Por favor, entenda.
Ninguém aqui vai defender o que Cora fez.
Talvez há dois anos tenha sido a única vez que aconteceu alguma coisa como essa. Na primavera e no outono, a equipe do condado tem que fazer uma retomada de boca a boca. Ressuscitação cardiopulmonar. Cada grupo precisa se reunir na enfermaria para praticar massagem cardíaca na boneca. Formam duplas, a diretora bombeia o peito, a outra pessoa se ajoelha, segurando o nariz e soprando ar pela boca. A boneca é uma Ressusci Tânia, só um torso, com a cabeça. Sem braço nem perna. Lábios azuis de borracha. Olhos moldados, abertos, fixos. Olhos verdes. Mas quem quer que faça essas bonecas colou cílios compridos demais nela. Colaram uma peruca glamourosa, um cabelo ruivo tão liso que não dá para sentir os dedos passando até que outra pessoa diz:
– Calma lá…
Enquanto se ajoelhava perto da boneca e esticava suas unhas vermelhas no peito, a diretora da agência, a diretora Sedlak, disse que todas aquelas bonecas Ressusci Tânia eram moldadas a partir da máscara de morte de uma garota francesa.
– É verdade – confirmou ela ao grupo.
Esse rosto no chão é o rosto de uma suicida que acharam no rio há mais de um século. Os mesmos lábios azuis. Os mesmos olhos sem vida. Todas as Ressusci Tânia são moldadas com o rosto dessa jovem que se jogou no rio Sena.
Se a menina morreu de amor ou solidão, nunca descobriremos. Mas os detetives usaram gesso para fazer uma máscara do rosto da falecida, para ajudar a descobrir seu nome, e décadas depois um fabricante de brinquedos se tornou dono dessa máscara e a usou para moldar o rosto da primeira Ressusci Tânia.
Apesar do risco de alguém numa escola, fábrica ou pelotão do Exército um dia se abaixar e reconhecer o corpo de sua irmã, mãe, filha, esposa falecida há muitos anos, é exatamente esta a morta que é beijada por milhões. Por muitas gerações, milhões de estranhos já colaram a boca na dela, esses lábios sendo aqueles exatos lábios que se afogaram. Pelo restante da história, em todo o mundo, pessoas tentarão salvar essa mesma falecida.
A mulher que só queria morrer.
A menina que se transformou em objeto.
Ninguém mencionava essa última parte. Mas ninguém precisava.
Então, no ano passado, Cora Reynolds estava num grupo que foi à enfermaria e tirou a Ressusci Tânia da maleta azul de plástico. Eles a abrem em cima do assoalho de linóleo. Passam um algodão com peróxido de hidrogênio na boca. Procedimento padrão de higiene. Mais uma diretriz do condado. A diretora Sedlak se abaixa para apoiar as palmas das mãos no centro do peito de Tânia. Sobre o esterno. Alguém se ajoelha mais perto para apertar o nariz de Tânia. A diretora empurra o peito de plástico. E o cara ajoelhado, com a boca sobre a de borracha de Tânia, ele começa a tossir.
Inclina-se para trás, tossindo, sobre os calcanhares. Depois cospe. Splat, bem no linóleo da enfermaria, ele cospe. O cara da boca limpa a boca com as costas da mão e diz:
– Cacete, isso fede.
As pessoas em volta, entre elas Cora Reynolds, o restante da turma, se aproximam.
Ainda agachado, o cara da boca diz:
– Tem alguma coisa dentro dela. – Ele tapa a boca e o nariz com a mão. O rosto contorcido de lado, longe da boca de borracha, mas ainda observando, ele diz: – Vá lá. Aperte ela de novo. Aperte com força.
A diretora, inclinada e com as palmas das mãos apoiadas no peito de Tânia, as unhas pintadas de vermelho-escuro, ela aperta.
E uma grande bolha é inflada dos lábios de borracha azul de Tânia. Um líquido, um molho de salada, fino e pastoso, uma bolha que continua inflando. Uma pérola cinza e gordurosa. Depois, uma bola de pingue-pongue. De beisebol. Até que estoura. Respingando a sopa branca encardida por tudo quanto é canto. Essa cultura fina, aquosa, que solta uma nuvem de fedor pela sala.
Até aquele dia, qualquer um podia usar a enfermaria. Trancar a porta. Abrir a cama de armar e tirar um cochilo na hora do almoço. Se estiver com dor de cabeça. Ou com cólica. O kit de primeiros socorros, é lá que pegam. Todas as ataduras, aspirina. Não precisa da autorização de ninguém. Tudo que tem lá é a cama de armar, um pequeno armário com uma pia de metal para lavar as mãos, um interruptor na parede. A maleta azul de plástico destrancada onde se guarda a Ressusci Tânia.
O grupo, eles viram a boneca de lado, e do canto da boca de borracha macia dela, primeiro sai um ping, ping, ping, depois um fluxo fininho de sopa de aveia. Parte daquela meleca aguada lava sua bochecha de borracha rosa. Parte se infiltra entre os lábios e os dentes de plástico. A maior parte forma uma poça no linóleo.
A boneca, agora uma pessoa francesa. Uma menina que se afogou. Uma vítima de si mesma.
Todo mundo ali parado, respirando por trás da mão na boca ou de um lenço. Piscando por causa do cheiro, que faz os olhos lacrimejarem. As gargantas sobem e descem por baixo da pele do pescoço conforme engolem repetidamente mais ar para que os ovos mexidos, o bacon, o café, a aveia com leite, o iogurte de pêssego, os muffins e o queijo cottage não subam, para que fiquem bem no fundo da barriga.
O cara da boca pega a garrafinha de peróxido de hidrogênio e inclina a cabeça para trás. Virando um gole duplo na boca, ele infla as bochechas. Posiciona a cabeça na direção do teto, de olhos fechados, a boca aberta, gargarejando com peróxido. Então coloca a cabeça para a frente de forma que possa cuspir tudo na piazinha de metal.
A sala, todos respirando aquele cheiro de lavanderia, do peróxido, misturado ao odor de banheiro dos pulmões de Ressusci Tânia. A diretora, ela diz para alguém pegar um kit de investigação de crime sexual. Os cotonetes, as lâminas e as luvas.
Cora Reynolds, ela estava naquele grupo, tão perto que deixou um rastro do muco pegajoso até sua mesa. Depois desse dia, o Operacional do Condado pôs uma tranca na porta e entregou a chave a Cora. Desde então, se a pessoa sente cólica, põe o nome numa lista, com dia e horário, para pegar a chave. Se alguém tem dor de cabeça, precisa ir perguntar a Cora se pode pegar duas aspirinas.
A equipe no laboratório estadual, quando recebe os cotonetes e faz as lâminas e as culturas, eles perguntam: Isso era uma piada?
Sim, diz a equipe do laboratório, a gosma era esperma. Uma parte já tinha seis meses. Desde a última aula de boca a boca. Mas, olhe, tinha muito. Além disso, ao verificar o DNA, os indicadores genéticos indicaram que era coisa de doze, quem sabe quinze homens.
Os caras do condado, do lado de cá, disseram: É, piada sem graça, foi mal. Esqueçam.
É isto o que o ser humano faz: transforma objetos em pessoas, pessoas em objetos.
Ninguém está dizendo que foi a equipe do condado que fez merda. Uma merda bem grande.
A boneca da Ressusci Tânia, não é à toa que Cora a levou para casa. Deu um jeito de limpar seus pulmões. Lavou e arrumou seu cabelo ruivo de glamourosa. Cora comprou um vestido novo para o torso sem braço, sem perna. Um colar de pérolas falsas em volta do pescoço. Aquela coisinha tão indefesa, Cora não podia jogar no lixo. Passou batom nos seus lábios azuis. Rímel nos cílios compridos. Blush. Perfume… muito perfume, para disfarçar o cheiro. Belos brincos de pressão. Ninguém ia ficar surpreso caso descobrisse que ela passou toda noite sentada no sofá do apartamento, vendo televisão e batendo papo.
Só Cora e Tânia. Conversando em francês.
Mesmo assim, ninguém chama Cora Reynolds de pirada. Talvez só de pancada.
A polícia do condado diz que deveriam ter ensacado a boneca com plástico preto e a jogado no alto da prateleira da sala de provas. Esquecê-la ali. Tânia, não Cora. Abandonada. Fermentando. Ignorada junto aos sacos de erva e de coca, todos numerados. Os frascos de crack e os balões de heroína. Todas as armas e facas esperando para aparecer em algum tribunal. Todos os saquinhos e balões apreendidos que vão encolhendo, diminuindo cada vez mais, até sobrar apenas o suficiente para uma condenação. Todos esses objetos… usados.
Mas não, eles burlaram as regras. Deixaram Cora levar a boneca velha para casa.
Ninguém queria que ela envelhecesse só.
Cora. Ela era o tipo de pessoa que não podia comprar só um bichinho de pelúcia. Em sua descrição de funções estava comprar um bicho de pelúcia para cada criança que fosse depor. Cada criança que ficasse sob a custódia do tribunal. Qualquer criança recolhida por abandono e deixada num lar adotivo. Na loja de brinquedos, Cora pegava um macaquinho na prateleira cheia de bichos… mas aí a macaquinha ficava solitária no carrinho de compras. Então ela escolhia uma girafa felpuda para lhe fazer companhia. Depois, um elefante. Um hipopótamo. Uma coruja. Em determinado momento, havia mais bichos no carrinho de compras do que na prateleira. E os bichos que ficavam para trás eram os que tinham um olho faltando, uma orelha raspada, uma costura rasgada. O enchimento saindo. Eram os bichos que ninguém queria.
Ninguém sentiu como o coração de Cora desabou de um penhasco naquele instante. Aquela longa queda do alto da maior montanha-russa do mundo, aquela sensação que deixou Cora só pele. Só um tubo de pele com um buraco apertado em cada ponta. Um objeto.
Aqueles tigrinhos manchados de areia soltando fios. As renas de pelúcia amassadas. Enchiam o apartamento dela. Aqueles pandas rasgados, as corujinhas manchadas e a Ressusci Tânia. Uma sala de provas, de outro tipo.
É isto o que o ser humano faz…
Mas, pobrezinha, pobre Cora. Agora ela está tentando cortar a língua das pessoas. Infectá-las com parasitas. Obstrução da justiça. Está roubando propriedade pública. Ninguém fala sobre apropriação indevida de material de escritório: canetas, grampeador, papel de impressão.
É Cora quem faz o pedido do material de escritório. Ela pega a ficha com os horários de todo mundo na sexta. Ela entrega os cheques na terça. Ela passa todos os relatórios de despesas para a Contabilidade, para reembolso. Atende o telefone: “Superintendência de Proteção do Menor.” Leva bolo e faz o cartão rodar pelo departamento quando é aniversário de alguém. Esse é o trabalho dela.
Ninguém tinha problemas com Cora Reynolds antes do garotinho e da garotinha que chegaram da Rússia. Sério, o problema é que Cora nunca vê uma criancinha, uma menininha de sardas e tranças, a não ser que alguém a tenha fodido.
Todo garotinho diabrete, todo marotinho de macacão com um estilingue no bolso de trás, o único encontro que Cora vai ter com ele é porque ele foi forçado a chupar um pau. Todo sorriso de criança com um dente faltando, aqui é uma máscara. Todo joelho manchado de grama, uma pista. Cada machucado, um indicador. Cada piscadela, gritinho ou risadinha, há um espaço para marcar no formulário de entrada da vítima. É o serviço de Cora manter o registro desses formulários de entrevista. Manter o registro de cada criança, cada arquivo, qualquer investigação em andamento. Até acontecer aquilo, Cora Reynolds era a melhor assistente administrativa de todos.
Mesmo assim, o que acontece ali é só controle de danos. Não dá para desfoder uma criança. Assim que você meteu numa, não tem como tirar o gênio da garrafa. A criança provavelmente está ferrada de vez.
Não, a maioria das crianças surge ali em silêncio. Com estrias. Já na meia-idade. Sem sorriso.
As crianças chegam ali e o primeiro passo é a entrevista de avaliação com uma boneca anatomicamente detalhada. Que é diferente de uma boneca anatomicamente correta, mas muita gente confunde. Cora confundiu. Confundiu as duas.
A típica boneca anatomicamente detalhada é feita de tecido, costurada como um bicho de pelúcia. Tem fios de lã em vez de cabelo. A grande diferença entre ela e uma boneca de pano está nos detalhes: pênis e bolas de pelúcia. Ou uma vagina feita de panos de renda. Um cordão bem amarrado nas costas para deixar o ânus franzido. Dois botões costurados no peito para os mamilos. Essas bonecas são as coisas que as crianças que dão entrada podem usar para teatralizar. Para demonstrar o que Mamãe, Papai ou o namorado novo da Mamãe fez.
As crianças enfiam os dedos nas bonecas. Puxam as bonecas pelos fios de cabelo. Seguram as bonecas pelo pescoço e as sacodem até as cabeças de pelúcia caírem. Elas batem, lambem, mordem e chupam as bonecas, e é Cora quem tem que costurar os mamilos de volta. Cora é quem tem que achar as duas bolinhas de gude quando puxam o escrotinho de feltro com muita força.
Tudo que foi feito com as crianças é feito com aqueles bonecos.
Ninguém vai parar num emprego como aquele por acaso. Os fios se soltam porque muitas crianças abusadas abusam dos bonecos. Muitos garotinhos que levaram dedadas já chuparam o mesmo penizinho de feltro. Muitas garotinhas já forçaram um, dois, três dedos naquela mesma vagina forrada de cetim. Rasgam em cima e embaixo. Pequenas hérnias de agressão de algodão saindo. Sob as roupas, as bonecas estão sujas, manchadas. Grudentas, fedendo. O tecido está cheio de bolinhas e tomado de cicatrizes onde faltam os fios.
O garotinho de pano e a garotinha de pano que o mundo inteiro pode violentar.
E, claro, Cora fazia o que podia para manter os bonecos limpos. Costurava até ficarem inteiros. Mas um dia ela entrou na internet para encontrar mais um par. Um novo casalzinho.
Algum lugar onde mulheres que tinham a carreira de costurar vaginas minúsculas como bolsinhos e escrotos de saquinho de moeda. Essas crianças, as mulheres usando vestidos de calicô florais e macacões. Só que, dessa vez, Cora queria uma coisa durável. Ela entrou na internet. Pediu um novo par, de um fabricante que ela nunca tinha ouvido falar. Dessa vez, ela confundiu anatomicamente detalhado com anatomicamente correto.
Foi o que ela pediu: bonecos e bonecas anatomicamente corretos. O menor preço possível. Duráveis. Fáceis de limpar.
Um site de busca lhe sugeriu duas bonecas. Produzidas na antiga União Soviética. Com braços e pernas flexíveis. Anatomicamente corretas. Como custavam menos, e essa era a regra do condado para aquisições, ela fechou o pedido.
Nunca lhe perguntaram por que ela encomendou esses bonecos. Quando a caixa chegou, de papelão marrom e tão grande quanto um arquivo de quatro gavetas, quando o entregador apareceu trazendo num carrinho e deixou ao lado da mesa dela, quando ele a fez assinar na prancheta, foi aí que Cora imaginou que podia ter cometido um erro.
No instante em que abriu a caixa, quando viram o que havia lá dentro, era tarde demais.
Foi Cora e um detetive, puxando os grampos de metal e depois escavando as camadas de plástico bolha, escavando até encontrarem um pé. O pé rosado de uma criança, cinco dedinhos perfeitos saindo das bolas de isopor e plástico bolha.
O detetive mexeu um dos dedinhos. Olhou para Cora.
– Eram os mais baratos – disse Cora. Acrescentou: – Não há muita opção. O pé era de borracha rosa, arrematado com unhas duras e claras. A pele lisa, sem uma sarda, verruga ou veia. O detetive agarrou o tornozelo e o puxou até revelar um joelho liso e rosado. Depois, uma coxa rosada. E então uma chuva de amendoizinhos de isopor. Plástico bolha estourando e caindo. E uma garotinha nua rosada pendendo do punho do detetive, perto do teto. O cabelo loiro caía em cachos, roçando no chão. Os braços nus pendendo das laterais da cabeça. A boca escancarada, uma arfada silenciosa, revelando dentinhos brancos como pérolas, e o céu da boca liso e cor-de-rosa. Uma garotinha da idade que caça ovos de Páscoa, faz Primeira Comunhão e se senta no colo do Papai Noel.
Com um tornozelo na mão do detetive, a outra perna da menina envergou, dobrada no joelho. Entre as pernas, lá, esticada, não só anatomicamente correta, mas… perfeita, a vagina rosada da garotinha. Os lábios num tom mais escuro de rosa, curvados para dentro.
Ainda na caixa, olhando para ela, olhando para todos, havia um garotinho nu.
Um catálogo impresso caiu no chão.
Então os braços de Cora já estavam em volta da menina, abraçando sua maciez de travesseiro, procurando um papel de embrulho para enrolar aquele corpinho.
O detetive sorriu, balançou a cabeça, semicerrou os olhos e disse:
– Belo serviço de aquisição, Cora.
Ela abraçou a menina, com uma das mãos sobre as nádegas rosadas. A outra fechada para apertar a cabeça loira no peito de Cora, e ela disse:
– É um engano.
O catálogo dizia que os bonecos eram feitos de silicone moldado, do tipo que se usa em implantes de seios. Podiam ficar embaixo de um lençol elétrico e conservariam o calor para horas de prazer. A pele recobria um esqueleto de fibra de vidro com juntas de aço. O cabelo era inserido fio por fio, plantado na pele do escalpo. Eles não tinham pelos pubianos. O boneco masculino tinha um prepúcio opcional, que dava para puxar da pele do pênis. A boneca feminina tinha um hímen de plástico removível que dava para pedir separado. Os dois bonecos, dizia o catálogo, tinham garganta e reto fundos e firmes, para uma vigorosa inserção oral ou anal.
O silicone tinha memória e voltaria à forma original, independentemente do que a pessoa fizesse. Os mamilos podiam ser puxados até cinco vezes a extensão original sem rasgar. Os grandes lábios, o escroto e os retos podiam ser esticados para adequar-se a praticamente todos os desejos. Os bonecos, dizia o catálogo, suportavam anos de gozo vigoroso e violento.
Para lavar, bastava usar água e sabão.
Deixar os bonecos à luz do sol direta poderia esmaecer os olhos e os lábios, dizia o catálogo em francês, espanhol, inglês, italiano e o que parecia chinês.
Era garantido que o silicone não tinha gosto nem cheiro.
No almoço, Cora saiu para comprar um vestidinho e um par de camisa e calça. Quando voltou para sua mesa, a caixa estava vazia. Os amendoizinhos de isopor e o papel bolha estouravam a cada passo. Os bonecos haviam sumido.
Na enfermaria, ela perguntou ao telefonista se ele vira alguma coisa. O rapaz deu de ombros. No refeitório, um detetive disse que talvez alguém houvesse pego para um caso. Ele deu de ombros e disse:
– É pra isso que servem.
Lá fora, no corredor, ela perguntou a outro detetive se ele tinha visto.
Ela perguntou: Onde estão eles, os bonecos de criança?
Os dentes dela estavam cerrados. O espaço entre os olhos doía a partir das sobrancelhas amassadas no meio. Suas orelhas estavam quentes. Ela sentia um calor incandescente, um derretimento.
Encontrou os bonecos na sala da diretora. Sentados no sofá. Sorrindo e nus. Com sardas no rosto, sem nenhuma vergonha.
A diretora Sedlak estava puxando o mamilo do garoto. Com os dedos, o polegar e o indicador, só as unhas vermelho-escuras, a diretora torcia e puxava o mamilo rosado. Com a outra mão, ela passava os dedos pelas pernas da menina, dizendo:
– Cacete, parece de verdade.
Cora pediu desculpas para a diretora. Ela se abaixou para afastar de leve o cabelo da testa do garoto e disse que não fazia ideia. Cruzou os braços da menina sobre os mamilos rosados. Depois, cruzou as pernas de plástico dela na altura do joelho. Deixou as mãos do menino abertas sobre o colo. Os dois bonecos simplesmente ficaram ali parados, sorrindo. Os dois tinham olhos de vidro azuis, cabelo loiro. Dentes brilhantes de porcelana.
– Desculpa pelo quê? – perguntou a diretora.
Por desperdiçar a verba do condado, disse Cora. Por comprar uma coisa tão cara sem ver. Ela achou que tivesse fechado um bom negócio. Agora o condado teria que ficar com as velhas bonecas de pano por mais um ano. O condado não tinha o que fazer, e aqueles bonecos teriam que ser destruídos.
E a diretora Sedlak disse:
– Não seja boba. – Ela passou as unhas pelo cabelo loiro da menina, dizendo: – Eu não vejo problema. – Dizendo: – Podemos usar esses aqui.
Mas os bonecos, disse Cora, são reais demais.
E a diretora disse:
– São de borracha.
Silicone, corrigiu Cora.
E a diretora disse:
– Se ajudar, pense que cada um desses é uma camisinha de trinta quilos…
Naquela tarde, enquanto Cora ainda vestia as roupas novas no menino e na menina, detetives passaram pela sua mesa, pedindo para dar uma olhada. Para entrevistas de admissão. Para investigações. Pedindo para reservá-las para uma avaliação secreta em outro local. Para ficar com elas e usar logo cedo na manhã seguinte. Para o fim de semana. A menina, de preferência, mas, se já estivesse ocupada, então podia ser o menino. No fim daquele primeiro dia, os dois bonecos tinham agenda cheia até o mês seguinte.
Se alguém quisesse um boneco no mesmo instante, ela oferecia os velhos, de pano.
Na maioria das vezes, o detetive dizia que podia esperar.
Era uma enxurrada de casos novos, mas ninguém entregava a Cora uma pasta de caso novo.
Durante quase todo aquele mês, Cora só viu o menino e a menina por instantes, só o tempo de entregar ao detetive seguinte. Depois a outro. E a outro. E nunca ficava claro quem tinha feito o quê, mas a garotinha chegava e ia embora, um dia com as orelhas furadas, depois com o umbigo furado, então de batom, fedendo a perfume. Em determinado momento, o menino apareceu tatuado. Uma corrente de espinhos em volta do músculo da panturrilha. Em outro instante, com os mamilos furados por aneizinhos de prata. Depois, o pênis. Em dado momento, seu cabelo loiro começou a ficar com um cheiro azedo.
Cheirava a calêndula.
Como as sacolas de maconha no depósito de provas. Aquela sala cheia de armas e facas. Os sacos de maconha e cocaína que sempre pesavam um pouco menos do que deveriam. O depósito de provas era sempre a parada seguinte depois que um detetive pegava um dos bonecos. A menina embaixo do braço, ele remexendo um saquinho de prova. Enfiando uma coisa no bolso.
Na sala da diretora, Cora mostrou os recibos de gastos que os detetives apresentavam para reembolso. Nota fiscal de um quarto de hotel, na mesma noite em que um detetive levara a menina para casa, para usar numa entrevista cedo na manhã seguinte. O quarto de hotel era para uma emboscada policial, alegara o detetive. Outro, na noite seguinte, a menina de novo, um quarto de hotel, uma refeição no quarto. Pedido de um filme pornô na TV. Outra emboscada, dissera ele.
A diretora Sedlak ficou olhando para ela. Cora ali parada, inclinada sobre a mesa de madeira da diretora, tremendo tanto que as notinhas se sacudiam em sua mão.
A diretora só olhou para ela e perguntou:
– O que você quer dizer com isso?
Era óbvio, disse Cora.
E, sentada atrás de sua mesa de madeira, a diretora apenas riu.
Ela disse:
– Considere que é olho por olho.
– Todas essas mulheres – disse a diretora – fazendo música de protesto contra a Hustler, dizendo que a pornografia torna a mulher um objeto… Olhe – disse ela –, você acha que consolo é o quê? Que procurar esperma em alguma clínica é o quê?
Alguns homens só querem foto de mulher pelada. Mas algumas mulheres só querem o pau. Ou o esperma. Ou o dinheiro do cara.
Os dois sexos têm o mesmo problema com intimidade.
– Pare de criar caso com esses malditos bonecos de borracha – disse a diretora Sedlak para Cora. – Se estiver com inveja, saia e compre um vibrador dos bons para você.
Mais uma vez, é isto o que o ser humano faz…
Ninguém via aonde aquilo estava indo.
No mesmo dia, Cora foi almoçar e comprou uma Supercola.
E na vez seguinte que os bonecos voltaram para ela, antes de entregar para outro homem, Cora passou Supercola na vagina da menina. Dentro das bocas dos dois bonecos, colando a língua no céu da boca. Para vedar os lábios. Colocou cola dentro dos dois, e atrás, para soldar as bundas. Para salvá-los.
Ainda assim, no dia seguinte, um detetive veio perguntar: Cora, por acaso você teria uma navalha? Um estilete? Um canivete?
E quando ela perguntou: Por quê? Para quê você precisa?
– Nada – respondeu ele. – Esquece. Acho no depósito de provas.
E, no dia seguinte, a menina e o menino estavam rasgados, ainda macios, mas cobertos de cicatrizes. Recortados. Cavados. Ainda com cheiro de cola, mas cada vez mais com o odor da gosma igual à da Ressusci Tânia que estava em sua casa, que já deixava manchas no sofá de Cora.
Aquelas manchas, o gato de Cora passava horas cheirando. Não lambia, mas cheirava como se fosse Supercola. Ou cocaína do depósito de provas.
Então Cora vai almoçar e compra uma lâmina de barbear. Duas lâminas. Três lâminas. Cinco.
Na vez seguinte que a menina volta para sua mesa, Cora a leva para o banheiro e a coloca sentada na beirada da pia. Com um lenço, limpa o blush das suas bochechas rosadas. Cora lava e penteia o cabelo loiro da menina. Com o detetive seguinte já batendo na porta trancada do banheiro, Cora diz à menina:
– Desculpe. Desculpe. Desculpe… – Ela diz: – Você vai ficar bem.
E Cora enfia uma lâmina de barbear ali, no fundo da vagina de silicone. No buraco que um homem abriu com faca. Inclinando a cabeça da menina para trás, Cora enfia outra lâmina bem fundo na garganta de silicone. A terceira lâmina, ela enfia perto da entrada da bunda talhada e retalhada da garota.
Quando o menino volta à mesa dela, quando é largado ali, jogado de cabeça para baixo sobre o braço da cadeira, Cora o leva para o banheiro junto das duas últimas lâminas.
Olho por olho.
No dia seguinte, chega um detetive, arrastando a menina pelo cabelo. Ele a larga no chão ao lado da mesa de Cora. Tirando um bloquinho e uma caneta do bolso interno do casaco, ele escreve: “Quem levou ela ontem?”
E, erguendo a menina do chão, alisando seu cabelo, Cora lhe diz um nome. Um nome qualquer. Outro detetive.
Seus olhos se estreitam, ele balança a cabeça, o homem segurando o papel e a caneta, e ele diz:
– Efe fifo ta pufa!
E dá para ver que as duas metades da língua dele estão atadas com um fio preto.
O detetive que traz o garotinho está mancando.
As cinco lâminas sumiram.
É depois disso que Cora tem que falar com alguém no posto de saúde do condado.
Ninguém sabe como ela conseguiu aquela amostra de risco biológico do laboratório.
Depois disso, todos os homens no departamento começam a apertar a pele das bolas por cima da calça. Erguendo um cotovelo como um macaco, para coçar o pelo debaixo do braço. Nas mentes deles, não fizeram sexo com ninguém. Não havia como pegarem chato.
Deve ser por essa época que a esposa de um detetive volta do centro da cidade. Encontrando os pontinhos de sangue, os que surgem por causa do chato. Aquela borrifada de pimenta que deu para encontrar na cuequinha branca ou por dentro da camiseta, em qualquer ponto que as roupas encostarem no pelo do corpo. Manchinhas de sangue, sangue, sangue. Talvez a esposa tenha encontrado no short do marido. Talvez tenha encontrado por conta própria. É gente que fez faculdade, suburbana, de shopping, que não tem experiência com chato. Então toda a coceira começa a fazer sentido.
E agora a esposa está fula, muito fula da vida.
E não tem como uma esposa saber que essa é a versão boneca de borracha de pegar chato sentando em privada. Sem dúvida foi a história que o marido lhe contou. Mas isso é tudo que Cora conseguiu descobrir no posto de saúde. Não tem como espiroquetas ficarem vivas em silicone. Não há como passar hepatite se não houver ferimento na pele. Sangue. Saliva. Não, os bonecos são reais, mas não tão reais assim.
Se alguma esposa não perceber, na próxima semana ele vai passar herpes para ela e os filhos. Gonorreia. Clamídia. Aids. Então ela fica em cima de Cora e pergunta:
– Com quem meu marido tá trepando na hora do almoço? Só de olhar para Cora, com seu cabelo de laquê, as pérolas, o nylon até o joelho e o terninho, nenhuma mulher poderia colocar a culpa naquilo. Cora, com seus lenços velhos enfiados na manga do casaquinho de lã. Cora, com um pratinho de lacinhos na mesa. Os cartuns da Family Circle grudados em seu quadrinho de cortiça.
Ainda assim, ninguém diz que Cora Reynolds não é atraente.
Então a esposa vê a diretora Sedlak com as unhas vermelho-escuras.
Ninguém se surpreendeu quando Cora foi chamada para um tête-à-tête.
Ninguém diria a Cora Reynolds que ela estava em fim de carreira.
A diretora, ela coloca Cora sentada do outro lado da grande mesa de madeira. A sala dela, com a janela bem alta. A diretora sentada, delineada pela luz do sol e pela vista dos carros no estacionamento. Com os dedos de uma das mãos, ela faz sinal para Cora se aproximar.
– Foi bem difícil – diz a diretora – decidir se toda a minha equipe tinha ficado doida ou se você está… exagerando.
Ninguém sentiu como, naquele instante, o coração de Cora despencou de um penhasco. Ela permaneceu sentada, paralisada. É isto o que o ser humano faz: nos transformamos em objetos. Transformamos objetos em nós.
Essas milhões de pessoas, pelo mundo todo, ainda tentando salvar Ressusci Tânia. Talvez devessem cuidar da própria vida. Talvez seja tarde demais.
São as crianças, diz a diretora, que rasgam os bonecos. Sempre foi. Crianças violentadas violentam tudo que podem. Cada vítima vai achar uma vítima. É um ciclo. Ela diz: – Acho que você devia tirar uma licença.
Se ajudar, pense que Cora Reynolds é uma camisinha de cinquenta quilos…
Ninguém disse essa última. Mas ninguém precisa.
Ninguém diz para ela ir para casa e se preparar para o pior.
Para manter o emprego, Cora vai ter que devolver a Ressusci Tânia que já informaram que ela levou. Vai ter que entregar os bichos de pelúcia que comprou com a verba do condado. Vai ter que abrir mão das chaves da enfermaria. Imediatamente. E deixar a sala e os bonecos anatomicamente corretos disponíveis para toda a equipe. De quem chegar primeiro. Imediatamente.
O que Cora sentiu foi como chegar ao primeiro sinal vermelho depois de dirigir por um milhão de bilhões de quilômetros, super-rápido, sem cinto de segurança. Resignação misturada a alívio e cansaço. Cora, apenas um tubo de pele com um buraco em cada ponta. Era uma sensação horrível, mas que lhe deu um plano.
No dia seguinte, assim que chega ao trabalho, ninguém a vê se esgueirar até o depósito de provas. Lá havia facas que cheiravam a sangue e Supercola, para qualquer um que quisesse pegar.
Já havia uma fila se formando atrás da mesa de Cora. Todos esperando que o último detetive trouxesse o garoto ou a garota. Qualquer um. Os dois pareciam iguais, com a cabeça de silicone para baixo.
Cora Reynolds: ninguém a faz de idiota. Ninguém mexe com ela.
Um detetive aparece com o garoto pendurado no braço, a menina pendurada no outro. O homem larga os dois na mesa e a multidão se inclina para a frente, agarrando as perninhas de silicone cor-de-rosa.
Ninguém sabe quem são os loucos de verdade.
E Cora, ela está segurando uma arma, a ficha de evidência ainda pendurada por um barbante. O número do caso anotado ali. Ela aponta a arma para os dois bonecos.
– Peguem eles – diz ela. – E venham comigo.
O garotinho está usando só uma cueca branca, escura de graxa. A menina, uma camisola de cetim branca, dura de manchas. O detetive pega os dois, o peso de duas crianças, só com um braço, e os abraça. Com os piercings nos mamilos, as tatuagens e o chato. Com o fedor, a erva e a mesma coisa que pinga de Ressusci Tânia.
Fazendo sinal com a arma, Cora conduz o detetive até a porta da agência.
Os homens a perseguindo, formando um círculo ao seu redor, Cora manda o detetive andar de costas pelo corredor, arrastando a menina e o menino, passando pela porta da sala da diretora, pela enfermaria. Até a entrada. Depois, o estacionamento. Lá, os detetives esperam ela abrir o carro.
Com o menino e a menina sentados no banco de trás, Cora pisa no acelerador e joga cascalho nos homens. Antes de passar pelo portão na cerca de correntes, já dá para ouvir as sirenes vindo.
Ninguém sabia que Cora Reynolds estaria tão preparada. Ressusci Tânia já estava no carro, no banco do carona, com um lenço amarrado no cabelo ruivo, os óculos escuros no rosto de borracha. Um cigarro pendendo dos lábios de um tom vermelho. A garota francesa que voltou dos mortos. Resgatada e com cinto de segurança para manter o torso ereto.
Essa pessoa transformada em objeto, agora retransformada em pessoa.
Os bichos de pelúcia aleijados, os tigres maltrapilhos e os ursos e pinguins órfãos, todos enfileirados na janela de trás do carro. O gato entre eles, dormindo, sob o sol. Todos eles acenando adeus.
Cora chega à rodovia, os pneus de trás derrapando, já no dobro da velocidade máxima. Seu sedã de quatro portas marrom puxa uma fila de viaturas, luzes azuis e vermelhas girando. Helicópteros. Detetives furiosos nos carros sem placas do condado. Equipes de TV, cada uma num furgão branco com um número grande pintado na lateral.
Já não há como Cora não vencer.
Ela está com a menina. Ela está com o menino. Ela está com a arma.
Mesmo que eles fiquem sem gasolina, ninguém vai foder os filhos de Cora.
Nem se os patrulheiros atirarem nos pneus. Mesmo assim, ela vai atirar nos corpinhos de silicone. Cora vai estourar seus rostos. Mamilos e narizes. Ela não vai deixar nenhum local em que o homem enfiaria seu pau. Vai fazer o mesmo com Ressusci Tânia.
E vai dar um tiro em si mesma. Para salvá-los.
Por favor, entenda. Ninguém está dizendo que o que Cora Reynolds fez foi certo.
Ninguém nem sequer está dizendo que Cora Reynolds era sã. Mas ainda assim ela venceu.
É isto o que o ser humano faz: transforma objetos em pessoas, pessoas em objetos. Vai e volta. Olho por olho.
É isto o que a polícia vai encontrar quando chegar muito perto: as crianças mutiladas. Todas mortas. Os bichos ensopados de sangue. Todos mortos, juntos.
Mas, até aquele instante, Cora tem um tanque cheio de gasolina. Uma sacola cheia de cocaína do depósito de provas, para se manter acordada. Uma sacola de sanduíches. Algumas garrafas de água e o gato, ronronando enquanto dorme.
Não tem nada além de algumas horas de autoestrada entre ela e o Canadá.
Mas, acima de tudo, Cora Reynolds tem sua família.