim, o reconhecimento de prescrição, cujo lapso completou-se antes do trânsito em julgado de sentença condenatória, afasta a formação de título executivo judicial.

Quando, no entanto, se tratar de prescrição da pretensão executória, ou seja, o lapso temporal completou-se depois do trânsito em julgado da sentença condenatória, permanecem os efeitos secundários da sentença – como maus antecedentes, a possibilidade de gerar reincidência, além da formação do título executivo judicial. O mesmo se aplica a outras causas de extinção da punibilidade, levando-se em conta se ocorreram antes ou depois da sentença definitiva.

6.   REVISÃO CRIMINAL

Havendo o ajuizamento de revisão criminal, caso seja julgada procedente, tem o condão de eliminar o título executivo, que é a sentença condenatória proferida anteriormente. Logo, se ainda não iniciada a execução, não mais pode ocorrer; caso tenha começado, deverá o juiz extingui-la por inexigibilidade do título. E, derradeiramente, se já tiver sido paga a indenização – uma vez que não houve processo de conhecimento para apurar a culpa na esfera cível – caberia ação de restituição, onde se poderia então debater a culpa do pretenso autor de ato ilícito.

7.   EXTENSÃO DO RESSARCIMENTO DO DANO

Tem um sentido amplo a reparação do dano provocado pelo crime, implicando não somente restituição da coisa – quando for possível –, mas também pagamento do prejuízo causado, abrangendo os lucros cessantes. Lembremos, ainda, que há prejuízos que não podem ser quantificados em dinheiro, pela falta de correspondência ao patrimônio, merecendo, então, que a indenização se dê pelo dano moral causado.

O art. 64 do Código de Processo Penal deixa bem claro o direito do ofendido de pleitear diretamente no juízo cível a reparação do dano, independentemente de haver sentença condenatória com trânsito em julgado, o que demonstra sem equívoco a separação da jurisdição. Pode ocorrer, portanto, duplicidade de ações discutindo o mesmo fato, embora em searas diferentes: uma, no juízo penal; outra, na órbita civil. Se tal se der, naturalmente, o juízo criminal deve abster-se de fixar qualquer valor de indenização civil na sentença condenatória. Afinal, haveria litispendência nesse campo.

Por cautela, o parágrafo único do referido artigo preceitua que, proposta a ação penal, o juiz da ação civil poderá suspender o curso desta até o julgamento definitivo daquela. Pensamos que o melhor caminho será sempre a suspensão da demanda civil, aguardando-se o término da penal, a fim de evitar decisões conflitantes. Seria indesejável que o juiz cível condene alguém a indenizar outrem pela prática de um delito quando, na esfera penal, está-se julgando inexistente o fato, por exemplo.

Conforme dispõe o art. 932 do Código Civil, são civilmente responsáveis pelo pagamento da indenização: “I – os pais, pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia; II – o tutor e o curador, pelos pupilos e curatelados, que se acharem nas mesmas condições; III – o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele; IV – os donos de hotéis, hospedarias, casas ou estabelecimentos onde se albergue por dinheiro, mesmo para fins de educação, pelos seus hóspedes, moradores e educandos; V – os que gratuitamente houverem participado nos produtos do crime, até a concorrente quantia”.

8.   RESPONSABILIDADE CIVIL DE TERCEIRO E DEVIDO PROCESSO LEGAL

Debate-se se a sentença condenatória penal definitiva pode servir de título executivo para cobrar do responsável civil, que não tomou parte no processo criminal, os danos provocados pela prática do delito.

Há quem sustente que sim, uma vez que o art. 64 prevê exatamente a hipótese de se utilizar o título formado contra o autor do crime ou, sendo o caso, contra o responsável civil. Entretanto, pensamos ser melhor a outra posição, que homenageia o devido processo legal. Não pode responder, como fato incontroverso e definitivo, aquele que não participou da ação penal. Assim, caso o empregado de alguém cometa, no exercício da função, um ilícito penal qualquer, a vítima não pode valer-se da sentença condenatória para, formando o título executivo, exigir, no cível, indenização do seu patrão. Desejando, pode ingressar com ação contra o próprio autor do delito, mas, caso queira – ou necessite – voltar-se contra o empregador, deve mover ação de conhecimento, permitindo a este a ampla defesa, assegurada a qualquer pessoa.

Mais uma vez, este é o inconveniente da separação da jurisdição. Se o juiz penal pudesse decidir acerca da responsabilidade penal e também da civil, logo poderia ser chamado o patrão a integrar a ação penal, querendo, tornando possível a condenação a quem efetivamente possa indenizar o dano causado.

Para evitar, no entanto, conflitos indesejáveis, a ação de conhecimento, movida na esfera cível, contra o patrão – ou outro responsável civil qualquer – deveria ter estreito âmbito de discussão, pois a culpa do referido responsável civil atualmente é objetiva, não mais se admitindo debate em torno da culpa in vigilando (se o patrão exerceu ou não corretamente seu poder de fiscalização sobre o empregado) ou in eligendo (se o patrão escolheu bem ou não seu funcionário). Restaria discutir se havia ou não relação de emprego entre o autor do crime (funcionário) e o réu na ação civil (patrão); poder-se-ia, ainda, debater se o empregado estava, no momento do crime, exercendo atividade particular – o que eximiria seu patrão de qualquer responsabilidade. No caso de outros responsáveis (pais, tutores, curadores, donos de hotéis e similares, participantes nos produtos do crime) dever-se-ia observar a mesma estreiteza na discussão da causa cível.

Abrindo-se ampla possibilidade de prova e revolvendo-se a culpa do empregado (filho, tutelado, curatelado etc.), pode-se gerar a inconveniente disparidade de decisões. Neste sentido, está o magistério de TOURINHO FILHO (Código de Processo Penal comentado, v. 1, p. 156), que, aliás, acrescenta o seguinte: “Se fosse possível a reabertura dessa discussão, haveria possibilidade de decisões contrastantes, criando uma situação de contundente extravagância. Ademais, a balbúrdia seria inominável, uma vez que, por via oblíqua, poderia o juízo cível afrontar o decidido no criminal, tanto mais quanto o art. 935 do Código Civil veda discussão a respeito. Haveria, assim, uma revisão criminal sui generis, na primeira instância, e, o que é pior, no juízo cível... Desse modo, para que se evitassem situações desastrosas como esta, o legislador teria que optar por uma dessas soluções: a) aquela estampada no art. 935 do Código Civil; e b) permitir a intervenção do responsável civil no processo criminal, à semelhança do que se dá no Direito argentino, Direito italiano (CPP, de 1930 e de 1988), Direito francês, Direito português (CPP de 1988)”. A segunda hipótese ventilada por TOURINHO FILHO é o que sustentamos seja adotado pelo legislador pátrio, de maneira expressa no Código de Processo Penal, o que hoje não ocorre. Por isso, pode-se discutir, no cível, a responsabilidade penal do autor da infração, já decidida com trânsito em julgado.

Cite-se, também, a posição de ROGÉRIO MARRONE DE CASTRO SAMPAIO, no sentido de que “tem prevalecido, tanto na jurisprudência quanto na doutrina, que o título executivo formado com a sentença penal condenatória confere legitimidade passiva para a ação executiva apenas ao ofensor, ou seja, aquele que foi parte na ação penal. Quanto à apuração da responsabilidade civil indireta (patrão por ato do empregado, a título de exemplo), necessário nova ação civil de conhecimento”. Entretanto, ressalva o autor que, a despeito do ensinamento de TOURINHO FILHO, tem triunfado na jurisprudência o entendimento de que, proposta a ação civil contra o terceiro responsável, tem ele direito de rediscutir todos os pontos de forma abrangente, sem qualquer vínculo, uma vez que a coisa julgada no crime não o atingiu (Responsabilidade civil, p. 75). Em igual prisma: MIRABETE (Código Penal interpretado, p. 131).

▶   LEMBRETE

Consultar os princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa para melhor entender a razão pela qual prevalece o entendimento de que o responsável civil, não tendo sido parte na ação penal, deve ter o direito de responder à ação civil, a fim de gerar a obrigação de reparar o dano. Assim, caso se formasse na esfera penal um título executivo contra sua pessoa, não mais se admitindo qualquer tipo de defesa, seria uma afronta aos mencionados princípios constitucionais.

9.   EXCLUDENTES DE ILICITUDE E FORMAÇÃO DA COISA JULGADA NO CÍVEL

Há quatro excludentes de ilicitude mencionadas na Parte Geral do Código Penal (art. 23): estado de necessidade, legítima defesa, exercício regular de direito e estrito cumprimento do dever legal. Servem para afastar, quando reconhecidas, a antijuridicidade do fato típico. Entretanto, a afirmação do art. 65 do Código de Processo Penal (“faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito”), apesar de verdadeira, não provoca, como consequência, a impossibilidade de ajuizamento de ação civil, em algumas situações, como veremos a seguir.

É bem verdade que o juiz civil não pode tornar a discutir o caráter delituoso de determinado fato, pois já se excluiu essa possibilidade no juízo criminal, fazendo coisa julgada na esfera cível. Entretanto, pode conceder a indenização por outros motivos, afinal, nem tudo o que é penalmente lícito, também o será civilmente.

Dispõe o art. 188 do Código Civil que, “não constituem atos ilícitos: I – os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido; II – a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente. Parágrafo único. No caso do inciso II, o ato será legítimo somente quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para a remoção do perigo”. Logo, a princípio, reconhecida a legítima defesa, o exercício regular de direito e o estrito cumprimento do dever legal, não cabe mais ao juiz civil debater a respeito. E mais: quanto à pessoa contra quem valeu-se alguém do exercício de direito ou do sujeito contra o qual valeu-se alguém do estrito cumprimento do dever legal, inexiste direito à reparação do dano. Assim, exemplificando: não constitui ato ilícito penal ou civil matar ou ferir aquele que desfere agressão injusta, atual ou iminente, contra a integridade física (legítima defesa); não constitui ato ilícito penal ou civil lesionar ou constranger alguém a sair de um lugar público, onde está nitidamente perturbando a ordem (exercício regular de direito); não constitui ato ilícito penal ou civil o policial prender alguém, valendo-se da violência que for necessária, quando está com prisão legalmente decretada (estrito cumprimento do dever legal).

No caso do estado de necessidade, entretanto, há maiores restrições. Tratando-se do estado de necessidade defensivo, isto é, voltar-se contra animal ou coisa que gera o perigo atual, necessário de ser afastado, não cabe indenização alguma, desde que, para a remoção do perigo não se atinja inocente. Exemplo: matar o cão que escapou na via pública e ameaça morder pessoas. O dono do animal nada pode reclamar. Tratando-se do estado de necessidade agressivo, ou seja, voltar-se contra pessoa, animal ou coisa de onde não provém o perigo atual, mas cuja lesão torna-se indispensável para salvar o agente do fato necessário, é cabível falar em indenização. Exemplo: aquele que matar um animal, que está dentro do quintal da casa do seu proprietário, porque invadiu o domicílio para fugir de um assalto, penalmente não responde, mas civilmente deve indenizar ao dono do imóvel os prejuízos causados, inclusive a morte do cão.

É justamente o que preceitua o inciso II do art. 188, em combinação com os arts. 929 e 930 do Código Civil. Confira-se: “Art. 929. Se a pessoa lesada, ou o dono da coisa, no caso do inciso II do art. 188, não forem culpados do perigo, assistir-lhes-á direito à indenização do prejuízo que sofreram. Art. 930. No caso do inciso II do art. 188, se o perigo ocorrer por culpa de terceiro, contra este terá o autor do dano ação regressiva para haver a importância que tiver ressarcido ao lesado. Parágrafo único. A mesma ação competirá contra aquele em defesa de quem se causou o dano (art. 188, inciso I)”. Conforme o disposto no art. 930, usando o exemplo já mencionado, o matador do cão no quintal deve indenizar o seu proprietário e, depois, querendo, voltar-se contra o assaltante que o perseguia.

Outra hipótese possível é haver aberratio ictus (erro na execução, conforme art. 73 do Código Penal), no contexto da legítima defesa. Se o agredido, para defender-se de determinada pessoa, terminar ferindo terceiro inocente, também fica obrigado a indenizá-lo, voltando-se, depois, em ação regressiva, contra o agressor.

10. EXISTÊNCIA DE SENTENÇA ABSOLUTÓRIA PENAL

Não é garantia de impedimento à indenização civil. Estipula o art. 386 do Código de Processo Penal várias causas aptas a gerar absolvições. Algumas delas tornam, por certo, inviável qualquer ação civil ex delicto, enquanto outras, não.

Não produzem coisa julgada no cível, possibilitando a ação de conhecimento para apurar culpa: a) absolvição por não estar provada a existência do fato (art. 386, II, CPP); b) absolvição por não constituir infração penal o fato (art. 386, III, CPP; art. 67, III, CPP); c) absolvição por não existir prova de ter o réu concorrido para a infração penal (art. 386, V, CPP); d) absolvição por insuficiência de provas (art. 386, VII, CPP); e) absolvição por excludentes de culpabilidade e algumas de ilicitude, estas últimas já vistas no tópico anterior (art. 386, VI, CPP); f) decisão de arquivamento de inquérito policial ou peças de informação (art. 67, I, CPP); g) decisão de extinção da punibilidade (art. 67, II, CPP). Em todas essas situações o juiz penal não fechou questão em torno do fato existir ou não, nem afastou, por completo, a autoria em relação a determinada pessoa, assim como não considerou lícita a conduta. Apenas se limitou a dizer que não se provou a existência do fato – o que ainda pode ser feito no cível; disse que não é o fato infração penal – mas pode ser ilícito civil; declarou que não há provas do réu ter concorrido para a infração penal – o que se pode apresentar na esfera cível; disse haver insuficiência de provas para uma condenação, consagrando o princípio do in dubio pro reo – embora essas provas possam ser conseguidas e apresentadas no cível; absolveu por inexistir culpabilidade – o que não significa que o ato é lícito; arquivou inquérito ou peças de informação – podendo ser o fato um ilícito civil; julgou extinta a punibilidade – o que simplesmente afasta a pretensão punitiva do Estado, mas não o direito à indenização da vítima.

Fazem coisa julgada no cível: a) declarar o juiz penal que está provada a inexistência do fato (art. 386, I, CPP); b) considerar o juiz penal que o réu não concorreu para a infração penal (art. 386, IV, CPP). Reabrir-se o debate dessas questões na esfera civil, possibilitando decisões contraditórias, é justamente o que quis a lei evitar (art. 935, CC, 2.a parte).

11. VÍTIMA POBRE E LEGITIMIDADE DE AGIR DO MINISTÉRIO PÚBLICO

Segundo o art. 32, § 1.°, do Código de Processo Penal, considera-se pobre aquele que não pode prover às despesas do processo, sem privar-se dos recursos indispensáveis à sua manutenção ou de sua família. Prova-se a pobreza pela simples apresentação de declaração de próprio punho (art. 4.°, Lei 1.060/50).

A partir disso, sempre no espírito de preservar os direitos dos hipossuficientes, o Estado busca garantir o acesso à Justiça, ainda que seja, nesse caso, na esfera cível, da pessoa pobre, que não pode custear as despesas do processo nem o patrocínio de advogado.

Por isso, seja para ingressar com execução de título judicial, valendo-se de sentença condenatória definitiva, seja para ajuizar ação de conhecimento, buscando o ressarcimento, legitima-se o Ministério Público a fazê-lo (art. 68, CPP).

Pode o interessado, também, valer-se do serviço de assistência judiciária, proporcionado pelo próprio Estado, através de convênios com a Ordem dos Advogados do Brasil. A legitimidade do representante do Ministério Público, no entanto, é sustentável até que a Defensoria Pública seja efetivamente organizada, para a defesa e orientação jurídica dos necessitados, em todos os graus, por todos os Estados brasileiros. É o que já decidiu o Supremo Tribunal Federal: “No contexto da Constituição Federal de 1988, a atribuição dada ao Ministério Público para promover ação civil de reparação de danos ex delicto, quando for pobre o titular da pretensão, foi transferida para a Defensoria Pública; porém, se este órgão ainda não foi implementado, nos moldes do art. 134 da Carta Política e da LC 80/94, inviabilizando, assim, a transferência constitucional de atribuições, o art. 68 do Código de Processo Penal, que legitima o Parquet para promover tal pleito indenizatório, será considerado ainda vigente” (RE 147.776-SP, 1.a T., rel. Sepúlveda Pertence, 19.05.1998, v. u., RT 755/169).

Há entendimento restritivo, sustentando que o Ministério Público não está autorizado a agir nas hipóteses dos arts. 66 e 67 do Código de Processo Penal, porque não foram eles expressamente incluídos na referência feita no art. 68. Essa não é a melhor solução a seguir. A ação civil ex delicto pode ter por base uma sentença condenatória, que torna certa da obrigação de reparar o dano, mas também pode fundar-se em um processo de conhecimento, quando as provas serão integralmente deduzidas no cível, independentemente do resultado ocorrido na esfera criminal, salvo nos casos de absolvição fundada no art. 65 do Código de Processo Penal. Fora disso, os arts. 66 e 67 deixam bem clara a possibilidade de ingresso com ação civil, em decorrência de delito, se os motivos da absolvição, na esfera criminal, não comprometem a obrigação de reparar o dano. Logo, a legitimação do Ministério Público é natural, merecendo ser reconhecida, sem qualquer necessidade, por supérfluo que seria, que o art. 68 fizesse novamente referência aos arts. 66 e 67 – constitutivos de fundamento útil para sustentar o art. 64 e não para excepcioná-lo.

image   PONTO RELEVANTE PARA DEBATE

A eventual revogação do art. 68 do Código de Processo Penal pelo Estatuto da Advocacia

Estipula o art. 1.° da Lei 8.906/94 (Estatuto da Advocacia) que “são atividades privativas de advocacia: I – a postulação a qualquer órgão do Poder Judiciário e aos juizados especiais; II – as atividades de consultoria, assessoria e direção jurídicas (...)”. Em tese, pois, não poderia o promotor agir em nome do ofendido pobre, que buscasse, no cível, indenização causada pelo crime praticado.

Ocorre que a Constituição Federal assegurou ao Ministério Público o exercício de outras atividades, nesse caso de apoio ao hipossuficiente, que fossem compatíveis com suas finalidades (art. 129, IX, CF), ao menos enquanto a Defensoria Pública não é devidamente organizada em todo o Brasil. Busca-se, com isso, compatibilizar o exercício de atividade fundamental para o Estado, que é a assistência judiciária a quem necessita (art. 5.°, LXXIV, CF), com o livre exercício da advocacia, indispensável à administração da justiça (art. 133, CF).

É o que têm garantido os Tribunais e sustentado a doutrina pátria, merecendo transcrição o voto do Min. Sepúlveda Pertence, tratando da legitimação do Ministério Público para o ajuizamento de ação civil ex delicto: “O caso mostra, com efeito, a inflexível estreiteza da alternativa da jurisdição constitucional ortodoxa, com a qual ainda jogamos no Brasil: consideramo-nos presos ao dilema entre a constitucionalidade plena e definitiva da lei ou a declaração de sua inconstitucionalidade com fulminante eficácia ex tunc; ou, ainda, na hipótese de lei ordinária pré-constitucional, entre o reconhecimento da recepção incondicional e a da perda de vigência desde a data da Constituição. Essas alternativas radicais – além dos notórios inconvenientes que geram – fazem abstração da evidência de que a implementação de uma nova ordem constitucional não é um fato instantâneo, mas um processo, no qual a possibilidade da realização da norma da Constituição – ainda quando teoricamente não se cuide de um preceito de eficácia limitada – subordina-se muitas vezes a alterações da realidade fática que a viabilizem. É tipicamente o que sucede com as normas constitucionais que transferem poderes e atribuições de uma instituição preexistente para outra criada pela Constituição, mas cuja implantação real pende não apenas de legislação infraconstitucional, que lhe dê organização normativa, mas também de fatos materiais que lhe possibilitem atuação efetiva. Isso o que se passa com a Defensoria Pública, no âmbito da União e no da maioria das Unidades da Federação” (RE 147.776-SP, 1.a T., rel. Sepúlveda Pertence, 19.05.1998, v. u., RT 755/169).

image   SÍNTESE

Ação civil ex delicto: é a ação proposta no juízo cível para requerer indenização em razão da prática de uma infração penal.

Natureza do processo: trata-se de um processo de execução, pois a sentença condenatória produz um título executivo (art. 91, I, do Código Penal), que pode ser diretamente cobrado na órbita civil, debatendo-se somente o quanto é devido.

Outra possibilidade de processo: pode-se ajuizar, antes mesmo de finda a ação penal, uma ação civil de reparação do dano provocado pelo crime, embora, nessa situação, seja conveniente que o juiz da ação civil suspenda o curso do processo aguardando-se a solução da esfera criminal, evitando-se decisões conflitantes.

Exclusão da responsabilidade civil: quando o juízo penal afirmar a inexistência do fato ou considerar que o réu não foi o autor da infração penal, cessa a possibilidade de ingresso na esfera civil. Por outro lado, em algumas situações de exclusão da antijuridicidade – legítima defesa, exercício regular de direito e estrito cumprimento do dever legal – o mesmo ocorre. Quanto ao estado de necessidade, depende do caso concreto.