OBSOLETOS
Um conto do Sr. Whittier

Nas últimas férias da família, o pai de Eve levou todo mundo para o carro e disse para ficarem à vontade. A viagem podia levar duas horas, quem sabe mais.

Eles tinham petiscos, pipoca sabor queijo, latas de refrigerante e batatinhas sabor churrasco. O irmão de Eve, Larry, e ela se sentaram no banco de trás com Risky, o boston terrier. No banco da frente, o pai dela girou a chave na ignição. Ele aumentou a ventilação para forte e abriu todas as janelas elétricas. Sentada ao lado dele, a futura ex-madrasta de Eve, Tracee, disse:

– Ei, crianças, ouçam só isso…

Tracee pegou um panfleto do governo chamado Como É Bom Emigrar. Ela abriu, amassando a lombada ao dobrá-la para trás, e começou a ler em voz alta.

– Seu sangue utiliza a hemoglobina – leu ela – para transportar moléculas de oxigênio dos seus pulmões às células no seu coração e no seu cérebro.

Há mais ou menos seis meses, todo mundo recebeu o mesmo panfleto do Ministério da Saúde pelo correio. Tracee tirou as sandálias e apoiou os pés no painel do carro. Ainda lendo em voz alta, ela continuou:

– A hemoglobina, inclusive, prefere se conectar com o monóxido de carbono. – O jeito que ela falava, como se sua língua fosse grande demais, era para parecer mais jovem. – Quando você inspira os gases do escapamento do carro, cada vez mais a sua hemoglobina se combina ao monóxido de carbono, se tornando o que chamamos de carboxiemoglobina.

Larry estava dando pipoca sabor queijo para Risky, deixando cair o pó de queijo laranja-claro por todo o assento do carro entre ele e Eve.

O pai dela ligou o rádio e perguntou:

– Quem quer uma musiquinha? – Ele olhou para Larry pelo retrovisor e disse: – Você vai deixar esse cachorro doente.

– Ótimo – disse Larry, e deu a Ricky mais uma pipoca laranja. – A última coisa que vou ver é o portão da garagem por dentro e a última música que vou ouvir vai ser qualquer coisa dos Carpenters.

Mas não há nada para ouvir. Faz uma semana que nada toca no rádio.

Pobre Larry, pobre roqueiro gótico Larry, com a maquiagem preta manchando o rosto com pó branco, as unhas pintadas de preto e o cabelo comprido e oleoso tingido de preto, comparado a gente de verdade com os olhos bicados por passarinhos, gente morta de verdade com os lábios escamando pelos dentões mortos, comparado à morte de verdade, Larry era apenas um palhaço triste.

Pobre Larry: ele tinha passado dias no quarto depois da última matéria de capa da Newsweek. A manchete, em letras grandes e garrafais, dizia: “Morrer está na moda!”

Durante todos esses anos de Larry e sua banda se vestindo que nem zumbis ou vampiros de veludo preto e arrastando mortalhas, andando por cemitérios a noite inteira enrolados em rosários e capas, tanto desperdício. Até mesmo mamães suburbanas estavam emigrando. As velhinhas de igreja estavam emigrando. Advogados de terno estavam emigrando.

Na última edição da revista Time, a matéria de capa era: “Morte é a nova vida.”

Agora o pobre Larry, ele está preso com Eve, seu pai e Tracee, a família inteira emigrando junta num Buick quatro portas estacionado numa garagem suburbana na casa de dois andares. Todos os quatro respirando monóxido de carbono e comendo pipoca sabor queijo junto com o cachorro.

Ainda lendo, Tracee disse:

– Quanto menos hemoglobina houver disponível para transporte do oxigênio, mais suas células começarão a sufocar e morrer.

Ainda havia transmissão em alguns canais de TV, mas tudo que exibiam era o vídeo que foi enviado pela missão a Vênus.

Fora aquele programa espacial idiota que dera início a tudo isso. A missão tripulada para explorar o planeta Vênus. A tripulação enviou o vídeo da superfície do planeta, a superfície de Vênus como um paraíso verdejante. Depois disso, o acidente não aconteceu por causa de painéis de isolamento quebrados ou anéis que se partiram por erro humano. Não foi acidente. A tripulação simplesmente optou por não abrir os paraquedas de aterrissagem. Rápido como um meteoro, o casco externo da espaçonave pegou fogo. Estática e… fim.

Do mesmo modo que a Segunda Guerra Mundial nos deu a caneta esferográfica, o programa espacial havia provado que a alma humana era imortal. O que todo mundo chamava de Terra era apenas uma estação de processamento pela qual todas as almas tinham que passar. Um passo num processo, digamos, de refinação. Como a torre de craqueamento usada para transformar óleo bruto em gasolina ou querosene. Assim que as almas humanas eram refinadas na Terra, todos nós encarnaríamos no planeta Vênus.

Na grande fábrica de aperfeiçoamento das almas humanas, a Terra era como uma máquina de polir. Igual àquelas que as pessoas usam para polir pedras. Todas as almas vinham cá para aparar as arestas afiadas umas das outras. Todos nós temos que ficar gastos, alisados por conflitos e dor de todo tipo. Passar pelo polimento. Não havia nada de ruim nisso. Não era sofrimento, era erosão. Era só mais um passo básico e importante no processo de refinação.

Claro que parecia uma maluquice, mas ali estava o vídeo, enviado pela missão espacial que se espatifou de propósito.

Na televisão, era a única coisa que exibiam. Conforme o veículo de aterrissagem orbitava cada vez mais baixo, mergulhando nas camadas de nuvens que cobriam o planeta, os astronautas mandavam imagens de pessoas e bichos vivendo como amigos, todos sorrindo tanto que os rostos pareciam brilhar. No vídeo que os astronautas mandaram, todos eram jovens. O planeta era um Éden. A paisagem de florestas e oceanos, prados floridos e montanhas gigantes, era sempre primavera, dizia o governo.

Depois daquilo, os astronautas se recusaram a abrir os paraquedas. Seguiram direto para baixo, ploft, caindo nas flores e nos doces lagos de Vênus. Tudo que restou deles foram esses poucos minutos granulados, nebulosos, do vídeo que enviaram. E pareciam modelos usando túnicas cintilantes numa história futurística de ficção científica. Homens e mulheres de pernas e cabelos compridos, deitados, comendo uvas nos degraus de templos de mármore.

Era o paraíso, só que com sexo, birita e Deus dando permissão para tudo.

Era um mundo onde os Dez Mandamentos consistiam em: Festa. Festa. Festa.

– Começa com dor de cabeça e náusea – lê Tracee no panfleto do governo. – Os sintomas incluem batimento cardíaco progressivamente acelerado conforme o coração tenta levar oxigênio ao cérebro moribundo.

O irmão de Eve, Larry, nunca aceitou de fato o conceito de vida eterna.

Larry era membro de uma banda chamada Wholesale Death Factory. Ele tinha uma groupie meio vadia chamada Jessika. Eles se tatuavam usando agulhas de costura embebidas em tinta preta. Eles eram de alto nível, Larry e Jessika, a margem da marginália. Até que a morte entrou na moda. Só que não era mais suicídio. Passaram a chamar de “emigração”. Os corpos mortos e podres dos outros não eram mais cadáveres. As pilhas fedidas, inchadas de gente, empilhadas aos pés de cada prédio alto, ou envenenadas e esparramadas em bancos de pontos de ônibus, passaram a chamar isso de “bagagem”. Bagagem que ficou para trás.

O jeito que as pessoas pareciam no Ano-novo uma espécie de linha desenhada na areia. Uma espécie de novo princípio que nunca aconteceu de fato. Era assim que as pessoas viam a emigração, mas só se todo mundo emigrasse.

Essa era a prova real de vida depois da vida. Segundo estimativas do governo, já haviam até 1.760.042 almas humanas libertas e levando uma vida festeira no planeta Vênus. O restante da humanidade teria que continuar vivendo uma longa série de vidas de sofrimento, antes de estar refinado o suficiente para emigrar.

Dando voltas, erodindo na Polidora Gigante.

Aí o governo teve a grande sacada:

Se toda a humanidade morresse de uma vez, não haveria úteros e nenhum jeito das almas reencarnarem aqui na Terra.

Se a humanidade fosse extinta, todos nós iríamos emigrar para Vênus. Esclarecidos ou não.

Mas… se ficasse para trás um único casal fértil, o nascimento de uma criança poderia revogar uma alma. Meia dúzia de pessoas, e o processo ia começar todo de novo.

Até poucos dias atrás, dava para assistir na televisão ao movimento emigratório lidar com gente que continuava inconformada. Dava para assistir aos povos atrasados que não se engajaram no movimento, vê-los emigrando a força graças aos Pelotões de Assistência Emigratória, todos vestidos de branco, portando metralhadoras brancas. Aldeias inteiras gritando, bombardeadas para se realocar para o próximo passo no processo. Ninguém ia deixar que um bando de caipiras com Bíblias em punho nos largasse aqui, no velho e sujo planeta Terra, o planeta sem graça, não quando podíamos nos apressar para o próximo grande passo na evolução espiritual. Então envenenamos os caipiras pelo próprio bem deles. Os selvagens africanos foram mortos com armas químicas. As hordas chinesas foram destruídas à moda nuclear.

Socamos flúor e alfabetização na vida eles. Também tínhamos como forçar a emigração.

Se um só casal caipira ficasse para trás, você poderia se tornar o filho sujo e ignorante deles. Se só uma tribinho num arrozal do Terceiro Mundo não emigrasse, sua alma preciosa podia ser reconvocada a viver – espantando mosca e comendo papa estragada pontilhada de cocozinho de rato sob o suadouro sol asiático.

E, sim, claro, era tudo uma aposta. Mandar todo mundo junto para Vênus. Mas como a morte estava morta, a humanidade não tinha mesmo nada a perder.

Era essa a manchete da última edição do New York Times: “A morte morreu.”

O USA Today chamou de “A morte da morte”.

A morte fora desmistificada. Tipo o Papai Noel. Ou a Fada dos Dentes.

A vida passou a ser a única opção… mas parecia uma coisa infinita… eterna… perpétua… uma armadilha.

Larry e sua roqueira meio vadia, Jessika, eles vinham planejando fugir. Se esconder. Como a morte tinha sido cooptada pelo mainstream, Larry e Jessika queriam se rebelar ficando vivos. Teriam um monte de filhos. Ferrariam toda a evolução espiritual da humanidade inteira. Mas aí os pais de Jessika batizaram o leite dela, no café da manhã, com veneno de formiga. Fim.

Depois disso, Larry passou a ir ao centro da cidade todos os dias catar analgésico nas farmácias abandonadas. Tomar Vicodin e quebrar as vidraças das janelas, Larry dizia que para ele isso já era um esclarecimento. Todo o dia ele roubava carros e dirigia com eles por lojinha de porcelana abandonadas, chegando em casa chapado e polvilhado do talco branco dos air bags estourados.

Larry disse que queria ter certeza de que esse mundo estava bem gasto antes de passar para o próximo.

Como sua irmãzinha Eve lhe disse: Cresça. Ela lhe disse que Jessika não era a única putinha rocker gótica no mundo.

E Larry só olhou para ela, chapado e piscando em câmera lenta, e disse:

– Aham, Eva. Jesse era, sim…

Coitado do Larry.

Foi por isso que, quando o pai deles disse para entrarem no carro, Larry simplesmente deu de ombros e obedeceu. Ele se sentou no banco de trás, carregando Risky, o boston terrier da família. Não se deu ao trabalho de colocar o cinto de segurança. Eles não iam a lugar algum. Não a um lugar físico.

Era o equivalente espiritual Nova Era de que toda ideia cura tudo, do sistema métrico ao euro. À vacina de poliomielite… ao cristianismo… à reflexologia… ao Esperanto…

E não poderia ter surgido em época melhor. Poluição, superpopulação, doença, guerra, corrupção, perversão sexual, assassinato, vício em drogas… Talvez não estivesse pior do que já fora, mas agora a TV só falava disso. Um lembrete incessante. Uma cultura da reclamação. De queixas, queixas, queixas… A maioria das pessoas nunca admitiria, mas reclamava desde que nasceu. Assim que a cabeça brotava naquela luz forte da sala de parto, nada estava certo. Nada fora tão confortável ou provocara uma sensação tão boa.

Só o esforço necessário para manter o corpo físico vivo, só de ter que achar comida, cozinhar e lavar os pratos, se manter aquecido, tomar banho, dormir, caminhar, ter movimentos intestinais e pelo encravado, tudo dava trabalho demais.

Sentada no carro, com as ventoinhas soprando fumaça no rosto, Tracee lê:

– Conforme seu coração acelera, seus olhos se fecham. Você perde a consciência e tudo fica escuro…

O pai de Eve e Tracee, eles haviam se conhecido na academia e começaram a fazer bodybuilding para casais. Ganharam um concurso, posaram juntos e se casaram para comemorar. O único motivo pelo qual não emigramos meses atrás é que eles ainda estavam no auge do concurso. Eles nunca haviam estado tão bem, nunca haviam se sentido tão fortes. Ficaram de coração partido ao descobrirem que ter um corpo – mesmo um de músculos firmes, definidos, só com dois por cento de gordura – era como andar de mula enquanto o restante da humanidade estava voando em Learjets para onde quisesse. Eram sinais de fumaça se comparados a celulares.

Tracee seguia pedalando na bicicleta ergométrica quase todos os dias, sozinha na grande sala de aeróbica da academia, pedalando ao som de músicas de discoteca enquanto berrava para animar uma aula de spinning que não existia mais. Na sala de musculação, o pai de Eva levantava pesos, mas limitado a máquinas ou anilhas mais leves, pois não tinha ninguém por perto para lhe ajudar. Pior que isso, não havia ninguém com quem papai e Tracee pudessem competir. Ninguém para quem posar. Ninguém para superar.

O pai de Eve gostava de contar essa piada: Quantos fisiculturistas são necessários para trocar uma lâmpada?

Quatro. Um para colocar a lâmpada e outros três para assistir e dizer: “Putz, cara, você tá enorme!”

No caso do pai dela e Tracee, eram necessárias centenas de pessoas aplaudindo, assistindo a eles no palco, posando e flexionando. Ainda assim, não dava para negar, independentemente de como se aperfeiçoavam com vitaminas, colágeno e silicone, o corpo humano era obsoleto.

O engraçado é que a outra frase que o pai de Eva gostava de falar era:

– Se alguém pulasse da ponte, você pularia também?

Especialistas sugeriram que este era o único momento na história em que podíamos fazer a emigração em massa dar certo. Tínhamos precisado do programa espacial para nos dar a prova da vida que teríamos a seguir. Tínhamos precisado da mídia de massa para fazer essa prova circular pelo mundo. Tínhamos precisado das armas de destruição em massa para garantir a conformidade total.

Se houvessem gerações futuras, elas não saberiam o que a gente sabia. Não teriam as ferramentas que tivemos para fazer isso acontecer. Elas simplesmente viveriam suas vidas físicas horríveis, ingratas, comendo cocô de rato, ignorando que todos nós poderíamos viver no prazer em Vênus.

Claro que muita gente foi contra usar bombas nucleares nos inconformados. Mas vaporizar cada ilhota tribal no Pacífico Sul, isso esvaziou todos os silos de míssil. A radiação não se espalhou como o esperado. Um inverno nuclear se abateu sobre a Austrália, mas durou apenas alguns meses. A chuva caiu, houve uma megaextinção de peixes, mas o clima e as marés fizeram a sacanagem de limpar nossa bagunça envenenada. Todo esse potencial de emigração foi desperdiçado, pois a Austrália estava cem por cento complacente ainda nos primeiros seis meses.

Todas as nossas armas químicas e todos os nossos vírus letais, todas as nossas bombas nucleares e convencionais, foi tudo uma decepção. Não chegamos nem perto de apagar a humanidade. As pessoas acocoradas em cavernas. As pessoas que percorriam desertos imensos, vazios, de camelo. Toda essa gente imbecil e atrasada podia trepar. Um esperma encontra um óvulo e sua alma é sugada para viver mais uma vida de tédio, comendo, dormindo, se queimando no sol. Na Terra: Planeta Ferido. Planeta Conflito. Planeta Dor.

Para os Pelotões de Assistência Emigratória, com suas metralhadoras brancas, os alvos prioritários Top-A eram mulheres inconformadas entre as idades de 14 e 35 anos. Todas as outras mulheres eram prioridade Top-B de apoio. Todos os homens inconformados eram prioridade Top-C. Se acabassem as balas, a equipe de traje branco podia deixar uma aldeia inteira de homens e velhas vivos, para que envelhecessem e morressem de modo natural.

Tracee sempre se preocupou por ser um alvo prioridade Top-A, tinha medo de ser metralhada a caminho da academia. Mas a maioria dos pelotões ficava no campo ou nas montanhas, onde gente atrasada e esperando bebês podia se esconder.

Os burros mais burros podiam sabotar totalmente sua evolução espiritual. Não era justo.

Todos os outros, milhões de almas, já estavam na festa. No vídeo de Vênus, dava para enxergar o rosto de gente famosa que tinha sofrido muito na Terra e não precisava voltar para outra vida. Dava para ver Grace Kelly e Jim Morrison. Jackie Kennedy e John Lennon. Kurt Cobain. Eram esses que Eve reconhecia. Estavam todos na festa, parecendo eternamente jovens e felizes.

Entre as celebridades mortas haviam animais extintos na Terra: o pombo-passageiro, ornitorrincos, dodôs.

No noticiário, celebridades importantes eram aplaudidas no momento que emigravam. Se essa gente, astros do cinema e bandas de rock, podia emigrar pelo bem maior de toda a humanidade, essa gente com grana, talento, fama, com tudo que era preciso para se manter aqui, se eles podiam emigrar, qualquer um podia.

Na última edição da revista People, a matéria principal era o “Cruzeiro das Celebridades a Lugar Nenhum”. Milhares dos mais bem-vestidos, dos mais belos, estilistas e supermodelos, magnatas da informática e atletas profissionais, eles embarcaram no Queen Mary II e partiram para o mar, bebendo e dançando, seguindo depressa para o norte pelo oceano Atlântico, procurando, a toda velocidade, um iceberg com o qual colidir.

Jatinhos fretados se jogaram nas montanhas.

Ônibus de turismo se jogaram de penhascos.

Nos Estados Unidos, a maioria das pessoas foi ao Walmart ou ao Rite Aid comprar o Kit Despedida. A primeira geração dos kits era barbitúricos que vinham dentro de uma sacola plástica do tamanho da cabeça com um cadarço para dar a volta no pescoço. A geração seguinte era uma pílula de cianureto mastigável sabor cereja. Algumas pessoas emigraram ali mesmo, no corredor da loja – sem pagar pelo kit –, então o Walmart colocou os kits atrás do balcão de atendimento, junto dos cigarros, e obrigaram todo mundo a pagar antes de colocar as mãos no kit. No intervalo de alguns minutos, um comunicado no sistema de som pedia que os clientes fossem educados e não emigrassem dentro da loja… Obrigado.

No início, teve gente defendendo o que chamavam de Método Francês. A ideia deles era esterilizar todo mundo. Primeiro por cirurgia, mas desse jeito ia demorar muito tempo. Depois, expondo as genitálias das pessoas a radiação. Mesmo assim, naquela época todos os médicos já haviam emigrado. Eles foram os primeiros a pular fora. Médicos, é verdade, sim, a morte era o inimigo deles, mas sem ela estavam perdidos. De coração partido. Sem médicos, eram zeladores jogando radiação nos outros. As pessoas se queimavam. A rede elétrica caiu. Fim.

Nessa época, todas as pessoas bonitas e legais já tinham emigrado com cianureto no champanhe nas glamourosas “Festas Bon Voyage”. Eles davam as mãos e pulavam da cobertura de um arranha-céu. Gente já meio de saco cheio, todos os astros do cinema, superatletas e estrelas do rock. As supermodelos e os bilionários da informática, todos tinham caído fora na primeira semana.

Todos os dias, o pai de Eve chegava em casa contando quem da firma tinha se mandado. Qual dos vizinhos emigrara. Era fácil saber. A grama na frente da casa deles ficava muito alta. A correspondência e os jornais se empilhavam na porta. As cortinas nunca eram abertas, as luzes nunca se acendiam, e quem passasse por lá sentiria um cheiro doce, como o de uma fruta ou de uma carne apodrecendo lá dentro. O ar zumbia com moscas pretas.

A casa ao lado, a dos Frink, estava desse jeito. Assim como a casa do outro lado da rua.

Nas primeiras semanas, foi divertido: Larry ia ao centro esmurrar sua guitarra no palco do auditório do Teatro Civic. Eva se acostumou a ter o shopping inteiro como um guarda-roupa privativo. O colégio entrou em recesso e nunca, nunca mais ia voltar.

Mas o pai deles, dava para perceber que ele já estava nas últimas com Tracee. O pai deles nunca foi bom nisso depois do início romântico. Em épocas normais, ele já estaria traindo. Encontrava um rabinho novo na firma. Em vez disso, ele vinha assistindo a cena de Vênus na televisão, prestando total atenção, o nariz quase tocando as partes em que dava para ver as pessoas, grupos de supermodelos lindas, empilhadas nuas, em cascata. Uma lambendo vinho tinto da outra. Trepando sem reprodução, doença nem condenação divina.

Tracee vinha listando as celebridades com as quais queria fazer amizade assim que a família chegasse. No topo da lista estava a Madre Teresa.

Naquela época até mesmo as mães atormentadas faziam fila com os filhos, berrando para todos tomarem logo o leite envenenado e irem para o inferno, para a próxima fase da evolução espiritual. Naquele momento até vida e morte seriam fases pelos quais devíamos passar, assim como professores faziam as crianças passarem de uma série para a outra até a formatura, independentemente do que fizessem ou do que aprendessem. A grande corrida dos ratos rumo ao esclarecimento.

No carro, a voz ficando mais profunda e áspera de tanto aspirar fumaça, Tracee lê:

– Assim que as células de suas válvulas cardíacas começam a morrer, as duas metades, chamadas de ventrículos, ficam mais lentas, bombeando cada vez menos sangue pelo corpo… – Ela tosse e continua: – Sem sangue, seu cérebro para de funcionar. Em questão de minutos você estará emigrando.

E Tracee fecha o panfleto. Fim. O pai de Eve diz:

– Adeus, planeta Terra.

E o boston terrier, Risky, vomita pipoca sabor queijo em todo o banco de trás.

O cheiro do vômito do cão e os sons de Risky devorando tudo são piores que o monóxido de carbono.

Larry olha para a irmã, a maquiagem preta manchada em volta dos olhos, os olhos dele piscando em câmera lenta.

– Eve, leve seu cachorro lá fora pra vomitar.

Caso a família tenha se mandado quando ela voltar, o pai lhe diz que tem um Kit Despedida no balcão da cozinha. Diz a Eve para não demorar muito. Estarão esperando por ela na festança.

A futura ex-madrasta de Eve diz:

– Não deixe a porta aberta que a fumaça vai escapulir. Eu quero emigrar, não quero ficar com lesão cerebral.

– Tarde demais – diz Eve, e solta o cachorro no quintal.

Lá fora o sol continua brilhando. Passarinhos constroem ninhos, idiotas demais para saber que o planeta saiu de moda. As abelhas engatinham dentro dos botões abertos das rosas, sem saber que toda a sua realidade virou obsoleta.

Na cozinha, no balcão ao lado da pia, está um Kit Despedida, os pacotinhos de plástico com comprimidos de cianureto. Era de um sabor novo, limão. Pacote família. No forro de papelão há um pequeno desenho impresso que mostra um estômago vazio. Um relógio marca três minutos. E então sua alma-desenho iria acordar num mundo de prazer e conforto. O planeta seguinte. Evoluído.

Eve pega um comprimido, um amarelo-claro que tem uma carinha sorridente impressa em vermelho. Não tinha importância se usassem aquele corante vermelho tóxico. Eve pega todos os comprimidos. Ela leva todos os oito ao banheiro e os joga na privada.

O carro ainda está ligado dentro da garagem. Pela janela, em cima de uma cadeira de jardim, Eve vê as cabeças caídas lá dentro. O pai. A futura ex-madrasta. O irmão.

No quintal, Risky está enfiando o nariz na fenda debaixo do portão da garagem, fungando a fumaça que vem lá de dentro. Eve lhe diz: Não. Manda ele sair de perto da casa, voltar para o sol. Ali, com toda a vizinhança em silêncio, exceto os passarinhos, o zumbido das abelhas, o gramado já parece que precisa ser podado. Sem o rugido dos cortadores de grama, aviões nem motos, os passarinhos fazem tanto barulho quanto o trânsito antigamente.

Depois de se deitar na grama, Eve puxa a parte de baixo da blusa e deixa o sol aquecer sua barriga. Ela fecha os olhos e descreve círculos com as pontas dos dedos em volta do umbigo.

Risky late uma, duas vezes.

E uma voz diz:

– Ei.

Um rosto se projeta por cima da cerca do quintal do vizinho. Cabelo loiro, espinhas rosadas, um garoto da turma dela chamado Adam. De antes de todos os colégios fecharem. Os dedos de Adam seguram a cerca, e ele se ergue até seus cotovelos passarem por cima. Com o queixo apoiado nas mãos, ele diz:

– Ouviu falar da namorada do seu irmão?

Eve fecha os olhos e diz:

– Isso vai soar estranho, mas tenho saudade da morte…

Adam joga uma perna por cima da cerca. Ele diz:

– Seus pais já emigraram?

Na garagem, o motor do carro tosse e pula uma batida no cilindro. Um ventrículo que ficou preguiçoso. Dentro da janela, no ar da garagem começam a surgir nuvens cinzentas de fumaça. O motor se perde de novo e fica em silêncio. Nada lá dentro se mexe. A família de Eve é só uma bagagem que ficou para trás.

E, deitada sob o sol, sentindo a pele ficar retesada e vermelha, Eve diz, ainda fazendo círculos em volta do umbigo: – Coitado do Larry.

Risky para perto da cerca, olhando para cima, enquanto Adam joga a outra perna por cima da cerca e pula para o quintal. Adam se abaixa para fazer carinho no cachorro. Coçando embaixo do queixo do cão, Adam diz:

– Contou pra eles que a gente tá grávido?

E Eve, ela não diz nada. Não abre os olhos.

Adam diz:

– Se a gente recomeçar toda a raça humana, nossos pais vão ficar muito putos

O sol está praticamente a pino. O ruído que parece carros é só o vento percorrendo o bairro vazio.

Posses materiais estão obsoletas. O dinheiro é inútil. Status é algo sem sentido.

Teriam mais três meses de verão e havia um mundo inteiro de comida enlatada para consumir. Isso se o Pelotão de Assistência Emigratória não a metralhasse por inconformidade. Um alvo prioridade Top-A como ela. Fim.

Eve abre os olhos e observa o pontinho branco perto do horizonte azul. A Estrela da Manhã. Vênus.

– Se eu tiver esse bebê – diz Eve –, espero que ele seja… Tracee.