CASSANDRA
Outro conto da Sra. Clark

Se existe um macete para lidar com um serviço que você odeia… a Sra. Clark diz que é: encontrar um serviço que você odeie ainda mais.

Depois que você encontrar uma tarefa maior para odiar, as pequenas atividades vão ser uma tranquilidade. Outro motivo para ter um diabo na mão. Torna todos os diabretes mais… suportáveis. Outra extensão da Sra. Clark às teorias do Sr. Whittier.

Amamos drama. Amamos conflito. Precisamos de um diabo ou criaremos um.

Nada disso é ruim. Os seres humanos simplesmente funcionam assim. Peixes têm que nadar, passarinhos têm que voar.

Depois que a filha sumiu pela segunda vez, a Sra. Clark enfiou um cotonete numa lata de óleo mineral e vedou o reboco entre cada azulejo do banheiro. Isso levou quase o fim de semana inteiro.

Ela tirou o pó de cada persiana com um pano.

Todos esses servicinhos entediantes foram toleráveis enquanto esperava receber a ligação. Os detetives da polícia iam ligar para dizer que acharam os restos. Ou pior, que acharam Cassandra viva.

A menina-robô que podia passar o dia sentada, pintando os pássaros azuis que cantavam em sua janela. Ou assistindo ao maldito peixinho dourado nadando e nadando no aquário.

Aquele… ser estranho, sem dedos no pé nem nas mãos.

O que a Sra. Clark não sabia era que a polícia havia encontrado Cassandra. Um Lobinho Escoteiro saiu da mata, mudo. Silente em seu segredo, a descoberta que fizera. Explorando a mata, seguindo um pequeno córrego até um cânion, escalando rochas atrás das quais a água formava uma represa antes de derrubar e escavar uma piscina ali, este Lobinho Escoteiro estava atrás de um buraco que fosse grande o bastante para ter trutas. Musgo verde se apinhava nas rochas, vazando em volta delas, e árvores tinham galhos que seguravam umas às outras. Naquela penumbra, lá estava Cassandra Clark estirada de lado, as mãos dobradas sob a lateral do rosto pálido e magro, como se estivesse dormindo. Cassandra, nua numa cama de musgo grosso, macio, e debaixo dela as folhas de um espinheiro branco pendiam numa cortina por toda a volta.

O Escoteiro conta a um adulto, que chama o xerife. Antes de escurecer, uma fila de detetives já seguia o córrego até subir o cânion. Ao anoitecer, eles foram para casa, uma multidão que não fala sobre o que viu no trabalho naquele dia.

Nenhum deles liga para a Sra. Clark. Em casa, esperando, ela vira todos os colchões. Lava as janelas do segundo andar. Tira o pó dos rodapés. Cada tarefa geralmente ingrata, não é nada comparado a só esperar. Ela limpa a lareira, o telefone nunca tão distante a ponto de não poder pegá-lo assim que tocar.

Nesse segundo desaparecimento, ninguém amarrou fitas amarelas em nada. Ninguém foi bater de porta em porta. Ninguém acendeu velas votivas. Nenhum médium ligou.

Nem as emissoras de TV apareceram. Enquanto a Sra. Clark só faxinava, faxinava, faxinava.

Mais uma noite que Cassandra aguardou no cânion, do outro lado do córrego, e subindo meia encosta rochosa, a boa distância de qualquer estrada onde os lenhadores passam. Não havia pegadas pelo caminho, e seus pés descalços pareciam limpos, como se ela houvesse sido carregada.

Àquela altura, já era tarde demais para medir o potássio em seu humor aquoso. Os braços dela dobravam, ou seja, fazia mais de dois dias que estava morta. O rigor mortis já havia vindo e ido embora.

A primeira equipe de detetives, eles penduraram um microfone na cortina dos galhos do espinheiro. Do mesmo modo que deixavam um microfone perto do túmulo da vítima de homicídio depois do enterro. Porque o assassino sempre volta. O assassino tem que falar, contar sua história até que ela fique gasta.

Já outras histórias, elas é que desgastam você.

Para a única plateia que um assassino pode correr o risco de ter: sua vítima.

Cassandra na sua cama de musgo. O microfone pendurado acima dela, ligado a um gravador de fita e um transmissor que enviava o sinal a um xerife-adjunto empoleirado nas rochas do outro lado do cânion. Longe a ponto de ele conseguir dar tapas em mosquitos sem se entregar. Com fone de ouvido. Sentado no chão, coalhado de formigas. Escutando, o tempo todo escutando.

No fone de ouvido, pássaros cantam. O vento sopra.

Você ficaria surpreso de saber quantos assassinos voltam para dar adeus. Eles compartilharam algo, o assassino e a vítima, e o assassino se sentará no túmulo e falará sobre os velhos tempos.

Todo mundo precisa de uma plateia.

No fone de ouvido do adjunto, moscas zumbem, vindo depositar ovos na parte úmida das pálpebras de Cassandra, os lábios azuis abertos apenas por uma fenda. As moscas colocam ovos em seu nariz e ânus.

Em casa, a Sra. Clark já lutou contra a geladeira para desencostá-la da parede da cozinha e passar o aspirador nas bobinas do compressor.

Na cama de musgo, o sangue de Cassandra assentou-se do seu lado mais baixo, deixando as partes à mostra – os seios, as mãos e o rosto – parecendo pintadas de branco. Os olhos abertos e secos por estarem grudando nas línguas dos insetos. O cabelo loiro. O cabelo desenrola-se amarelo e grosso da nuca, mas opaco, assim como o cabelo que parece decepado e morto no chão da barbearia.

As células dela estão se autodigerindo, ainda tentando fazer alguma coisa. Desesperadas por alimento, as enzimas lá dentro começam a corroer as paredes das células, e o amarelado lá dentro começa a vazar. A pele pálida de Cassandra fica escorregadia, deslizando frouxamente sobre o músculo subjacente. Franzida e enrugando, a pele das suas mãos parece folgada como luvas de algodão.

A pele dela fica marcada por incontáveis inchaços, um campo do que poderiam ser marquinhas de faca, cada inchaço se mexendo, esfolando entre pele e músculo. Cada um é uma larva de uma mosca preta. Comendo a camada fina de gordura subcutânea, abrindo túneis logo abaixo da pele. Toda a superfície dela, de seus braços e de suas pernas, é uma constelação de inchaços em movimento.

No fone de ouvido do xerife-adjunto, o zumbido das moscas é substituído pelo crepitar das larvas abrindo túneis, uma mordidinha por vez.

Em casa, a um passo do telefone em silêncio, a Sra. Clark revê as decorações de Natal na poeira asfixiante do sótão, jogando coisas fora e reembalando. Colocando etiquetas em cada caixa.

As bactérias respiraram dentro dos pulmões de Cassandra, as bactérias em suas tripas, em sua boca, em seu nariz, elas se dividem e dividem e dividem sem células brancas para detê-las. Devoram a gordura subcutânea e a proteína amarela que vaza das células destruídas. Elas explodem em número, inchando seu estômago pálido até os ombros serem forçados para trás. Suas pernas são abertas. A barriga de Cassandra infla, reta, grávida do gás interno, um universo de bactérias se alimentando e se reproduzindo.

Sua língua incha, forçando a mandíbula a se abrir e se sobressaindo entre lábios inflados como pneus de bicicleta. O túnel de bactérias no céu da boca, irrompendo na abóbada craniana, onde seu cérebro aguarda, mole, comestível.

Em casa, a Sra. Clark leva o telefone sem fio de um cômodo a outro, esfregando as paredes e limpando o vidro cheio de moscas mortas que cobre as luminárias do teto.

Após mais um dia, o cérebro de Cassandra começaria a borbulhar, vermelho e marrom, e a sair pelos ouvidos e pelo nariz. A massa mole iria derreter e efervescer nos orifícios onde seus olhos afundaram.

O microfone capta o som. Pense em pipocas abafadas dentro do micro-ondas. Imagine entrar numa banheira com água quente cheia de espuma de banho, o som firme quando todas as bolhas estouram. É o som da chuva forte caindo num pátio de concreto. O granizo batendo no teto do carro. É o som das larvas, agora grossas como arroz branco. O microfone capta um rasgo e um guincho, o som de pele se rasgando e as tripas de Cassandra se achatando.

Chegam os besouros carnívoros. Ratos e pegas. Passarinhos cantam na floresta, cada sequência de notas tão forte quanto luzes coloridas. Um pica-pau escuta com a cabeça inclinada, tentando localizar os insetos dentro da árvore. Ele bate para fazer um buraco.

A pele afunda sobre os ossos, enquanto as tripas de Cassandra vazam. Encharcando o solo. Deixando só uma sombra de pele, essa armação de ossos atolada numa poça formada pela própria lama.

No fone de ouvido do xerife-adjunto, os ratinhos mastigam os besouros. Cobras chegam para engolir os ratinhos guinchando. Tudo parecendo estar no topo da cadeia alimentar.

Em casa, a Sra. Clark já reviu todos os papéis no quarto da filha, dentro das gavetas da escrivaninha. As cartas escritas em papel cor-de-rosa. Antigos convites de aniversário. E, escrito a lápis, copiado na letra à mão de Cassandra numa folha de caderno pautado, as perfurações esfarrapadas subindo por um lado, um bilhete diz:

Retiro de escritores: abandone sua vida durante três meses…

E ela jogou o peixinho dourado pela privada, ainda vivo. Então a Sra. Clark vestiu seu casaco de inverno.

Naquela noite, no fone de ouvido do xerife-adjunto, a voz de uma mulher disse: “Foi lá que você foi? Nesse retiro de escritores? Foi lá que torturaram você?”

Era a voz da Sra. Clark dizendo: “Sinto muito, mas você devia ter continuado desaparecida. Quando voltou, não era mais a mesma.” Ela diz: “Eu te amava muito mais antes de você sumir…”

* * *

Naquela noite, contando a história para nós no saguão de veludo azul, a Sra. Clark diz:

– Usei os comprimidos para dormir. – Sentada nos degraus da escada azul, ela fala: – No instante em que vi o microfone pendurado ali, saí correndo.

Naquela noite no cânion, ela podia ouvir o xerife-adjunto atravessando os arbustos, vindo prendê-la.

Ela nunca mais voltou para sua casa limpa, com todas as tarefas que ela odiava fazer já feitas.

Tendo nada no mundo exceto o casaco e a bolsa, a Sra. Clark ligou para o número no bilhete que Cassandra anotara à mão. Ela conheceu o Sr. Whittier e nos conheceu.

Os olhos dela passando das mãos e dos pés com ataduras para nosso cabelo esfiapado e para nossas bochechas fundas. A Sra. Clark diz:

– Eu nunca fui… nada dele. Nunca amei Whittier. – diz a Sra. Clark. – Eu só queria saber o que tinha acontecido com a minha filha.

Pois fora o Sr. Whittier que havia matado a menina à qual ela dera à luz.

Ela diz:

– Tudo que eu queria era saber por quê.