No saguão de veludo azul, alguma coisa cai escada abaixo das sombras do balcão nobre. Degrau a degrau, o barulho fica mais alto até virar retumbante, rolante, redondo-escuro, vindo do segundo andar mal iluminado. É uma bola de boliche, que bate no meio de cada degrau da escada. Que rola em silêncio negro pelo tapete azul do saguão, a bola de boliche da Irmã Justiceira que passa por Cora Reynolds lambendo as patas, depois pelo Sr. Whittier tomando café solúvel na cadeira de rodas, depois por Lady Mendiga e seu marido de diamante, até que a bola bate, negrume, nas portas duplas e desaparece no auditório.
– Packer – diz Lady Mendiga a seu diamante –, tem alguma coisa presa aqui com a gente. – Baixando a voz, quase sussurrando, ela pergunta ao diamante: – É você?
Aquele quadradinho de vidro que só se pode quebrar em caso de incêndio, Miss América já quebrou. A janelinha com moldura de metal pintada de vermelho, um martelinho pendurado ao lado numa corrente, ela quebra o vidro e aperta o botão de todas. Miss América faz isso no saguão. Depois, no passeio de laca vermelha à la restaurante chinês, com um monte de Budas de gesso. Depois, no vestíbulo à la templo maia do porão, com rostos de guerreiros esculpidos em madeira. Depois, na galeria das Mil e Uma Noites, atrás dos camarotes do balcão nobre. Depois, na cabine de projeção encaixada no telhado.
Nada acontece. Não soa alarme algum. Ninguém vem com um machado para derrubar as portas corta-fogo e resgatá-la. Resgatar a todos.
Nada aconteceu, e nada continuou acontecendo.
O Sr. Whittier está sentado em sua cadeira de rodas, próximo a um sofá de veludo azul no saguão, sob as folhas de vidro de um candelabro tão grande quanto uma nuvem cinza cintilante.
O Casamenteiro já chamava os candelabros de “árvores”. Uma fileira deles pendurada no centro de cada um dos salões, galerias e lounges. Ele os chamou de pomares de vidro, que crescem em correntes envoltas em veludo e enraizados no teto.
Cada um vê a própria realidade particular “do lar” nesses cômodos gigantescos.
Conde Calúnia está escrevendo em seu bloquinho. Agente Fuxico, gravando. Condessa da Antevidência, vestindo seu turbante. São Sem-Pança, comendo.
Esticando bem o braço, Diretora Negação joga um rato de borracha, que cai a meio caminho das portas do auditório. Com a outra mão, ela massageia o ombro de seu braço de arremessar enquanto o gato, Cora Reynolds, traz o rato de volta, as patas erguendo um jato de poeira fervilhante do tapete.
Assistindo a eles com um braço cruzado sobre o peito para apoiar os seios e uma mão retorcida para coçar a nuca, a Sra. Clark diz:
– Em Villa Diodati, eles tinham cinco gatos.
São Sem-Pança come crepe Suzette de um saquinho prateado, usando uma colher de plástico.
Lixando as unhas, Lady Mendiga observa cada colherada rosa pingar da embalagem até a boca de São Sem-Pança, e ela diz:
– Isso não tem como ser bom.
E nada mais acontece. Não acontece mais nada.
Isso até Miss América parar no meio do grupo e dizer:
– Isso é ilegal.
O que o Sr. Whittier fez foi sequestro. Ele está mantendo pessoas ali contra a vontade delas, e isso é crime.
– Quanto antes vocês cumprirem o prometido – diz o Sr. Whittier –, mais rápido esses três meses vão passar.
Arremessando o rato falso, Diretora Negação pergunta:
– O que é Villa Diodati?
– É uma casa no Lago Como – conta Lady Mendiga a seu diamante falso.
– Lago Léman – corrige a Sra. Clark.
Em retrospecto, a posição do Sr. Whittier é de que estamos sempre certos.
– Não é questão de certo ou errado – dizia o Sr. Whittier.
De fato, não há errado. Não na nossa mente. Ou na nossa realidade particular.
Você nunca pretende fazer a coisa errada.
Você nunca diz o que acha que é a coisa errada.
Na sua mente, você está sempre certo. Qualquer atitude – o que você faz, diz ou como decide se mostrar ao mundo – é automaticamente certa no momento em que você age.
Com as mãos trêmulas enquanto ergue o copo, o Sr. Whittier diz:
– Mesmo que disséssemos: “Hoje vou tomar café do jeito errado… numa bota suja.” Mesmo isso seria certo, pois escolhemos beber café na bota.
Porque é impossível você fazer algo errado. Você está sempre certo.
Mesmo quando diz: “Sou um idiota, estou tão errado…”, você está certo. Você está certo sobre estar errado. Você está certo mesmo quando é um idiota.
– Não importa quão imbecil seja uma ideia – dizia o Sr. Whittier –, estamos fadados a estar certos porque ela é nossa.
– Lago Léman? – sugere Lady Mendiga, de olhos fechados. Beliscando as têmporas, pressionando-as entre o dedão e o indicador, ela diz: – Villa Diodati é onde Lord Byron estuprou Mary Shelley…
E a Sra. Clark diz:
– Não foi.
Todos nós estamos condenados a estarmos certos. Em relação a tudo que pudermos pensar.
Neste mundo líquido e variante, onde todos estão certos e qualquer ideia é certa no momento em que você a coloca em prática, dizia o Sr. Whittier, a única certeza é o que você promete.
– Três meses, vocês me prometeram – diz o Sr. Whittier por trás do vapor do café.
É aí que acontece uma coisa, mas nada de mais.
No olhar seguinte, você sente suas pregas se apertarem. Seus dedos voam para tapar a boca.
Miss América segura uma faca numa das mãos. Com a outra, ela agarra o nó da gravata do Sr. Whittier, puxando o rosto dele para perto do dela. O café do Sr. Whittier, entornado, derramado, queimando no chão. Suas mãos pairam, tremem, rodopiam pelo ar poeirento.
O saquinho prateado de crepe Suzette instantâneo de São Sem-Pança cai, escorre pelo tapete azul-centáurea, com as cerejas vermelhas pegajosas e o chantilly reconstituído.
E o gato corre para dar uma provadinha.
Com os olhos quase tocando os do Sr. Whittier, Miss América diz:
– Então estou certa se matar você?
A faca faz parte da coleção que Chef Assassin trouxe na maleta de alumínio.
E o Sr. Whittier retribui o olhar, ele e Miss América, tão próximos que os cílios dos dois se tocam ao piscar.
– Mas você ainda estará presa – diz ele, o cabelo grisalho pendendo do crânio. Sua voz engasgada pela gravata.
Miss América aponta a faca para a Sra. Clark e pergunta:
– E ela? Ela tem a chave?
E a Sra. Clark balança a cabeça. Não. Seus olhos estão esbugalhados, mas seu biquinho de bebê continua paralisado a silicone.
Não, a chave está escondida em algum lugar do prédio. Um lugar em que apenas o Sr. Whittier pensaria em olhar.
Ainda assim, mesmo que ela o matasse, estaria certa.
Se Miss América tacar fogo no prédio e torcer para os bombeiros verem a fumaça e a salvarem antes que todos sufoquem… ela estará certa de novo.
Se Miss América enfiar a ponta da faca no globo ocular lácteo de cataratas do Sr. Whittier e arrancá-lo para o gato brincar… ela ainda estará certa.
– Diante disto – diz o Sr. Whittier, com a gravata apertada no punho cerrado dela, o rosto ficando vermelho-escuro, a voz, um sussurro –, vamos começar fazendo o que prometemos.
Três meses. Escreva sua obra-prima. Fim.
A cadeira cromada com rodas bate no chão com um estrondo assim que Miss América o solta nela. A poeira do tapete toma o ar, e as duas rodas da frente da cadeira quicam no tapete, de tão forte que é a queda. As mãos do Sr. Whittier rapidamente envolvem o pescoço para afrouxar a gravata. Ele se abaixa para pegar o copo de café no chão. Seu cabelo grisalho que escondia a careca pende para baixo, permeia as laterais da pele de seu crânio cheia de manchas.
Cora Reynolds continua comendo as cerejas e o chantilly do carpete poeirento ao lado da cadeira de São Sem-Pança.
Miss América diz:
– Ainda não terminou…
Ela aponta a faca para todos no saguão. Com um movimento veloz do braço, uma rápida contração dos músculos, a faca vai parar nas costas de uma poltrona palaciana do outro lado da sala. A lâmina cravada e zunindo no veludo azul, o cabo ainda sacudindo.
Detrás de sua câmera, Agente Fuxico diz:
– Corta.
Cora Reynolds, com sua língua rosa-camurça, ainda lambe-lambe-lambendo o tapete pegajoso.
Conde Calúnia anota alguma coisa no bloquinho.
– Então, Sra. Clark – diz Lady Mendiga –, Villa Diodati?
– Lá eles tinham cinco gatos – afirma o Sr. Whittier.
– Cinco gatos e oito cachorrões – diz a Sra. Clark –, três macacos, uma águia, um corvo e um falcão.
Foi numa casa de verão em 1816, onde um grupo de jovens passou a maior parte dos dias preso por causa da chuva. Alguns eram casados, outros não. Homens e mulheres. Leram histórias de fantasmas uns para os outros, mas os livros que tinham eram terríveis. Depois daquilo, todos combinaram de escrever uma história. Qualquer tipo de história de terror. Para entreter os outros.
– Tipo a Mesa Redonda do hotel Algonquin? – pergunta Lady Mendiga ao diamante nas costas da mão.
Só um grupo de amigos sentados, tentando assustar uns aos outros.
– E o que eles escreveram? – questiona Miss Espirro.
Aquele povinho entediado de classe média tentando matar o tempo. Gente encurralada na casa de veraneio úmida e mofada.
– Nada de mais – diz o Sr. Whittier. – Só a história de Frankenstein.
A Sra. Clark diz:
– E Drácula…
Irmã Justiceira desce a escada. Ao passar pelo saguão, ela olha embaixo das mesas, atrás das cadeiras.
– Está lá – diz o Sr. Whittier, erguendo o dedo trêmulo para indicar as portas duplas do auditório.
Lady Mendiga olha de soslaio para as portas do auditório, onde Miss América e a bola de boliche sumiram.
– Meu finado marido e eu éramos especialistas em tédio – diz Lady Mendiga, e nos faz esperar enquanto dá três, quatro, cinco passos pelo saguão para tirar a faca da poltrona.
Segurando a faca, olhando para a lâmina, sentindo o fio, ela diz:
– Posso contar a vocês o que gente rica e entediada faz pra matar o tempo…