MONUMENTOS
Um poema sobre São Sem-Pança

– Esse é o emprego que eu larguei para vir para cá – diz Sem-Pança. – E a vida de que desisti.

Ele dirigia um ônibus turístico.

São Sem-Pança no palco, com os braços cruzados – tão magro

que suas mãos se tocam no meio das costas.

Lá está São Sem-Pança, só uma demão de pele sobre o esqueleto.

Suas clavículas saltam do corpo, grandes como guidões.

Suas costelas aparecem por baixo da camiseta branca, e é o cinto – não a bunda – que mantém a calça jeans no lugar.

No palco, em vez do refletor, o fragmento de um filme:

as cores de casas e calçadas, placas de trânsito e carros estacionados

limpam seu rosto. A máscara do tráfego. Vans e caminhões.

Ele diz:

– Aquele emprego, o do ônibus turístico…

Eram só japoneses, alemães, coreanos, todo mundo com inglês de segunda, agarrando livrinhos

de conversação numa das mãos, sorrindo e assentindo para tudo que ele dizia

no microfone enquanto conduzia o ônibus, dobrando esquinas, descendo ruas, passando por casas de

artistas de cinema ou palcos de assassinatos sanguinolentos, apartamentos onde astros do rock tiveram overdose.

Todos os dias a mesma excursão, o mesmo mantra de homicídios, artistas, acidentes. Lugares

onde tratados de paz foram assinados. Onde presidentes passaram a noite.

Até o dia em que São Sem-Pança para diante de uma casa grande, com cerquinha branca, um desvio

para conferir se o Buick de quatro portas de seus pais está lá, se ainda é lá que os dois moram,

e vê um homem caminhando pelo quintal com o cortador de grama.

Então, ali, com seu microfone, o santo diz à sua carga no ambiente refrigerado:

– Este é São Mel.

E seu pai, forçando a vista para enxergar pelas janelas escurecidas do ônibus.

– O Santo Padroeiro da Vergonha e da Raiva – diz Sem-Pança.

Depois daquele dia, a excursão passou a incluir “O Altar de São Mel e Santa Betty”;

Santa Betty, no caso, a Santa Padroeira da Humilhação Pública.

Estacionado diante do condomínio da irmã, São Sem-Pança

aponta para

um andar alto. Lá em cima, o altar de Santa Wendy.

– A Santa Padroeira do Aborto Terapêutico.

Estacionado na frente do próprio prédio, ele diz aos passageiros do ônibus:

– Este é o altar de São Sem-Pança.

O santo em si, o peito estufado, os lábios de borracha, a camisa larga,

o reflexo no retrovisor ainda menor.

– O Santo Padroeiro da Masturbação.

Enquanto cada assento do ônibus, balançando a cabeça, inclinando o pescoço, se estica para ver

uma coisa divina.