– Mesmo que Deus não nos perdoe – diz Baronesa Congelada – ainda podemos perdoá-Lo.
Devíamos mostrar que somos superiores a Deus.
Baronesa no palco, ela diz à maioria: “Doença na gengiva”,
quando olham demais para o que sobrou
de seu rosto.
Os lábios são apenas a beirada esfarrapada da pele,
untada de batom vermelho.
Os dentes, lá dentro:
o fantasma amarelo de cada xícara de café
e cada cigarro na meia-idade.
No palco, em vez do refletor, o fragmento de um filme:
A cor variante, desbotada, de flocos de neve.
Não há duas sombras azuis do mesmo tamanho ou formato.
O restante dela está sob penas de ganso, estofado, com isolamento,
o cabelo enfiado dentro de um gorro de lã,
mas nunca mais
quente o bastante.
De pé no meio do palco, Baronesa Congelada diz:
– Devíamos perdoar Deus…
Por nos fazer baixos demais. Gordos. Pobres.
Devíamos perdoar Deus por nossa calvície.
Pela nossa fibrose cística. Pela nossa leucemia precoce.
Devíamos perdoar a indiferença de Deus, por Ele nos deixar para trás:
Nós, o projetinho de Deus para a Feira de Ciências, esquecido e juntando mofo.
O peixinho dourado de Deus, ignorado até sermos forçados a comer a própria merda no fundo do aquário.
Com as mãos enluvadas, Baronesa aponta para o próprio rosto, dizendo:
– Pessoas…
Supõem que ela já foi exuberante de tão linda.
Porque agora ela parece tão… mal.
As pessoas, elas precisam de um senso de justiça. Um ato de equilíbrio.
Supõem que câncer é culpa de si mesmas, algo que mereceram.
Um desastre que elas mesmas provocaram.
Então ela lhes diz:
– Fio dental. Pelo amor de Deus, passem fio dental todas as noites antes de dormir.
E, toda noite, Baronesa perdoa as outras pessoas.
Perdoa a si mesma.
E ela perdoa Deus por esses desastres que parecem acontecer por acaso.