As obras de arte são cópias do vivente empírico, na medida em que a este fornecem o que lhe é recusado no exterior e assim libertam daquilo para que as orienta a experiência externa coisificante.
(Theodor Adorno)
Este capítulo tem por objetivo precípuo, realizar a análise da prosa poética Emparedado, de Cruz e Sousa, e do romance Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves, sob prismas que os inserem no rol das obras capazes de representar, com legitimidade, momentos raros e especiais da história da Literatura brasileira. Para que tal visão se justifique é preciso partir do pressuposto que as ações dos elementos responsáveis por suas organizações internas, não se coadunam com a forma, tradicionalmente histórica, de pensar desdobramentos de processos criativos, comumente encontrados em situações semelhantes, considerando o ponto de vista desse mesmo compromisso intratextual. Cercados por uma atmosfera heteróclita que os singulariza como formas de expressão literária, os artefatos produzidos por Cruz e Sousa e Ana Maria Gonçalves são dotados de conformações que nos contemplam com a presença de personagens negros, responsáveis pela construção das suas próprias representações. É a partir da posse e da exploração de um discurso, que verdadeiramente, traduz seus anseios de vida, revela sua visão de mundo, suas possibilidades humanas, dimensiona suas reais possibilidades de expressar um senso crítico acerca do mundo em que vive, e da exposição de uma sensibilidade que lhe é peculiar, que o negro, nos textos em questão, constrói uma trajetória diferenciada. Dessa forma, os artefatos que o abrigam rompem em definitivo com padrões que insistem em plasmá-lo, consoante metas legitimadas por instâncias de consagração. A referência a essas obras torna-se providencial, à medida que o personagem negro, na maioria das vezes, dono de uma trajetória viciada, e assim descrita pela Literatura, nas obras citadas dá lugar a um eu enunciador que se sente negro em toda sua dimensão, na plenitude de sua essência e em toda suas potencialidades. A partir de então, ele se manifesta de forma autônoma, expressando-se por si mesmo, pelo acesso a uma linguagem desprovida de ornamentos, assumindo posicionamentos que autorizam a repensar e a questionar a recorrência do emprego de uma linguagem limitadora das ações de personagens negros, conseguindo, através desse redimensionamento, empreender a busca de um resgate cultural.
Embora não façam eco no terreno regido pelo pensamento acadêmico, obstaculizadas que são pela falta de divulgação, de leitura, de debates e de sua adoção mesmo como referências literárias de qualidade, daí a queda num ostracismo, ainda assim, estes dois textos precisam ser trazidos à luz. Ambos são importantes, não só pelo que apresentam e representam, do ponto de vista da elaboração estética − aspecto que oportunamente tratarei em detalhes −, mas por tudo o que significam como referências contrapontísticas que são, de abordagens que requerem questionamentos, justamente por se efetivarem sempre desprovidas da presença de tais referências. É bem verdade que, apesar de existirem numa quantidade reduzida, há alguns textos que se posicionam um pouco à margem desse tratamento dispensado de forma padronizada ao personagem negro. Quando assim o fazem, porém, o que realmente sucede e que presenciamos no ato da leitura, a meu ver, ainda não chega a se constituir como uma real proposta de utilização da técnica do contraponto, muito embora, em que pese a forma acanhada com que o fazem, devamos admitir que eles tratam, sim, de aspectos de uma questão que é bem mais ampla. Como exemplos desse comportamento, destaco os contos A Escrava, de Maria Firmino dos Reis, O Caso da Vara e Pai Contra Mãe, ambos de Machado de Assis, só para destacar três, entre as poucas produções literárias que têm este caráter, geradas no âmago do polêmico século XIX.
Nesses três contos, e eu diria que não apenas neles, mas, de forma sistêmica, nos textos que a exemplo deles apresentam esta marca como registro, reconhecidamente há um esboço, há uma tentativa de fuga do lugar-comum, tendo em vista que eles apresentam e procuram explicitar algumas situações que, em geral, são omitidas ou, no máximo, intuídas. No entanto, a despeito de todo o “esforço” que demonstram fazer no sentido de desagregar uma ordem vigente no processo de criação literária, percebe-se que, ainda assim, estes textos não conseguem conferir ao personagem negro, ações que lhe possibilitem deixar a condição de “outro” e assumir sua “individualidade” de forma totalizante. Apesar de percebermos com relativa facilidade, que estes textos têm um anseio de construir um perfil do homem branco, revelador também de aspectos de sua personalidade, que vão além daqueles que se manifestam com maior clareza nas relações sociais colonialistas, na mesma intensidade, percebemos também que a intenção de romper com o instituído, para por aí, e torna-se uma componente quase que irrelevante dentro da conjuntura textual. O que se propõe é uma ruptura que não ultrapassa a ameaça, criando uma situação, que se revela, à medida que continuam a ser mantidos os elementos sinalizadores da cumplicidade que a Literatura conserva com o pensamento social dominante, sobretudo em sua relação com textos de índole não-estética, traduzidos pelo recurso à forma estereotipada, à falta de discurso direto ou a outras formas de limitação impostas ao personagem em destaque.
Todos sabemos que, uma, entre as diversas marcas características que definem uma linguagem como literária, especialmente nas obras que se destacam como expoentes, trata-se do uso de determinados recursos estéticos a partir da sua versão paradoxal. Isto quer dizer, a exploração da morte como forma de vida, da ambiguidade como forma de exatidão, da fragmentação como noção de coisa estruturada e outros recursos de natureza semelhante. Entretanto, não vejo este método sendo empregado com a finalidade de perseguir uma resposta estética ou de proporcionar sentidos para o texto, nas produções da Literatura brasileira que apresentam como húmus da diegese histórica, a atuação do personagem negro dentro do complexo social. No ato da sua organização técnica, os textos primam pela adoção de métodos e artifícios que contribuem para a manutenção de um conservadorismo que se faz cada vez mais extemporâneo. É o que, em certa medida, tratei de maneira detalhada no capítulo Estratégias Discursivas da Criação Literária, principalmente no que diz respeito ao silêncio que, comumente, é utilizado com o objetivo precípuo de realmente silenciar, e nunca utilizado da forma paradoxal, como exemplificado acima. Exatamente por contrariar essa proposta, retomo as discussões sobre esta questão, lançando mão dos textos de Cruz e Sousa e Ana Maria Gonçalves. Eles constituem o que há de mais contundente e apropriado como elementos de comprovação e convencimento da viabilidade de se colocar em prática, uma linha de raciocínio, produção, leitura e análise de artefatos literários, essencialmente gerados no contrafluxo de uma via modeladora de processos criativos. Em virtude de serem estruturados sobre um arcabouço diegético − considerando o termo aqui em sua mais ampla acepção − que os autoriza e os legitima a se estabelecerem como referências que se opõem a um processo de produção estandardizado, Emparedado e Um Defeito de Cor serão explorados como objetos de exame e discussão, por demonstrarem, explicitamente, que um autor, em geral, tem a sua disposição, as condições necessárias para produzir de forma diversificada. Ele não depara, portanto, com elementos coercitivos que o obrigam a incidir sempre numa mesma linha de elaboração, a menos que a meta seja exatamente insistir na produção de uma res que se faça cativa ao limitado horizonte da tautologia. Portanto, Emparedado e Um Defeito de Cor serão trabalhados como noções de contraponto de alguns textos, e mesmo da própria ideia defendida como base desta obra, mas, serão, fundamentalmente, reconhecidos como balizas capazes de impedir que se atribuam valores absolutos, a uma história literária obstinada no escopo de não valorizar outras possibilidades de criação.
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Especificamente no que se refere a Cruz e Sousa é preciso que se diga, que a despeito de sua importância como poeta de primeira linha da Literatura universal e de certo reconhecimento que o meio acadêmico brasileiro lhe dispensa, na realidade, quando o trazemos para o campo da exploração crítica, o que se objetiva em efeitos práticos são as ações de uma conjuntura que ainda o impede de ocupar, entre nós, um espaço compatível com a dimensão de seu fazer poético. Tal situação ocorre, sobretudo porque, é muito reduzido, por ser seleto, o número de adeptos que têm acesso a seu corpus, quer em nível docente, discente ou mesmo em nível de público ledor. O que quero afirmar é que, embora seja sim, um habitante dos meios acadêmicos, Cruz e Sousa ainda é pouco explorado e pouco valorizado como poeta possuidor da estatura artística que lhe é intrínseca. Praticamente, podemos considerá-lo um ilustre desconhecido, quando as discussões sobre ele derivam para o plano da narrativa, agruras a que também enfrenta, o próprio Simbolismo, estilo do qual ele é o principal representante em nossa Literatura.
O texto Emparedado veio à luz como parte constitutiva de Evocações, obra de narrativas, pronta para o prelo em 1897 e publicada postumamente, já nos últimos dias daquele século. Antes de tratar dele de forma mais objetiva, convém ressaltar duas condições que não podem deixar de ser vistas como norteadoras, no processo de atendimento dos pressupostos básicos estabelecidos por uma discussão que o tenha como foco. Uma delas, é a importância do século XIX como cenário propício à produção de textos engendrados pela via da forma predominante, sustentados por um cientificismo construtivista, determinante na elaboração do pensamento da época; a outra, trata-se da capacidade do texto, quanto à análise, à compreensão e a sua valorização, em se estabelecer como referência de uma proposta de criação literária que desvia de princípios estabelecidos por uma norma vigente.
No que diz respeito ao século XIX, apesar de muito já ter sido tratado ao longo deste livro, sobre sua condição de nascedouro e de espaço de concentração dos mais diversificados saberes, nunca é demais retomar algumas características suas, bem como destacar outras que ainda não foram colocadas em relevo. Um exemplo a ser considerado é sua capacidade em atuar como um século divisor de águas, no que se refere ao pensamento moderno, na mais ampla dimensão deste. É indiscutível que o século XIX não só engendrou e consagrou princípios e teorias, como, na mesma intensidade e por via de consequência natural, produziu certo desejo de ruptura, também natural, com os ditames estabelecidos pela maioria deles.
Considerando essa perspectiva, o texto Emparedado surge então, não apenas como oposição sistemática a noções, doutrinas e até conhecimentos consagrados, próprios do século XIX. Ele surge também e fundamentalmente, como um texto que regenera uma topografia literária carcomida e viciada no recurso continuado a parâmetros que já davam mostras de caminhar na direção de um natural processo falimentar, resultante de reações de discordância por parte de alguns intelectuais, bem como condicionado a um surgimento, também espontâneo, de um desejo de renovação que acabou explodindo no século seguinte. Trazendo em sua tessitura uma gama de elementos estéticos inovadores e combativos, novas concepções teóricas, e, sobretudo, traduzindo uma visão de vanguarda do ponto de vista da forma de abordar um tema tão recorrente, esse texto autoriza afirmar que, com ele, Cruz e Sousa enceta uma modalidade de criação literária, que mais tarde, parte expressiva do olhar crítico especializado atribuiria como marca registrada do pré-modernismo de Augusto dos Anjos. Em grande medida, esta classificação se dá em virtude da presença de uma clamorosa proposta de destruição, tão incisiva em Augusto dos Anjos, porém, já embrionária em Cruz e Sousa, e que veríamos ocorrer de maneira diversificada num futuro não muito distante. Portanto, na oportunidade de seu surgimento, Emparedado já se revela como presságio de um projeto de destruição que se contrapõe a pensamentos cunhados num sentimento cientificista-construtivista, aliado a um habitus forjado nos planos social, econômico e histórico, decisório naquele momento da vida do país. Quer na literatura, quer nas ciências humanas ou nas sociais, começa a despontar, de forma a marcar o pensamento e as atitudes empreendidos no princípio do século XX, um ensejo determinante em desmontar aquele sentimento cientificista, proposto e cultivado que fora de maneira universalizada, pelo século em andamento. Que o diga o Modernismo como pensamento; que o digam a forma e o conteúdo do “herói sem nenhum caráter”; que o diga o léxico de Rosa.
À medida que adota a prática da destruição a partir dos princípios que utiliza, Emparedado, sobremaneira, amplia sua dimensão no sentido de se ajustar como referência adequada à noção de contraponto e de artefato literário heteróclito que é, condição sustentada por suas ações destrutivas, principalmente pelos resultados obtidos no plano das ideologias, considerando a premissa que
no começo do século XIX tornou-se convencional, pelo menos entre alguns historiadores, identificar a verdade com o fato e considerar a ficção o oposto da verdade, portanto um obstáculo ao entendimento da realidade e não um meio de apreendê-la. A história passou a ser contraposta à ficção, e sobretudo ao romance, como a representação do “real” em contraste com a representação do “possível” ou apenas “imaginável”. E assim nasceu o sonho de um discurso histórico que consistisse tão-somente nas afirmações factualmente exatas sobre um domínio de eventos que eram (ou foram) observáveis em princípio, cujo arranjo na ordem de sua ocorrência original lhes permitisse determinar com clareza o seu verdadeiro sentido ou significação.254
Felizmente, para o enriquecimento do universo acadêmico e para a vitalidade de toda forma de pensar e de buscar apreensão de conhecimentos, essa visão não conseguiu ultrapassar patamares oitocentistas. Logo cede espaço para uma linha de raciocínio encontrada numa observação providencial do mesmo Hayden White, que apregoa ser irrelevante raciocinar “se o mundo é concebido como real ou apenas imaginado,”255 levando em consideração que “a maneira de dar-lhe um sentido é a mesma”.256 E é justamente na tentativa de alimentar e de conferir densidade a essa forma de agir, que o texto de Cruz e Sousa se destaca como um organismo que impõe sua estrutura, frente a processos de criação literária representantes da ordem vigente, e, à medida que a esta ordem se contrapõe, vai ao encontro da reversão de um quadro delimitado por lineamentos reducionistas.
Num processo de análise desenvolvido sobre Emparedado, do ponto de vista da conformação textual, a primeira questão a ser colocada e elucidada trata-se de sua estrutura formal, tendo em vista a especificidade que cerca a obra, no que diz respeito a este quesito. Dessa maneira, justifica-se a adoção de linhas de raciocínio propostas e sustentadas por aspectos presentes em sua organização interna. Na mesma dimensão, justifica-se, também, a eleição dessa obra como referência de comprometimento contrapontístico, aliado a peculiaridades estruturais que devem ser consideradas, bem como a sua organização e a sua forma, tanto uma quanto outra, impróprias a uma época e a um modus faciendi vigentes no fazer literário de então. Esta feição do texto, encontramos traduzida na exploração de mecanismos e recursos estéticos em descompasso com o pensamento que lhe é contemporâneo. Peculiaridades impróprias, no sentido de não compactuarem com a forma predominante de se fazer Literatura naquele momento histórico, pois não podemos perder de vista que a prosa poética, forma sobre a qual se estrutura Emparedado, tem sua origem localizada, justamente, naquele século. Portanto, esse artefato literário produzido por Cruz e Sousa, do ponto de vista da estrutura formal, é uma prosa poética que exige que se lhe dispensem cuidados especiais, tendo em vista rupturas e incorporações que estabelece com diferenciados entes teórico-literários nos mais diferentes níveis, através de relações de articulação da linguagem que vão contribuir para que se faça dela uma obra muito específica.
Numa certa medida, Emparedado é uma prosa poética que, por vezes, se afasta da narrativa convencional, rompendo com regras explícitas próprias dessa modalidade literária, a exemplo do espaço e do ambiente, elementos básicos nessa organização. Quanto ao espaço, convém observar que, nesta oportunidade, ele se dilui dentro da conjuntura textual, à medida que perde uma dimensão física palpável, desprovido que é de uma delimitação topológica; no entanto, como consequência desse mesmo desdobramento, ele ganha uma dimensão cósmica. Da mesma forma, ocorre também uma ruptura com o ambiente, uma dimensão que, se na estrutura da narrativa convencional, consagra-se pela capacidade de trazer as mais importantes significações pela via da etiqueta tácita, aqui, torna-se irrelevante, em função do alto grau de objetividade dessa prosa poética, possibilitado, principalmente, pela posse do discurso direto conferido ao personagem, o que se revela na presença de um narrador em primeira pessoa. Juntos, espaço e ambiente, − este, embora pouco presente − compõem um rol de mecanismos que, à medida que são utilizados, levam Emparedado a colidir com uma noção de narrativa tradicional. Ao mesmo tempo, podemos afirmar que, como prosa poética, a narrativa de Cruz e Sousa rompe inclusive com elementos que lhe são fundamentais, se observarmos que sua finalidade é muito mais questionadora, sua essência é muito mais tensa e seu propósito é de renomear o mundo, contrariando a finalidade, a essência e os propósitos, sempre de natureza poética que, naturalmente, cercam essas dimensões nas prosas poéticas em geral. Apesar de, por vezes, incorporar elementos congênitos à narrativa convencional, com a veemência com que o faz, sobretudo em relação a personagens e ao discurso direto, Emparedado não abdica de perseguir e conquistar um grande efeito imagético e um expressivo impacto emocional, que também são características próprias da prosa poética. Por estas e por outras razões destacadas e que serão valorizadas ao longo das discussões a serem estabelecidas, é que o texto de Cruz e Sousa se impõe como uma narrativa de natureza heteróclita e de essência performática.
O primeiro sintoma que revela a intenção dessa obra em ir ao encontro de uma proposta de ruptura com padrões consagrados e das evidências de que ela apresenta aspectos que demonstram originalidade, pode ser notado na figura do narrador. Emparedado é uma narrativa em primeira pessoa, situação técnica que, neste caso específico, denuncia o ponto de vista de um narrador autodiegético, portanto, de um narrador-personagem que, por assim ser, constrói a própria trajetória e a consistência de si mesmo, sendo, por esse motivo, dono de uma presença expressiva. Ele é o responsável pela própria performance no interior da conjuntura narrativa que o acolhe, pelo fato de dispor de espaço, livre trânsito, autonomia e, em conjunto com estas circunstâncias, tomar atitudes que o autorizam a trazer para a intratextualidade, livre de qualquer tipo de velâmen, as fraturas de um mundo que lhe é exterior. Credenciado por um poder de atuação que lhe é inerente, conquistado como consequência natural da utilização de um aparato discursivo que tem a sua mercê e que emprega de maneira a resultar nessas condições, o narrador- -personagem de Emparedado, em suma, é um personagem que, além de ter vez, tem voz. Nessa perspectiva, desempenha um papel que, por ser provido de voz, provoca a eliminação das ações de mecanismos impedientes e de circunstâncias proibitivas, comumente usadas como balizadoras das ações de personagens negros nos textos em geral.
Já, quanto ao desdobramento da narrativa, não devemos perder de vista que, em qualquer conjuntura que se conheça, sobretudo na social, e em igual intensidade, na literária, o ato de falar significa existir de modo absoluto para os outros. É exatamente a partir da adoção desse comprometimento estético que o texto de Cruz e Sousa começa a se singularizar, particularmente, pela presença e pelas ações de um personagem negro que o autor, com habilidade também singular e sem introjetar uma problemática de vida cotidiana, consegue tratar de forma universalizada, uma questão à qual a Literatura insiste em dispensar tratamentos individualizados. Opondo-se a verdades construídas por conceitos antropológicos, históricos e sociológicos vigentes no mundo, Cruz e Sousa se afasta da descrição pessoal, e sem se desvencilhar do pensamento científico-cultural da época, faz de Emparedado, um ideal de Literatura possível de ser representado pela indignação e pelo senso crítico.
Se quisermos considerar como eixo do nosso raciocínio uma disposição espacial, podemos situar a obra Emparedado entre três polos distintos, de abordagens que nos permitam adotar como forma de desenvolvimento sobre ela, uma linha de observação e análise, sustentada por uma situação tal em que o texto se apresente sob focos que sobre ele incidem, projetados a partir de três posições bem definidas. Assim sendo, por um lado iluminamos uma face do texto que revela suas ações no sentido de apresentar discussões que, simultaneamente, gravitam em torno dos anseios de um poeta, de um homem negro e de um poeta negro. No segundo caso, o foco é projetado sobre uma proposta de se estabelecer uma crítica social e literária, e por último, a iluminação incide sobre o fazer poético e a visão que o poeta, no caso o narrador-personagem, tem sobre a arte poética. É de fundamental importância o destaque de que em todas as três situações aventadas, as abordagens se configuram sustentadas pela ótica de um dominado que tem voz. Evidentemente que o leque de interpretações e sentidos possíveis de serem atribuídos ao texto, não se limita a esses raciocínios propostos; entretanto, tais linhas são adotadas como mestras, porque são as que com maior objetividade atendem às pretensões contrapontísticas das propostas formuladas como hipóteses dignas de questionamentos.
Tanto a riqueza do texto quanto seu comprometimento com a esfera crítica já se manifestam na epígrafe, quando o narrador- -personagem, a exemplo de Camões na estrofe IV do canto I de Os Lusíadas,257 se prepara pedindo inspiração, não às Ninfas do Tejo como faz o vate português, mas, à noite. O narrador recorre à noite para que ela, com os seus mistérios, com a nobreza de quem é coroada no trono das Constelações258 e com toda sua representatividade tradicional, e por que não dizer, até mística, o auxilie na tarefa de produzir um artefato literário que seja fruto de um processo pautado nos princípios da doação e da entrega artística de si mesmo, como Emparedado, em sua inteireza, acaba convencendo o menos sensível dos leitores:
Ah! Noite! feiticeira Noite! [...] ó Noite meditativa! fecunda-me, penetra-me dos fluidos magnéticos do grande Sonho das tuas Solidões panteístas e assinaladas, dá-me as tuas brumas paradisíacas, dá-me os teus cismares de Monja, dá-me as tuas asas reveladoras, dá-me as tuas auréolas tenebrosas, a eloqüência de ouro das tuas Estrelas, a profundidade misteriosa dos teus sugestionadores fantasmas, todos os surdos soluços que rugem e rasgam o majestoso Mediterrâneo dos teus evocativos e pacificadores Silêncios!259 [grifos meus]
Entretanto, a capacidade que a epígrafe apresenta para preparar o autor não pode ser limitada apenas à preparação deste; ela deve se estender, também, para o plano da leitura, porque, só dessa forma o leitor poderá penetrar nas camadas mais profundas do texto, e pela exploração delas, perceber suas implicações nos planos do contraponto e da crítica.
Na esteira desse recurso, o texto passa a desenvolver uma cadência crescente no sentido de pouco a pouco ir revelando um “eu” que na mesma intensidade vai se revelando a si mesmo e revelando o que possui de consistente dentro de si, dentro de sua própria essência:
As Estrelas, d’alto, claras, pareciam cautelosamente escutar e sentir, com os caprichos de relicários inviolados da sua luz, o desenvolvimento mudo, mas intenso, a abstrata função mental que estava naquela hora se operando dentro de mim, como um fenômeno de aurora boreal que se revelasse no cérebro, acordando chamas mortas, fazendo viver ilusões e cadáveres. 260´[grifos meus]
Começa, então, a delinear-se de forma consistente, um “eu” que tem consciência de sua verdadeira dimensão histórica, que demonstra ter domínio sobre uma trajetória de vida traçada, não apenas por si, mas, também, por todo um povo do qual ele é parte integrante e com o qual se identifica. E é justamente devido ao domínio que possui sobre esses elementos que ele enceta uma caminhada na direção de um quadro, cujo momento da reversão ele não mais está disposto a esperar:
De que subterrâneos viera eu já, de que torvos caminhos, trôpego de cansaço, as pernas bambaleantes, com a fadiga de um século, recalcando nos tremendos e majestosos Infernos do Orgulho o coração lacerado, ouvindo sempre por toda a parte exclamarem as vãs e vagas bocas: Esperar! Esperar! Esperar! 261
É essa forma obstinada de perseguir uma identificação, traduzida nos questionamentos que procuram saber quem somos e quais são nossos rumos na sociedade, que dá sentido à vida do personagem. É ela que vai permitir o desencadeamento de um processo de construção de sua identidade ou personalidade coletiva, que serve de plataforma mobilizadora para que o personagem de Emparedado encontre respostas para as dúvidas que o inquietam.
Como podemos perceber, os questionamentos feitos pelo personagem não são apenas de caráter pessoal. Ele revela, também, um descontentamento e uma insatisfação com o mundo ao seu redor; um mundo que ele quer conhecer e entender o porquê de sua função de cenário de comportamentos que, sobretudo em relação a si, são de sua total discordância. Um mundo que ele vê como espaço de desarmonias e no qual suas oportunidades foram tradicionalmente preteridas. Esta é a situação que o personagem de Emparedado enfrenta e transforma, a partir do encontro consigo mesmo, configurando um processo que lhe permite dimensionar com maior exatidão, sua esfera de atuação e o mundo que tem ao seu redor:
Então, à beira de caóticos, sinistros despenhadeiros, como outrora o doce e arcangélico Deus Negro, trismegisto, de cornos agrogalhardos, de fagulhantes, estriadas asas enigmáticas, idealmente meditando a Culpa imeditável; então, perdido, arrebatado dentre essas mágicas e poderosas correntes de elementos antipáticos que a Natureza regulariza, e sob a influência de desconhecidos e venenosos filtros, a minha vida ficou como a longa, muito longa véspera de um dia desejado, anelado, ansiosamente, inquietantemente desejado, procurando através do deserto dos tempos, com angústia, com agonia, com esquisita e doentia nevrose, mas que não chega nunca, nunca!! 262 [grifos meus]
E uma vez ciente e consciente da situação que o envolve, o personagem percebe que as formas de agir e pensar que adota para si começam a emparedá-lo numa sociedade que não reconhece nem admite comportamentos fora dos padrões impostos por ela, e ele avalia essa situação ao observar que “elevando o Espírito a amplidões inacessíveis, quase que não vi esses lados comuns da Vida humana, e, igual ao cego, fui sombra, fui sombra!”263
Entretanto, o personagem transforma as adversidades em motivação para empreender suas atitudes críticas, quer no plano artístico, quer no plano social, impondo-se pela utilização de um discurso incisivo, que, de forma aberta, revela a pretensão de constituir os objetos que quer descrever realisticamente e analisar objetivamente.264 Quanto à arte, seu grande “crime” encontra-se na maneira de vê-la, de doar-se a ela e de utilizar todas as fibras de seu ser, no ato de sua construção, muito embora suas advertências e contrariedades transcendam o plano artístico e também sejam reveladoras de sua visão de mundo:
Mas, foi apenas bastante todo esse movimento interior que pouco a pouco me abalava, foi apenas bastante que eu consagrasse a vida mais fecundada, mais ensangüentada que tenho, que desse todos os meus mais íntimos, mais recônditos carinhos, todo o meu amor ingênito, toda a legitimidade do meu sentir a essa translúcida Monja de luar e sol, a essa incoercível Aparição, bastou tão pouco para que logo se levantassem todas as paixões da terra, tumultuosas como florestas cerradas, proclamando por brutas, titânicas trombetas de bronze, o meu nefando Crime.
Foi bastante pairar mais alto, na obscuridade tranqüila, na consoladora e doce paragem das Ideias, acima das graves letras maiúsculas da Convenção, para alvoroçarem-se os Preceitos, irritarem-se as Regras, as Doutrinas, as Teorias, os Esquemas, os Dogmas, armados e ferozes, de cataduras hostis e severas. 265 [grifos meus]
Quanto a questões mais objetivamente pessoais, embora sempre tratadas a partir de uma proposta de universalização, o personagem expressa sua consciência crítica fundada nos impactos sofridos por um homem negro que se pretende poeta e que se pretende artista: duas pretensões inadmissíveis pelo pensamento dominante do século XIX:
Eu trazia, como cadáveres que me andassem funambulescamente amarrados às costas, num inquietante e interminável apodrecimento, todos os empirismos preconceituosos e não sei quanta camada morta , quanta raça d’África curiosa e desolada que a Fisiologia nulificara para sempre com o riso haeckeliano e papal!
Surgido de bárbaros, tinha de domar mais bárbaros ainda, cujas plumagens de aborígene alacremente flutuavam através de estilos.266 [grifos meus]
Acontece, porém, que a despeito de todos os obstáculos que a vida lhe opõe no plano dos intercursos sociais, o personagem de Emparedado a eles se impõe, enfrentando-os e conquistando, pela via do enfrentamento, novas perspectivas de ações que geram possibilidades de releituras. Nessa dimensão, o fato que mais marcadamente se destaca é a ruptura absoluta que o personagem empreende com uma noção de passividade tão explorada pelos textos em geral. O que o personagem emparedado faz acerca da mediocridade do mundo ao seu redor, são constatações, e, não, muro de lamentações. Faz críticas sobre esse mundo e vai à luta, procurando lhe imprimir ações capazes de transformá-lo. Fundamentalmente, tem consciência de seu valor, de sua capacidade, e se entrega totalmente a uma causa sobre a qual apresenta posições definidas, colocando-se como porta-voz daqueles que, como ele, em alguma medida, sofrem os mesmos prejuízos. Acima de tudo, expressa a todo o momento o orgulho de ser exatamente quem é: um homem negro. Rigorosamente, o emparedado não traz o menor laivo que seja, de insatisfação com sua condição de negro; pelo contrário, demonstra o tempo todo sua autoestima, e juntamente com ela, a certeza de que tem consistência humana, de que tem vez e de que tem voz. Quando questiona, de fato não o faz sobre sua cor, mas sobre a importância que as pessoas atribuem a ela e sobre a irrelevância que ela assume diante de questões de maior densidade existencial:
Deus meu! Por uma questão banal da química biológica do pigmento ficam alguns mais rebeldes fósseis preocupados, a ruminar primitivas erudições, perdidos e atropelados pelas longas galerias submarinas de uma sabedoria infinita, esmagadora irrevogável!
Mas, que importa tudo isso? Qual é a cor da minha forma, do meu sentir? Qual é a cor da tempestade de dilacerações que me abala? Qual a dos meus sonhos e gritos? Qual a dos meus desejos e febre?267
No texto de Cruz e Sousa o homem emparedado tem a exata noção do pensamento que caracteriza o mundo, e que, de forma sistêmica, norteia o comportamento das pessoas; por isso demonstra tranquilidade no trato com as adversidades que se lhe apresentam:
O mundo, chato e medíocre nos seus fundamentos, na sua essência, é uma dura fórmula geométrica. Todo aquele que lhe procura quebrar as hirtas e caturras linhas retas com o poder de um simples Sentimento, desloca de tal modo elementos de ordem tão particular, de natureza tão profunda e tão séria que tudo se turba e convulsiona; e o temerário que ousou tocar na velha fórmula experimenta toda a Dor imponderável que esse simples Sentimento responsabiliza e provoca. 268
O personagem de Emparedado tem consciência, inclusive, do alto preço que tem a pagar no desdobramento da estrada que resolveu pavimentar, porque sabe que “não pertence à velha árvore genealógica das intelectualidades medidas, dos produtos anêmicos dos meios lutulentos, espécies exóticas de altas e curiosas girafas verdes e spleenéticas de algum maravilhoso e babilônico jardim de lendas...”269 Na mesma medida, sabe que veio da África, um continente que, na visão hegemônica, representa o atraso e a brutalidade, e por esse motivo ele tem a sensação de ouvir uma voz ignota, que parece vir do fundo da Imaginação ou do fundo mucilaginoso do Mar ou dos mistérios da Noite270 a lhe murmurar insistentemente:
− “Tu és dos de Cam, maldito, réprobo, anatematizado! Falas em abstrações, em Formas, em Espiritualidade, em Requintes, em sonhos! Como se tu fosses das raças de ouro e da aurora, se viesses dos arianos, depurado por todas as civilizações, célula por célula, tecido por tecido, cristalizado o teu ser num verdadeiro cadinho de ideias, de sentimentos − direito, perfeito, das perfeições oficiais dos meios convencionalmente ilustres! Como se viesses do Oriente, rei!, em galeras, dentre opulências, ou tivesses a aventura magna de ficar perdido em Tebas, desoladamente cismando através de ruínas; ou a iriada, peregrina e fidalga fantasia dos Medievos, ou a lenda colorida e bizarra por haveres adormecido e sonhado, sob o ritmo claro dos astros, junto às priscas margens venerandas do Mar Vermelho!
Artista! Pode lá isso ser se tu és da África, tórrida e bárbara, devorada insaciavelmente pelo deserto, tumultuando de matas bravias, arrastada sangrando no lodo das Civilizações despóticas, torvamente amamentada com o leite amargo e venenoso da Angústia! A África arrebatada nos ciclones torvelinhantes das Impiedades supremas, das Blasfêmias absolutas, gemendo, rugindo, bramando no caos feroz, hórrido, das profundas selvas brutas, a sua formidável Dilaceração humana! A África laocoôntica, alma de trevas e de chamas, fecundada no Sol e na Noite, errantemente tempestuosa como a alma espiritualizada e tantálica da Rússia, gerada no Degredo e na Neve − pólo branco e pólo negro da Dor!271 [grifos meus]
Uma vez esclarecida a razão principal pela qual o narrador--personagem de Emparedado se vê cerceado em seu direito inalienável de ser artista e de exercer cidadania plena, isto é, o fato de ser negro, condição que perpassa toda a obra, a narrativa reproduz murmúrios de uma voz desconhecida que soa nos ouvidos do personagem, traduzindo uma das páginas mais patéticas da Literatura brasileira:
Não! Não! Não! Não transporás os pórticos milenários da vasta edificação do Mundo, porque atrás de ti e adiante de ti não sei quantas gerações foram acumulando, acumulando pedra sobre pedra, pedra sobre pedra, que para aí estás agora o verdadeiro emparedado de uma raça.
Se caminhares para a direita baterás e esbarrarás ansioso, aflito, numa parede horrendamente incomensurável de Egoísmos e Preconceitos! Se caminhares para a esquerda, outra parede, de Ciências e Críticas, mais alta do que a primeira, te mergulhará profundamente no espanto! Se caminhares para a frente, ainda nova parede, feita de Despeitos e Impotências, tremenda, de granito, broncamente se elevará ao alto! Se caminhares, enfim, para trás, ah! ainda, uma derradeira parede, fechando tudo, fechando tudo − horrível! − parede de Imbecibilidade e Ignorância, te deixará num frio espasmo de terror absoluto...
E, mais pedras, mais pedras se sobreporão às pedras já acumuladas, mais pedras, mais pedras... Pedras destas odiosas, caricatas e fatigantes Civilizações e Sociedades... Mais pedras, mais pedras! E as estranhas paredes hão de subir, − longas, negras, terríficas! Hão de subir, subir, subir mudas, silenciosas, até às Estrelas, deixando-te para sempre perdidamente alucinado e emparedado dentro do teu sonho...” 272
É, sobretudo em seu desfecho, que o texto apresenta uma beleza singular, exatamente porque as palavras nele contidas são de uma ambivalência enriquecedora. A voz que murmura no ouvido do personagem negro, tanto expressa a visão da classe dominante, quanto expressa a consciência que esse personagem tem de si, de seu papel na sociedade e do pensamento que a sociedade tem sobre ele. Tanto é uma voz que vem de fora, quanto é monólogo interior, portanto, a voz do próprio personagem, mas, fundamentalmente, o que essa voz com mais percuciência retrata, é o húmus ideológico, cultural, histórico e até religioso em que subjaz o arcabouço social.
Em pleno século XIX, Cruz e Sousa aliou coragem e ousadia a sua capacidade criativa, e rompendo com pensamentos instituídos como paradigmas, produziu Emparedado, uma obra que ao lado de Um Defeito de Cor, representa o que há de mais revolucionário na Literatura brasileira, no que concerne ao ponto de vista do tratamento discursivo dispensado a um personagem negro. Na sua tessitura, o personagem negro tem vez, tem espaço e tem voz, e pela própria fala revela imagens de coisas que estão para além de si mesmas, ampliando a dimensão reflexiva acerca dos acontecimentos, bem como a capacidade desses acontecimentos se expressarem por si mesmos. Somente por esses aspectos, o texto de Cruz e Sousa já é merecedor de uma recomendação indispensável, para que ele seja olhado como um artefato raro em que a Literatura brasileira contempla seus leitores, com atuações de um personagem negro, verdadeiramente... “desemparedado”.
***
“Não sei, e espero que você leia tudo isso apenas como uma história que está sendo contada exatamente do jeito que aconteceu”273 [grifo meu].
É assim, em flash-back, que Kehinde, a protagonista de Um Defeito de Cor relata para seu filho Omotunde, sua saga desenrolada ao longo de oito décadas de sua vida, culminando com o desaparecimento deste, vendido que fora pelo próprio pai. E assim, numa narrativa em flash-back, Kehinde narra a própria história, e à medida que narra a própria história, narra também a história do Brasil no tocante à escravidão, ao escravismo e às circunstâncias e conjunturas associadas à aliança daquela instituição social, a este sistema econômico.
O romance autobiográfico Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves, impressiona por muitos aspectos que lhe são inerentes, mas impressiona, sobretudo, pela forma que foi gerado e pela sua organização interna. Da perspectiva de sua geração, ele nasce de uma forma inesperada, que a autora preferiu atribuir ao fenômeno da serendipidade, isto é, conforme ela mesma explica, um termo derivado de serendipity, uma palavra de origem inglesa, que passou a ser usada para descrever aquela situação em que descobrimos ou encontramos alguma coisa, quando buscamos outra.274 Um Defeito de Cor surgiu em virtude de relatos extraídos de documentos antigos, que por obra do acaso caíram em suas mãos, e por isso, como diz a própria autora, fruto da serendipidade.
Do ponto de vista da organização interna, começo pelo destaque de sua capacidade para desenvolver uma linguagem que consegue atender aos diferentes gêneros literários épico, lírico e dramático, cada um a seu tempo.
O texto é épico pela objetividade da protagonista que parte da condição de escrava aos seis anos de idade, e precocemente, já tem de enfrentar as adversidades que a vida lhe impõe. Assim, ela aprende a ler, a escrever e a falar o português e o inglês, atingindo na meia-idade, a condição de empresária bem sucedida no plano econômico. Simultaneamente com seu viés épico e pelas mesmas razões teóricas, o texto se consagra, ainda, como o grande bildungsroman feminino da Literatura brasileira, o que o leva a preencher outro requisito que o classifica como singular, dentre textos que se lançam na empreitada de contemplar o negro, em abordagens de caráter histórico-literárias.
É lírico, por toda a componente intimista e emocional que perpassa a trajetória de todos os personagens, nos mais diversificados níveis de subjetividade como a dor, o amor, o carinho, a amizade, o respeito pela condição humana, e, pasmem, até a solidariedade, traduzindo comportamentos que configuram a noção de contraponto.
O texto ainda consegue ser dramático pelas ações275 empreendidas pelos conflitos que produz.
Diante de tanta diversificação, fica realmente muito difícil precisar em qual dos gêneros há um investimento maior, sendo que, particularmente, eu aposto na existência de um equilíbrio entre as três possibilidades genéricas, permitidas pela criação literária.
Outra característica interessante do texto e que também contribui para sua qualidade e para a riqueza de seu desdobramento estético, diz respeito à possibilidade que ele oferece para que o interpretemos a partir de uma leitura que valorize sua dimensão trágica. Nesse aspecto, todas as referências recaem sobre a protagonista, Kehinde, sustentadas pela presença da peripécia, do reconhecimento e do acontecimento patético ou catástrofe,276 elementos-chave da tragédia clássica, presentes em sua trajetória dentro da narrativa.
Um Defeito de Cor impressiona também, pela capacidade criativa da autora em trazer para os dias atuais, acontecimentos próprios do princípio do século XIX e modernizá-los a partir da utilização de técnicas inovadoras. Por meio de uma linguagem eclética − ora silenciosa, ora dissimulada e ora impactante por ser objetiva − e da utilização de mecanismos teóricos como o próprio flash-back, que em princípio surpreende, inquieta e até confunde o leitor pela forma inusitada que desponta no final do texto, a obra coloca o leitor diante de uma saudável confusão que é praxe ocorrer nas narrativas pós-modernas. O romance de Ana Maria Gonçalves configura-se como uma obra singular, pela forma com que articula e harmoniza esses e outros elementos literários, sobretudo, o contraponto, elemento tão desprestigiado nas obras que tratam da escravidão.
Entretanto, não se esgotam na presença desses pontos citados, as impressões que o romance causa como um artefato de caráter inovador, quer ao nível estético, quer ao nível do conteúdo. No que diz respeito a este último nível, vale a pena ressaltar o quanto esse texto dialoga com o discurso histórico tradicional, contemplando em sua tessitura, toda a discussão que já nos habituamos a encontrar nas páginas da historiografia oficial, porém apresentando duas diferenças sintomáticas. A primeira delas é que, embora ele traga todo o aparato histórico já conhecido, nessa oportunidade, ele o faz sem qualquer tipo de omissão, e com a essência desse aparato, dialoga pela ruptura e pela dissensão; a segunda, embora estejamos em contato com um narrador autodiegético, mais do que ele, falam os fatos. Eles o fazem por si. Não há, em momento algum, por parte do narrador, a tentativa de falar por eles. Nessa medida, Um Defeito de Cor se identifica e dialoga com muitas das ideias apresentadas e defendidas nas páginas anteriores deste livro, no que diz respeito às críticas feitas ao que considero como carências dos textos que fazem abordagens sobre o negro. O texto de Ana Maria Gonçalves corrobora com essas ideias a partir do compromisso que apresenta ao tratar do tema de forma predominantemente literária, e neste aspecto, de forma predominantemente polissêmica.
No atendimento de interesses mais objetivos, quero destacar alguns aspectos da obra que refletem uma coincidência com pensamentos até aqui expostos e propostos, objetivando trazer à luz, elementos, cuja ausência sistemática impede uma absorção mais consistente de fatos históricos determinantes na vida do país. Um Defeito de Cor trata com muita propriedade os elementos que traz no seu bojo, e apesar de já conhecidos em sua maioria, a eles confere novos enfoques e novos perfis, a exemplo da visão dispensada à questão cultural e à questão religiosa dos africanos, sempre tratadas com imparcialidade e com respeito, que se traduzem nos modos que a obra recorre para vê-los e pensá-los. É interessante citar, também, os enfoques dados às ações da Igreja, ao mané-gostoso, às punições exemplares, aos estereótipos e aos mitos, entre outros, como componentes de uma situação já conhecida, mas que, na sua tessitura, de forma alguma vem apenas com o fim de reverberar o discurso não-estético. Se bem observados, esses mesmos elementos mostram que recebem tratamentos diferenciados dos tradicionalmente encontrados, diferenciação que se apresenta, juntamente com a ocorrência de acontecimentos históricos, quase que, absolutamente desconhecidos do grande público. Neste particular, refiro-me a algumas revoltas de escravos, a demonstrações de que eles possuíam autoestima sim, a sua astúcia, às lutas através das quais eles tentavam reverter o quadro da escravidão pela via cultural, além de outras ações de natureza semelhante por eles implementadas.
Portanto, é este o momento de demonstrar as formas pelas quais Um Defeito de Cor assume uma postura diferenciada e se consagra como um artefato literário que vira o jogo do poder, em virtude do tratamento dispensado por uma forma e por uma matéria, por um espírito e por um tema, mas, sobretudo, por um conteúdo e por uma coerência que lhe permitem se destacar de um mundo empírico e suscitar outro com essência própria. Por esse aspecto, o texto de Ana Maria Gonçalves me leva a relembrar Adorno e sua propositura, segundo a qual
nenhuma obra de arte, porém, pode socialmente ser verdadeira se não for também verdadeira em si mesma; inversamente, a consciência socialmente falsa também não pode tornar-se algo de esteticamente autêntico. [...] Torna-se um elemento social mediante o seu em-si e torna-se um em-si pela força social nela actuante. A dialéctica do elemento social e do em-si das obras de arte é uma dialéctica da sua própria natureza, na medida em que não toleram nenhum elemento interior que não se exteriorize, e nenhum elemento exterior que não seja portador da sua interioridade − do conteúdo de verdade.277
É por esses motivos que Um Defeito de Cor se faz uma obra verdadeira. Porque em sua tessitura, tudo que lhe é imanente migra para a exterioridade, na exata proporção que essa mesma tessitura acolhe e consagra elementos extraliterários, pertencentes aos mais diferenciados intercursos sociais. Agindo assim, ela rompe com uma determinação, não raramente autotélica da Literatura brasileira, que assim se faz por ser tributária da preferência predominante por expressões artísticas sacralizadas.
Kehinde é a protagonista desse romance autobiográfico que se desenvolve em primeira pessoa, conduzido por uma narradora autodiegética que, a despeito das evidências dessa condição técnica, de fato, mais que narrar a odisséia da própria vida, narra uma história que rompe com qualquer proposta de mero individualismo ou isolacionismo pessoal. A despeito dessa determinação técnica a obra assume dimensões coletivas e universais que impressionam pela articulação da linguagem, pela organização interna do texto, e, sobretudo, pela coerência com que os acontecimentos são revelados, e nesse aspecto, assim o são em virtude de respeitar e valorizar as marcas do contraponto.
Com apenas seis anos de idade, ainda na África, Kehinde, numa só ocasião presencia o estupro da mãe e o assassinato do irmão. Logo em seguida, ela é deportada como escrava para o Brasil e desde então sua vida pessoal passa a ser conduzida pelas marcas indeléveis que a escravidão lhe imprime. Nesse cipoal de crueldades, a maior delas, sem dúvida, é a perda de um filho que lhe foi arrancado da dimensão materna e vendido pelo próprio pai. A busca desenfreada pelo filho é o leitmotiv do romance que, como o leitor percebe em certo ponto da leitura, Kehinde escreve a bordo do navio que a traz de volta para o Brasil, oitenta anos depois de ter vindo pela primeira vez e ter retornado a África como liberta. Agora Kehinde retorna, ainda mantendo as esperanças inabaláveis de uma mãe que não desistiu nunca da tarefa de encontrar o filho, que não conseguiu localizar nas inúmeras incursões que promoveu nesse sentido. E dessa maneira, mais que tratar da odisséia de Kehinde, Um Defeito de Cor imerge numa dimensão da nacionalidade brasileira que merece reflexão, se se considerar que a mutilação à qual a submeteram, não lhe foi imposta somente pelo marido, mas, o foi, sobretudo, por uma conjuntura social que, na sua relação com o escravo negro, optou por lhe dispensar tratamento desumano. Por isso, Kehinde é também testemunha.
O episódio do romance que primeiramente chama a atenção é o que trata da estrutura do tumbeiro no qual Kehinde embarca, juntamente com a avó, a irmã Taiwo e mais um número elevado de prisioneiros que seriam escravizados no Brasil. O tumbeiro marca por sua descrição física, mas marca muito mais ainda, pela remessa imediata e inevitável que faz ao Navio Negreiro, de Castro Alves. Nas cinco páginas do capítulo intitulado A Viagem,278 o texto traduz de maneira fotográfica e apropriada, todo sentimento de desumanidade “embarcado” junto com os escravos. A remessa ao Navio Negreiro não tem qualquer pretensão de estabelecer uma conotação comparativa, nem, tampouco, inviabiliza a qualidade de texto de Castro Alves, mas mostra a mudança de perspectiva, de foco, e fundamentalmente, do lugar da fala, e com isso muda o tom dessa fala, trazendo novas possibilidades de leitura e novos elementos para reflexão do fato histórico vertido em fato literário:
O tumbeiro apitou e partiu pouco tempo depois que paramos de ouvir barulhos na parte de cima, quando acabaram de acomodar todos os homens. Ouvimos um só apito, tão baixo que parecia surgido ao longe, como se não estivesse anunciando a nossa partida, mas que me fez lembrar o canto do pássaro sobre o iroco, naquele fim de tarde em Savalu. A minha avó também deve ter se lembrado, pois durante o apito e por muito tempo depois, enquanto ele continuava ecoando, segurou firme a minha mão, e devia estar fazendo o mesmo com a mão da Taiwo, que, naquele momento, disse estar com vontade de fazer xixi. A minha avó disse para ela esperar. Eu sabia que era medo, pois eu e a Taiwo sempre sentíamos vontade de fazer xixi quando ficávamos com medo [...] Vistos do alto, devíamos estar parecendo um imenso tapete, deitados no chão sem que houvesse espaço entre um corpo e outro, um imenso tapete preto de pele de carneiro. [...] Eu tentava imaginar outras coisas para esquecer a vontade de fazer xixi, até que a Taiwo reclamou de novo e a Tanisha disse à minha avó que ela teria de fazer ali mesmo, deitada, como provavelmente todos faríamos quando desse vontade, sem que houvesse terra para jogar por cima. A minha avó então rasgou um pedaço da roupa e o deu a Taiwo, para que se enxugasse depois, tomando cuidado para o xixi não escorrer e molhar a cabeça do homem que estava deitado aos seus pés. O homem não reclamou e nem se mexeu, então eu disse que queria fazer também. Estava acostumada a fazer xixi em qualquer lugar, até mesmo no meio da rua, mas fechada naquele porão era muito difícil. Principalmente por saber que, ao ouvir o barulho ou sentir o cheiro, alguém mais poderia ficar com vontade e fazer também, aumentando o ranço daquele lugar. Tive nojo quando peguei o pano já molhado com o xixi da Taiwo e quis desistir, mas não consegui segurar. Senti o xixi escorrendo por entre as pernas e apertei o máximo que pude uma contra a outra, para que não escorresse muito longe e não molhasse mais o meu vestido, que ainda estava úmido da água do mar. O tumbeiro apitou mais uma vez e pareceu ganhar velocidade, e eu só pensava na hora em que nos deixariam sair dali para tomar a fresca. 279 [grifos meus]
O final da citação revela a ingenuidade da personagem, uma menina ainda, de apenas seis anos de idade, e, com extrema fidelidade, revela também, o verdadeiro perfil da escravidão, e, principalmente, do escravocrata.
As primeiras manifestações de revolta dos aprisionados, pondo por terra a tese da passividade do negro, acontecem ainda a bordo do tumbeiro, quando vários suicídios são efetuados. Um deles é o do escravo Benevides, que se matou e levou muitos a dizer que ele agira corretamente, que, antes virar carneiro de bicho do mar, pois, provavelmente, seria lançado ao mar, do que virar carneiro de branco no estrangeiro.280 Outras manifestações de revolta vão se suceder ao longo da história narrada por Kehinde, todas elas demonstrando o quanto é falsa, a noção disseminada de que todos os escravos aceitaram passivamente as condições que a escravidão lhes impingiu. Essa noção é desmentida também, pela reprodução de um acontecimento ocorrido já em solo brasileiro, refletida nas atitudes tomadas por um escravo, que ao ser recapturado depois de uma fuga, foi morto no caminho, por se rebelar contra um dos guardas do navio e atacá-lo a dentadas, única arma possível de ser usada por quem tinha mãos e pés amarrados, 281 compondo mais um episódio em que os fatos falam por si mesmos.
Ao desembarcar no Brasil, Kehinde é comprada por um senhor-de-escravos e de imediato entra em contato com as primeiras experiências sobre as ações do mané-gostoso, embora ainda não soubesse exatamente o significado daquela nova situação:
A sinhazinha me olhou com certo interesse, mas não retribuiu meu sorriso, provavelmente tinha me achado menos interessante e muito mais feia que os outros brinquedos, porque foi isso que a Esméria disse que eu seria para ela, um brinquedo, e era como tal eu deveria agir, ficar quieta e esperar que ela quisesse brincar comigo, do que ela quisesse. 282 [grifos meus]
Outro importante esclarecimento trazido por Um Defeito de Cor trata-se de um dos inúmeros mitos que cercam a vida dos escravos, em particular, e dos negros, em geral, no que diz respeito a uma pseudofalta de amor próprio que os caracterizaria. Nessa medida, o texto revela que esta ideia, de fato, é mais uma invenção do pensamento hegemônico, até mesmo com a intenção de manter, pela via da demonização, uma situação que lhe é favorável, perdendo a referência de que conceitos como os de beleza são de matrizes culturais. Por isso, Kehinde afirma que, olhando no espelho, “eu me achei linda, a menina mais linda do mundo e prometi que um dia seria forra e teria, além das roupas iguais às das pretas do mercado, muitas outras iguais à da sinhazinha”.283 Os acontecimentos evidenciam que a autoestima de Kehinde não se limita à esfera dos sentimentos pessoais, considerando que ela consegue exteriorizar essas sensações de valorização estética e até transferi-las, quando destaca qualidades do escravo Francisco, confessando que em sua visão,
os dentes eram das coisas que o Francisco tinha de mais bonitas. Lábios carnudos, mas não exagerados, e uma fileira de dentes muito brancos e muito certinhos, como se tivessem sido talhados um a um por grande artista.284
O texto dispensa um tratamento muito especial também, a uma questão nunca destacada nas discussões estabelecidas acerca da escravidão, quer nos de natureza estética ou não. Trata-se de uma curiosa relação que existia entre escravas e as esposas de seus proprietários, que, por um lado, revela a natureza egoísta, instável e ainda a falta de caráter das sinhás; e por outro lado, implica na astúcia e na inteligência das escravas que tiravam proveito da situação, revertiam um quadro de adversidades e o mantinham sob domínio, pelo tempo que bem lhes aprouvesse:
Dentro das casas, e de portas fechadas, também era grande o número de sinhás que apelavam para as mandingas das pretas, prometendo cortar as línguas delas se comentassem com alguém. [...] As pretas riam ao contar tais histórias, pois na maioria das vezes enganavam as sinhás, fazendo a mandinga errada ou então dizendo que precisavam de muito dinheiro para comprar determinados produtos de África, bastante caros em São Salvador. As sinhás, sem terem a mínima noção do que elas falavam e também por acharem que não era tanto dinheiro assim, do ponto de vista delas, davam o que as pretas pediam, sem saber que patrocinavam muita comida e bebida nos batuques pela cidade afora. A Antonia tinha inclusive ouvido falar de algumas pretas que enriqueceram, compraram a carta de alforria e viviam folgadas com o dinheiro que obrigavam suas ex-sinhás a pagar a elas, com chantagem ou ameaça de o feitiço se inverter, caso não fosse renovado. Os casos até que eram bastante simples; ou as sinhás queriam ficar pejadas ou fazer com que os maridos parassem de dormir com outras, principalmente com as escravas, ou que abandonassem o vício da bebida e do jogo, ou então que elas próprias não fossem descobertas em suas escapadas conjugais. Havia também alguns casos em que pediam cura de doenças já tratadas sem sucesso pelos doutores, ou mesmo meios de conseguirem mais dinheiro para comprar os vestidos e as jóias de que tanto gostavam. 285 [grifos meus]
É indispensável reconhecer que acontecimentos dessa natureza têm uma dimensão muito mais profunda do que em princípio parecem revelar. Senão vejamos: mais do que mostrar um lado resível da história, revelam uma das grandes idiossincrasias do Brasil, já tratada, inclusive, quando se abordou a questão dos adeptos da fé católica. Embora constituam, de fato, uma maioria neste país, percebemos que é bastante antiga, no seio dessa maioria, essa prática em buscar “alternativas”, quando as coisas, de alguma maneira não andam lá muito bem, seja em que terreno for, mas, principalmente, quando o terreno é o das relações amorosas. Como todos sabemos, a relação entre Igreja e família colonialista era bastante estreita, e a influência da Igreja na vida das famílias detentoras do poder, bem como a importância que essa mesma Igreja atribuía aos integrantes dessas famílias, tinha como principal causa o fato de padres serem frequentadores assíduos das Casas-Grandes. Em contrapartida, as famílias tinham lugares personalizados nos templos religiosos, da mesma forma que as Casas-Grandes possuíam suas próprias capelas,286 artifícios que formavam um todo comportamental que tão bem expressa a intensidade do grau de envolvimento e de comprometimento de uma relação espúria existente entre Igreja e família colonial. Não obstante a sua formação religiosa católica, ainda assim, elas se aventuravam a beber em outras fontes sempre que julgavam necessário, e dessa maneira, expunham uma parte significativa das vísceras da estrutura colonialista escravocrata, que nosso cotidiano mostra tratar-se de um expediente que ainda não desapareceu por completo dos modos de ser da sociedade pós- -moderna.
Prosseguindo nessa trilha, Um Defeito de Cor coloca com muita contundência uma questão relativa à mulher, no que diz respeito à exploração sexual e à falta de respeito pela condição humana, em geral, e pela feminina, em particular, considerando que esses fatos continuam acontecendo ainda hoje, e apresentam como prova maior de suas ações nos meios sociais, exatamente, o surgimento de dispositivos jurídicos que visam sancionar os agentes desse tipo de delito. Ainda menina mal saída da puberdade, Kehinde narra os assédios que passa a sofrer de seu proprietário, o senhor José Carlos:
Quando o sinhô José Carlos estava em casa, eu evitava sair da cozinha, ou pelo menos de perto da Esméria, desde o dia em que tinha me encontrado tirando o pó dos móveis na sala de jantar e pediu para ver os meus peitos. Eu não sabia o que fazer e fiquei quieta, fingindo não ter entendido direito. Ele então repetiu, mandando que eu levantasse a bata porque queria ver os meus peitos, e como eu não me mexi, ele mesmo a ergueu, usando a ponta da bengala. Elogiou, dizendo que eram muito bonitos, perfeitos. Isso eu também achava, e acredito que naquela hora, mesmo com o improvável da situação, eu me senti muito orgulhosa deles, que cresciam firmes e redondos como os da minha mãe. Eu tentava pensar nela e em como eu andaria com os peitos descobertos se ainda morasse em Savalu, enquanto ele passava a ponta da bengala pela parte descoberta do meu corpo, no meio dos peitos ou em apenas um deles, em volta do bico. Era uma sensação da qual eu gostava, mas não a ponto de deixar que ele percebesse, e senti raiva e nojo quando ele pediu que levantasse a cabeça e abrisse os olhos. Por sorte, o Lourenço apareceu na sala com um pesado tapete que tinha levado para bater o pó do lado de fora da casa. O sinhô José Carlos não se abalou, me repreendeu por alguma coisa qualquer e saiu em direção à porta da sala, reclamando que os pretos nunca faziam nada direito e chamando pelo capataz Cipriano.287
Estes são os primeiros passos dados pelo senhor José Carlos, no sentido de evoluir do assédio para o estupro que se vai concretizar, justamente pela contribuição prestada pelo capataz Cipriano, que é um escravo que se coloca a serviço de seu senhor. Cipriano desempenha a função de delator, de capitão do mato, de proxeneta intermediador de encontros amorosos entre o seu patrão e escravas, como fez com Kehinde, e de todo tipo de falcatrua que lhe trouxesse benefícios, ainda que causasse prejuízos aos seus iguais. Ele representa, enfim, a figura acabada do inocente útil − e da vítima duplamente vítima − engendrado pela escravidão para colocar em prática os serviços sujos forjados no seio dela.
É público e notório que a escravidão se esmerou no desempenho de aplicar castigos físicos dos mais cruéis que se possa imaginar, e, curiosamente, somos compelidos a partir do princípio que essas práticas punitivas eram sempre exercidas por homens. Nem sempre acontecia dessa maneira. Não raramente, as esposas que constatavam ou suspeitavam que seus maridos tinham relações sexuais com uma escrava, dela se vingavam, apelando para métodos de profundos requintes torquemadescos e draconianos, como os que foram aplicados pela esposa do senhor José Carlos, sinhá Ana Felipa, à escrava Verenciana, grávida de um filho de seu marido:
A sinhá se ajoelhou diante do oratório e rezou até que os homens aparecessem carregando a Verenciana presa pelos braços, quando então saiu para o quintal e parou na frente deles, olhando a preta de cima a baixo, sorrindo e perguntando se ela estava com medo, e por que não sentia o mesmo aos se deitar com o sinhô. A sinhá andava em volta dela, sempre insultando, e não se importava que nós estivéssemos por perto, olhando. [...] A Verenciana estava de pé, altiva, presa pelos braços, não falava nada, mas também não desviava os olhos dos olhos da sinhá. Ela era linda, alta, com um corpo que parecia cheio de curvas mesmo com a roupa larga. Tinha a pele lisa e castanha, os cabelos escuros e longos, pelo menos era o que mostravam os cachos que escapavam por baixo do lenço amarrado na cabeça. Muito mais jovem e bonita que a sinhá, e já dava para perceber que estava mesmo pejada, a barriga saliente sob a bata. A sinhá então se abaixou, meteu as mãos sob a própria saia, levantou-a até a altura do joelho e tirou uma faca que estava amarrada à bota. Uma faca pequena, mas a lâmina brilhava de tão afiada. A Esméria tentou falar com ela, implorando que largasse aquilo, por Deus, por São José, por todos os santos de devoção, que mandasse castigar a preta e pronto, mas que não sujasse as próprias mãos. [...] Parecia que no mundo dela, naquele momento, só existia ela, a barriga da Verenciana e a Verenciana, que não demonstrava medo, impassível, aumentando ainda mais a raiva da sinhá, que não parava de gritar palavrões que provavelmente nem o Tico nem o Hilário sabiam o que significavam.
Ninguém tinha coragem de se aproximar, pois, sem tirar os olhos da Verenciana, a sinhá apontava a faca para qualquer um que se mexesse, dizendo que o assunto era entre as duas, que não era para nos intrometermos, pois ali quem mandava era ela. Começou a passar a faca na barriga da Verenciana, dizendo que era muito triste para uma mulher não ver o filho entre os braços, e que Verenciana ia sentir isto na pele. Quando percebeu que o filho estava ameaçado, a Verenciana se transformou e, apavorada, começou a pedir clemência, pedir que a sinhá não matasse o filho ainda dentro da barriga dela, que o inocente não tinha culpa, que, se a sinhá deixasse, ela sumiria dali naquele instante mesmo e nunca mais voltaria para perturbar a vida de ninguém, e muito menos para se deitar com o sinhô José Carlos. A sinhá disse que sabia que a criança não tinha culpa e que apenas comentara que a mãe nunca veria o filho, e era isso que ia acontecer. Mandou que os homens segurassem a Verenciana com toda a força, arrancou o lenço da cabeça dela, agarrou firme nos cabelos e enfiou a faca perto de um dos olhos. Enquanto o sangue espirrava longe, a sinhá dizia que os olhos daquela cor, esverdeados, não combinavam com preto, e fazia a faca rasgar a carne até contornar por completo o olho, quando então enfiou os dedos por dentro do corte, agarrou a bola quem formava o olho e puxou, deixando um buraco no lugar.
A Verenciana, que primeiro tinha urrado de dor, desmaiou nos braços dos homens que a seguravam, e a sinhá deu ordem para que eles não a soltassem, que a mantivessem em pé. Examinou o olho arrancado, limpou o sangue no vestido e disse que era bonito, mas que só funcionava se tivesse um par. Fez a mesma coisa com o outro olho, guardando os dois no bolso, quando então disse aos homens que podiam levá-la e que não a deixassem morrer de jeito nenhum, porque ela tinha de saber o que significava sentir um filho crescendo dentro da barriga e depois não poder vê-lo, e também porque queria saber se o senhor seu marido ainda ia querer se deitar com uma preta sem olhos. Terminou ordenando que nenhuma palavra fosse dita ao sinhô José Carlos sobre aquilo, que ela mesma se encarregaria de contar. Então, como se nada tivesse acontecido, como se tivesse acabado de dar a mais simples das ordens, entrou em casa e se trancou no quarto. 288 [grifos meus]
Sem dúvida, esta é a passagem mais emblemática da principal característica do romance autobiográfico, Um Defeito de Cor, que é a que aborda com realismo e contundência, a essência de uma escravidão que se revela na expressão de fatos que falam por si mesmos.
É nesse ambiente que Kehinde vai crescendo, e já não mais menina, mas quase mulher, vai adquirindo maturidade, e nesse processo evolutivo começa a dimensionar com muita consciência, que a causa que vive não é apenas sua, mas, sim, do mundo em que se insere:
Apesar da pouca idade, acho que foi naquele momento que tomei consciência de que tinha de fazer alguma coisa [...] por todos nós que estávamos vivos como se não estivéssemos, porque as nossas vidas valiam o que o sinhô tinha pagado por elas, nada mais.289 [grifos meus]
E é essa consciência adquirida que faz com que ela comece a imprimir novos rumos a sua vida. Embora continue a viver no âmago de uma escravidão cada vez mais cruel, Kehinde já possui um domínio maior sobre a dimensão dos acontecimentos que cercam sua vida cotidiana e explora a capacidade que tem no sentido de buscar as mais diferentes formas possíveis de transformar uma situação que já não aceita mais.
A filha do primeiro casamento do senhor José Carlos, sinhazinha Maria Clara, para quem Kehinde fora comprada para servir de “companhia de brinquedo”, começa a receber aulas particulares. Kehinde lhe faz companhia nessas aulas e mostra interesse em aprender a ler e a escrever, o que acaba conseguindo, em virtude de um esforço despendido, de tal maneira, que desperta a atenção do professor Fatumbi, um muçulmano de quem Kehinde se torna amiga. Logo em seguida, Kehinde entra em contato com a Literatura de Gil Vicente, de Camões e por vezes “se distraía lendo sermões do padre Antonio Vieira e praticando a escrita”.290
Por conta dessa relação, Kehinde apresenta Fatumbi ao padre Heinz, um religioso não totalmente afinado com o pensamento da Igreja, e contando com a aliança de ambos, implanta um programa de instrução e crescimento de crianças escravas, o qual projeta um processo libertador que se possa concretizar, também, pela via da educação:
Como nem eu nem o padre Heinz tínhamos experiência em ensinar, falei com o Fatumbi, e ele aceitou ajudar por algum tempo, indo até a casa do padre duas tardes por semana. Assim que foram apresentados, os dois homens passaram a agir como se fossem amigos desde sempre, conversando horas seguidas. O Fatumbi me pediu que guardasse segredo, que não contasse a ninguém da loja e nem ao bilal Sali ou ao Ajahi, mas logo ele mesmo se traiu de propósito ao pedir a ajuda de todos, qualquer contribuição, para que conseguíssemos continuar servindo comida para o número cada vez maior de crianças que começaram a aparecer. Além de dinheiro, os muçurumins doaram também muitas lousas velhas, que já não serviam mais para o estudo do Alcorão ou para as mandingas, mas que ainda estavam em excelente estado para serem usadas nas aulas. O Fatumbi fez todos os planos de aula e ainda conseguiu improvisar cadernos com folhas de papel coladas umas nas outras, que as crianças adoraram. Era papel barato, do mesmo que as pretas usavam para embrulhar quitutes, que ele colava cuidadosamente, usando goma feita de farinha de mandioca. Eu o ajudava durante as aulas, prestando atenção para aprender como ele fazia, e logo assumi uma turma. Mas as melhores aulas só eu tinha o privilégio de freqüentar, que eram as conversas entre o padre e o Fatumbi, nas quais se falava de tudo, de livros a religião. 291 [grifos meus]
Kehinde e Fatumbi estão, de fato, dando consistência a uma das vertentes de um movimento revolucionário dos mais contundentes já acontecido no Brasil, a Revolta dos Malês, ocorrida na Bahia, em 1835. Embora malograda na consecução de seus objetivos finais, prejudicada que fora por motivos de toda ordem, − que o romance trata de forma detalhada −, o texto consegue mostrar que, nem por isso, a Revolta deixa de ser uma das mais importantes manifestações de descontentamento e de tentativa de reverter uma situação desfavorável, já empreendida pelos escravos negros no Brasil, sobretudo, porque, uma de suas metas era a de transformar a realidade social do negro pela via da revolução cultural.
Não obstante o insucesso da Revolta, Kehinde não esmorece, mesmo porque, sua trajetória de vida não lhe permite. A sucessão de ocorrências e o comprometimento que tem com a plenitude do viver são intensos. Seu primeiro filho, que recebe o nome de Banjokô, é fruto do estupro que sofre por parte do seu proprietário, o senhor José Carlos. Nesse caso específico, sinhá Ana Felipa não lhe arrancou os olhos, mas lhe arrancou o filho, que por ser um pouco mais claro em virtude de heranças genéticas paternas, ela o adota para si, afastando-o cada vez mais da verdadeira mãe, que, em contrapartida, canaliza todas suas potencialidades no sentido de evitar que seja consagrado o afastamento, maquiavelicamente engendrado por sinhá Ana Felipa.
Uma das estratégias utilizadas por sinhá Ana Felipa é comunicar a Kehinde que ela tinha sido alugada para uma família de ingleses e que, em consequência, “podia me despedir do meu filho, pois ele ficaria muito bem com ela, e que estava fazendo aquilo porque não podia se arriscar me mantendo por perto depois do que eu tinha feito”.292 Dessa forma, evidenciam-se as intenções de sinhá Ana Felipa em submeter Kehinde a um autêntico processo de distanásia, entretanto, Kehinde novamente se impõe diante das dificuldades que a vida mais uma vez lhe apresenta, vai trabalhar na casa dos ingleses e lá supera obstáculos e tira proveitos dessa superação. Na companhia dos ingleses, Kehinde aprende o idioma e se torna politizada, a ponto de tomar conhecimento de um ato tão importante para a vida dos escravos como o Bill Aberdeen, e sobre esse ato, numa das visitas que faz à casa de sinhá Ana Felipa para rever o filho, comenta com um dos escravos “que os ingleses estão do nosso lado, não importando com que intenção”.293
A construção e o crescimento do capital intelectual de Kehinde se manifestam de forma tão evidente que suscitam comentários daqueles que a conhecem de outras oportunidades, convindo destacar o fato de que ela própria tem consciência desse novo estágio pelo qual passa:
Todos me acharam diferente e disseram que não era apenas por causa do corte de cabelo e do vestido, mas que eu estava com aparência de menina mais nova e jeito de mulher mais velha, mais séria e instruída, quase estrangeira. Eu também achava que estava mudando, e muito, na companhia dos ingleses. Tanto que, com o passar de alguns meses, eu já estava achando insuportáveis aquelas visitas que fazia à casa de sinhá, onde ninguém sabia conversar de outras coisas que não fossem lembranças de África ou da fazenda. 294
Com o passar dos tempos, Kehinde consegue reaver o filho Banjokô, dá novos rumos a sua vida e casa com Alberto, um homem de negócios, branco, viajante, com quem ela passa a ter uma vida, economicamente estável, mas que, ainda assim, não se livra dos seus problemas sociais, simplesmente, porque não se livra da condição de negra. Aliás, adquire outros, justamente por ter-se casado com um homem branco.
A nova vida que a condição de ex-escrava propicia a Kehinde, não mitiga nem neutraliza sua consciência sobre a realidade da própria situação, bem como sobre a dos escravos. Pelo contrário, para lutar com mais firmeza ela passa a buscar informações na área jurídica, para conhecer os direitos do escravo quanto à posse de bens, posição que dimensiona com exatidão nas palavras ditas pelo advogado José Manoel, que a alertara de que, naquela conjuntura, o escravo continuava a ser “uma coisa pela qual o dono dele pagou e que, portanto, tudo o que ele tivesse também pertenceria ao dono. Inclusive, um escravo nem ao menos se pertencia. Não era dono das suas vontades, de sua vida, de nada, quanto mais de bens”.295 Cada vez mais, os conhecimentos adquiridos por Kehinde levam-na a descobrir facetas da escravidão, que normalmente são omitidas pelo discurso histórico, principalmente, quanto a questões relacionadas à historiografia de caráter oficial. É ainda o mesmo doutor José Manoel que, ao orientá-la sobre questões relacionadas a possíveis direitos dos escravos, confirma a existência dos acontecimentos que o historiador Frederico Burlamaque relata sobre o projeto que o Brasil engendrou para expulsar escravos livres.296 Como insiste na tese de que os escravos têm direitos, o advogado lhe esclarece que até certa época era permitido ao escravo possuir bens “mas depois que foi feita a lei, naquela época em que queriam expulsar do Brasil todos os africanos livres, nenhum bem poderia ser colocado no nome do escravo”. 297 [grifos meus]
Ainda referenciando as contribuições trazidas pela linguagem literária de Um Defeito de Cor é interessante fazer o destaque de uma questão, que não só a historiografia oficial omite, assim como este país como um todo prefere não tratar, ainda que seja numa conversa amistosa. É o caso das benesses proporcionadas pelo governo brasileiro a estrangeiros, particularmente, na doação de terras para os imigrantes. Essa questão também já recebeu aqui o devido tratamento sob o viés histórico, contudo, ao fazê-lo da forma que faz, o texto de Ana Maria Gonçalves presta uma grande contribuição à Literatura e ao pensamento brasileiros, fazendo aflorar a verdade dos fatos:
O Jacinto contou que a cidade estava crescendo bastante, principalmente depois que começaram a surgir muitas plantações de café nos arredores, onde moravam alguns estrangeiros. Mas eram estrangeiros diferentes, não apenas de Portugal ou de passagem, como nos outros lugares, mas muitos deles estavam ali para morar, junto com suas famílias, em terras doadas pelo governador da província. Eles eram muito engraçados, principalmente os da Alemanha, que o governo pensou que poderiam substituir os pretos nas lavouras. 298 [grifos meus]
As referências feitas por Kehinde são incontestáveis e trazem para o plano da reflexão, uma situação que deveria integrar a pauta das discussões de problemas da esfera social, que ainda hoje, tanto nos afligem.
Da união com Alberto, Kehinde dá à luz outro filho, Omotunde, razão de ser do romance Um Defeito de Cor. É este o filho que o pai resolve vender, quando o casamento e os negócios começam a entrar em derrocada e a bebida passa a ser sua válvula de escape na tentativa de conseguir conviver com uma situação marcada por adversidades.
Com o desaparecimento de Omotunde, Kehinde começa a viver sua via-crúcis na busca desenfreada de encontrá-lo, desenvolvendo um trabalho de fôlego através de uma luta incessante, procurando-o em todos os pontos de venda de escravos das principais cidades do país. Depois de anos de incursões resultarem numa luta inglória e infrutífera, Kehinde viaja de volta à África e retoma sua vida como empresária da construção civil. Mesmo vivendo na África e desempenhando uma atividade economicamente lucrativa, Kehinde jamais esquece o filho, e a esperança de encontrá-lo se vislumbra depois de tantos anos, no momento de seu retorno para o Brasil, agora já aos oitenta e seis anos de idade, a bordo de um navio que a traz de volta e que lhe serve de palco de reminiscências que faz, e, por carta, relata ao filho, com a ajuda de Geninha, uma espécie de copista, pois Kehinde está praticamente cega:
Você pode dizer que estou fazendo isso agora, deixando tudo escrito para você, mas esta é uma história que eu teria te contado aos poucos, noite após noite, até que você dormisse. E só faço assim, por escrito, porque sei que já não tenho mais tempo. Já não tenho mais quase tempo algum, a não ser o que já passou e que eu gostaria de te deixar como herança. 299
A partir de então, o leitor do romance percebe que está lendo uma narrativa em flash-back e, simultaneamente, do ponto de vista teórico, o texto assume uma expressiva transformação, porque leva o leitor a dimensionar a narrativa sob diversificados ângulos de leitura. Numa dimensão do texto resultante deste recurso técnico, torna-se indispensável trazer para reflexão um episódio já examinado, que, no entanto, se faz novamente decisivo como uma das causas mais relevantes tratadas pela tessitura dessa narrativa, mesmo porque é a condição que dá nome à obra. Essas discussões convêm ser retomadas porque, de fato, apresentam contribuições consistentes para uma linha de raciocínio indicada como clímax das discussões propostas.
Na iminência de perder, de forma inapelável, o filho Banjokô para a senhora Ana Felipa, que em consequência da viuvez havia manifestado o interesse em se mudar em definitivo para a corte e levá-lo consigo, Kehinde se vê diante de uma situação de grande insegurança, de grande preocupação, e numa conversa consigo mesma revela fatos que falam por si sós:
O Banjokô vivia muito bem na casa da sinhá, tinha boas roupas, um bom quarto, brinquedos, comida à vontade, horários certos para comer e dormir, estava aprendendo a tocar piano e a sinhá tinha grandes planos para ele, como colocá-lo para estudar assim que ficasse um pouco mais velho. Por outro lado, eu era a mãe dele, não ela. Ela sempre seria a dona, impondo sua vontade, fazendo dele o que bem quisesse e não o que ele pudesse vir a querer de fato. Eu não me espantaria se, na corte, ela o mandasse estudar para ser padre, apoiada pelo padre Notório, achando que o Banjokô deveria ficar agradecido por seguir tão nobre carreira. Com a influência do padre Notório, ela logo conseguiria para ele uma dispensa do defeito de cor, que não permitia que os pretos, pardos e mulatos exercessem qualquer cargo importante na religião, no governo ou na política.300 [grifos meus]
Não obstante a clarividência extrema dos fatos expostos por Kehinde, a dimensão deles requer que sejam tecidos comentários a seu respeito, e nesse aspecto, a noção que não se pode perder de vista é exatamente a transcendência deles e as implicações advindas dessa condição. Nessa perspectiva, Um Defeito de Cor revela que naquela conjuntura social, um defeito de cor era algo plantado no imaginário da elite branca dominante que, de cima da sua autossuficiência e norteada por seus habitus, arvorava-se de possuir pseudodireitos e pseudopoderes que lhe autorizavam a transformar negros em não-negros, sempre que esta condição viesse a atender um ou outro dos seus interesses. Portanto, na minha forma de ver, a instituição da dispensa do defeito de cor implica, pelo menos, em duas transcendências e duas consequências imediatas e inevitáveis. A primeira delas diz respeito à depreensão que os fatos permitem fazer sobre o caráter de um dispositivo chamado carta de alforria e concluir o quanto este recurso foi uma farsa. A segunda revela que o artifício do defeito de cor, na mesma dimensão dos demais mecanismos de coerção e de cerceamento impingidos aos escravos negros é, de fato, a demonstração explícita dos abusos amparados pelos efeitos da cor da elite dominante. As ações conjuntas de ambos comprovam que na conjuntura social brasileira colonialista, para se obter respeito à condição humana não bastava ser livre: era imprescindível ser branco.
Este episódio é retomado por ter sido eleito como um dos mais emblemáticos da obra, no sentido de concentrar na sua essência, elementos que de forma mais abrangente reproduzem o movimento geral da sociedade e da sua história. Nele, não só deparamos com perspectivas históricas, no que diz respeito a uma cronologia pretérita, mas, ainda sob o aspecto cronológico, ele se impõe como referência de comportamentos sociais contemporâneos. Esses mesmos fatos continuam entranhados nas pessoas e no cotidiano delas, atualizados e travestidos que são em novas versões e novas performances. Ao contrário do que muitos pensam, acontecimentos dessa natureza não ficaram retidos lá no longínquo século XIX. Eles perpassaram os tempos e continuam bastante atuais, principalmente no que se refere à relação entre coisa instituída e prática social, ou seja, também na atualidade, o negro continua esbarrando em facticidades que a teoria já não mais sustenta. O fato de a sociedade de hoje contar com dispositivos legais que desautorizam práticas preconceituosas e discriminatórias, não necessariamente, inviabiliza a inexistência delas nas relações sociais cotidianas. Como exemplo desta assertiva, cito situações enfrentadas com frequência por empregadas domésticas negras, quanto ao uso de elevadores sociais em condomínios de luxo. Nenhum deles, declaradamente, as proíbe de usá-los, entretanto, repetidas vezes, tomamos conhecimento de notícias que mostram reações contrárias e agressivas deste ou daquele condômino.
A elite branca dominante continua a insistir no seu intento de conferir a esse quadro, o sentido que lhe convém. Ela continua convicta de que, não só pode transformar negros em não-negros, como continua a ter certeza, também, de que, se lhe for conveniente, pode erradicar a negritude no país, como nos demonstram notícias mais recentes.
Pesquisas de laboratório realizadas em algumas personalidades negras − artistas, cantores, atletas, entre outros − como Sandra de Sá, Neguinho da Beija-flor e a ginasta Daiane dos Santos, só para nomear alguns, mostram que muitos dos analisados têm, em média, elevados percentuais de herança genética próprias de europeus. No caso específico do Neguinho da Beija-flor, seu percentual genético é de 67,1%, havendo casos de negros que ultrapassam a casa dos 70%.301
Os responsáveis por essas pesquisas são simpatizantes dos ideais de branqueamento embutidos nelas, e procuram fazer dos resultados, plataforma para, cientificamente, sustentar e vender a ideia de que, em se tratando de Brasil, de repente, descobrimos que somos todos brancos. O que de fato se revela, com isto, é um abespinhamento desenfreado em ícones da elite branca dominante deste país, na defesa da tese de que no Brasil não há negros nem brancos. Sustentado-se na ideia de que intelectuais negros estariam adotando novos discursos e novas práticas sociais, contrárias e danosas a essa tese, essa mesma elite quer convencer a todos de que, o sucesso do pensamento construído por expoentes dessa intelectualidade, levaria a sociedade a correr riscos de ter de conviver com um binarismo, que de forma perigosa, dividiria o Brasil em negros e brancos.
Caro leitor! Meus argumentos não apresentam dados estatísticos, demonstrativos numéricos, tabelas de levantamentos quantitativos, nem qualquer outra modalidade de representação numérica ou percentual. Nada contra! Muito pelo contrário é enorme o respeito que nutro pela importância dos números. Não obstante, devo dizer que entendo que a exatidão dos números revela apenas amostras, sintomas, aspectos e partes de um universo examinado. Jamais a essência dele, a menos que a pesquisa incida sobre o todo, condição que no caso do assunto em tela, é inexequível, porém, imprescindível à obtenção de comprovações consistentes. Assim sendo, à exatidão dos números prefiro raciocinar com a diversidade dos fatos do cotidiano, com a riqueza embutida neles e problematizar o tratamento que a História e a Literatura lhes dispensam. Prefiro priorizar situações em que todos nós, em alguma medida e através de algum comportamento prático, contribuímos para construir e até desconstruir, e por isso, aposto na sua capacidade de observá-las com diligência.
Saiba você, leitor, que não tenho respostas prontas nem soluções mágicas para problemática de tão grande envergadura. Muito menos tive, ao longo da apresentação das ideias que defendi, a pretensão em pensar de uma forma simplesmente denunciante e conclusiva, mas tive, sim, a intenção de trazer para sua reflexão, fatos da natureza dos que foram apresentados, que, certamente, ocorrem na sua rua, no seu bairro, na sua cidade, ou quem sabe, até mesmo no interior do seu próprio lar. Não importa onde eles aconteçam. O que importa é a existência deles, o prosseguimento da existência deles e a responsabilidade que todos temos na produção e nas ações deles.
Ao explorar Um Defeito de Cor e Emparedado, espero produzir reflexões, não somente sobre a essência dessas obras, mas, sobretudo, na relação delas com fatos históricos e com a predisposição com que textos estéticos se envolvem com a trajetória traçada pelo negro ao longo da história do Brasil. Para tanto, considero imprescindível perceber o tratamento amplo e diversificado que ambos dispensam à matéria, assim como necessário se faz perceber, também, o reducionismo dos demais textos literários no tratamento da mesma matéria. Dentro dessa linha de raciocínio, verificamos que, se por um lado, os demais textos literários, pela superficialidade narrativa repercutem predisposições ideológicas do discurso histórico, por outro lado, estes dois textos são representantes acabados das possibilidades de criticar um mundo que, quando lhe convém, se divide em branco e preto e tem como principal etiqueta, a capacidade de engendrar categorias que giram em falso.
É bem possível que o leitor esteja intrigado, pelo fato de estar se aproximando do final de sua leitura e ainda não ter deparado com um texto da pós-modernidade, incorporado ao corpus literário com o fim de representar esta cronologia, atendendo ao que o título do livro antecipa. Neste aspecto, informo ao leitor que, também com este fim, recorri a Um Defeito de Cor, pela sua capacidade de modelar a representação pelo oposto dialético, e nessa perspectiva, ser o grande diferencial na missão de representar de forma cabal, pela oposição, tudo o que representam os textos literários produzidos na pós-modernidade.
Nessa perspectiva, Um Defeito de Cor se configura como referência contrapontística de textos que constituem uma espécie de narrativa em espelho do pensamento brasileiro. Ele é representante de uma forma de ver e pensar que não se deixa enclausurar pelos limites rígidos das disciplinas e das imposições acadêmicas, − e por vezes academicistas −, e pelo seu desdobramento literário, impede que o conservadorismo se transforme em arquétipos eternos.
Conforme já frisado anteriormente, ao imergir nos propósitos em relevo, o objetivo não foi o de enfocar questões ontológicas. O que se pretendeu, sim, foi mapear estratégias discursivas tidas como soberanas, e demonstrar que elas serão tanto mais ricas quanto mais tiverem ao seu lado, outras formas que se desenvolvam de maneira a fazer perceber, que as manifestações dessa natureza devem ser produzidas, também, a partir de uma valoração que deve ser atribuída a perspectivas diversas. Somente por meio dessa predisposição é que, possivelmente, venhamos a ter um conceito de vida e arte que contemple uma visão de campo mais amplo.
Perspectiva histórica é registro, é memória, e o texto literário que caminha nessa mesma direção, também precisa sê-lo, tomando por base o emprego de todas as suas possibilidades discursivas, e não, fazê-lo a partir do privilégio de uma postura seletiva. E nessa conjuntura, Um Defeito de Cor muito mais do que descrever a odisséia de Kehinde é, em grande medida, a expressão de um pensamento que apresenta uma visão e provoca a iluminação de uma experiência humana do mundo.
Pelos mesmos motivos da prosa poética Emparedado, o romance Um Defeito de Cor foi eleito como referência de abordagem contrapontística, tão desprezada nos textos que contemplam a presença de personagens negros. Juntos, esses dois textos são uma prova inconteste de que é consistente a viabilidade de se dispensar por esse tipo de produção literária, os mesmos princípios de criatividade, tensão e desprendimento encontrados nos textos de Literatura, em geral. Em momento algum, os graus de literariedade dessas duas obras foram minimizados, pelo fato de seus personagens negros serem dotados de discurso direto, de senso crítico ou de tratarem a realidade do cotidiano, sem adornos. É esta capilaridade da Literatura revelada por Emparedado e por Um Defeito de Cor que tenho a sensação de não se pronunciar na sua plenitude, nas oportunidades em que o fazer literário é chamado a intervir na produção de artefatos que focalizam personagens negros. Esta condição é sine qua non no processo de criação literária, e na minha maneira de avaliar, a prescindência dela na composição do húmus estruturante da tessitura de um objeto estético, leva a Literatura a claudicar no seu mister de fraturar o mundo e procurar reconstruí--lo a partir da exploração do belo.
***
Notas
254 White, Trópicos do Discurso, p. 139.
255 White, Trópicos do Discurso, p. 115.
256 Id. ib.
257 Camões, Os Lusíadas, p 60.
258 Cruz e Sousa, Emparedado, p. 658.
259 Id. ib.
260 Cruz e Sousa, Emparedado, p. 660.
261 Id., ib.
262 Cruz e Sousa, Emparedado, p.660.
263 Id., p. 661.
264 Cf. White, Trópicos do Discurso, p. 14.
265 Cruz e Sousa, Emparedado, p. 661.
266 Cruz e Sousa, Emparedado, pp. 661-662.
267 Cruz e Sousa, Emparedado, p. 669.
268 Id., p. 671.
269 Cruz e Sousa, Emparedado, p. 671.
270 Id., p. 672.
271 Cruz e Sousa, Emparedado, p.672
272 Cruz e Sousa, Emparedado, p. 673.
273 Gonçalves, Um Defeito de Cor, p. 437.
274 Id., p. 9.
275 Do ponto de vista etimológico, o termo drama vem do grego e significa ação, sem que obrigatoriamente essa ação implique movimento ou atividade física. O silêncio, a recusa em agir, a omissão e outros elementos semelhantes apresentados dentro de um certo contexto também funcionam como recursos dramáticos.
276 Cf. Aristóteles, Arte Poética, pp. 310-311.
277 Adorno, Teoria Estética, p. 277.
278 Gonçalves, Um Defeito de Cor, pp. 46-50.
279 Gonçalves, Um Defeito de Cor, pp. 46-47.
280 Id., p. 51.
281 Gonçalves, Um Defeito de Cor, p. 158.
282 Id., p. 78.
283 Id., p. 87.
284 Gonçalves, Um Defeito de Cor, p. 230.
285 Gonçalves, Um Defeito de Cor, p. 290.
286 Veja lado esquerdo da Casa-Grande no Anexo à página 324.
287 Gonçalves, Um Defeito de Cor, p. 152.
288 Gonçalves, Um Defeito de Cor, pp. 105-106-107.
289 Gonçalves, Um Defeito de Cor, p. 144.
290 Id., p. 211.
291 Gonçalves, Um Defeito de Cor, p. 293.
292 Gonçalves, Um Defeito de Cor, p. 212.
293 Gonçalves, Um Defeito de Cor, p. 220.
294 Id., p. 221.
295 Gonçalves, Um Defeito de Cor, p. 696.
296 Cf. subitem 2.6, Fatos velados pela História.
297 Gonçalves, op. cit., p. 696-697.
298 Gonçalves, Um Defeito de Cor, pp. 717-718.
299 Gonçalves, Um Defeito de Cor, p. 617.
300 Gonçalves, Um Defeito de Cor, p. 337.
301 Revista Veja, ano 40, nº 22, pp. 82-88.