Ao finalizar as abordagens sobre as situações mapeadas pela pesquisa que me propus a desenvolver, fica a expectativa de ter realizado um trabalho capaz de contribuir com o universo acadêmico como um todo, e de forma mais objetiva, com os planos da Teoria Literária e da Literatura brasileira. Da mesma forma, embora com menor percuciência, persiste a pretensão de contribuir com a Sociologia, a História do Brasil e a própria Antropologia, além de apresentar elementos capazes de subsidiar, em considerável medida, as formas mais sistêmicas de pensar nosso cotidiano, do ponto de vista das relações sociais que nele desenvolvemos, independentemente de qualquer condicionamento acadêmico.
Em momento algum, tive o propósito de fazer, como penso que não fiz, uma obra de historiografia, considerando que os dados reunidos e apresentados não são sistemáticos; no entanto, a despeito dessa condição, os dados referidos foram suficientes para me convencer, e, espero, convencer também ao leitor, de que as discussões são muito mais amplas quando o assunto em pauta se encontra, predominantemente atrelado à figura do negro, numa conjuntura social que tem como pano de fundo, o Brasil. A falta de predileção pela preponderância historiográfica encontra razão de ser, também, na determinação maior que tive em trazer para o plano do debate, questões atuais que têm o seu caráter controverso, sedimentado, justamente, pelo quase absoluto desinteresse que sempre temos, em inseri-las na planilha que concentra as discussões de nossos principais problemas, contemplados que devem ser pela ordem do dia. Entretanto, o motivo que, naturalmente, determinou que a linha historiográfica não pudesse ser o fio condutor do trabalho foi o fato de que, as questões que tinha por meta trazer para o campo das discussões, serem objetos de uma realidade que, embora tenha a sua origem nos idos do Brasil-colônia, aí está, atuante, de forma cada vez mais contundente. Portanto, são questões que perpassam o Brasil, da sua versão rural à urbana, da vida colonial à pós-moderna, e tendem a se tornar cada vez mais decisivas entre nós, quanto mais tivermos que conviver com as implicações que nos são impostas pelas relações sociais desdobradas no cotidiano, sobretudo no cotidiano dos grandes centros.
A opção pela análise comparada entre discurso histórico, − considerado como prioritário entre os de teor não-estéticos −, e discurso literário advém da importância que o discurso histórico assume em nossa formação cultural, no que diz respeito a uma maneira mais objetiva e até mesmo mais pontuada de olharmos para o país. Nessa perspectiva, o discurso histórico, por via de regra se nos apresenta como a primeira referência, a mais imediata, a de mais fácil acesso, e conforme destacado ao longo das discussões apresentadas por este livro, a de interpretação menos embaraçosa. Como se não bastasse, o discurso histórico conta ainda com o auxílio de outras modalidades de informações discursivas, como as proporcionadas pelas mídias, em seu sentido mais abrangente, ou mesmo pelas inevitáveis contingências próprias do cotidiano. É evidente que essas características não inviabilizam e nem minimizam a qualidade da proposta histórica, mas é indiscutível, que, nela, o historiador fala pelos fatos, fala em nome deles e molda os fragmentos do passado, num todo, cuja integridade resultante ocorre pela atitude discursiva. À proporção que o historiador assim atua, consagra-se a impossibilidade de que os acontecimentos possam se expressar, também de outros modos, como só a linguagem literária consegue viabilizar.
No caso em questão, à medida que o discurso de natureza não-estética representa o desenvolvimento de linhas de raciocínio e de tratamentos históricos, que com frequência, procuram preservar opiniões e pensamentos hegemônicos, ele se revela como poderoso instrumento de expressão, disponível a serviço da manutenção dos anseios e dos interesses próprios de uma classe que há séculos detém o domínio da situação política, social, econômica e ideológica do país. E é em consonância com essa conjuntura preservacionista que o texto literário se apresenta, e nesse sentido, ele se faz coparticipante da proposta de dispensar ao personagem negro, tratamentos semelhantes aos encontrados nas páginas dos textos de natureza não-estética.
É pelas ações desses elementos coincidentes que o estudo comparativo entre obras de natureza variada se justifica, exatamente porque, nesse aspecto, a Literatura adota um comportamento contraditório, partindo da premissa que, em seu desdobramento, ela deixa de utilizar um dos seus principais atributos, que é seu compromisso de expressar a realidade através de maneiras multifacetadas e polissêmicas. Assim sendo, neste particular, o texto literário iguala-se aos demais e passa a ser mais um veículo de disseminação de uma visão unívoca e equivocada de mundo, e através desse processo, contribui para a manutenção do establishment.
Nas relações sociais pós-modernas é visível que o negro ocupa um espaço mais dignificante, como jamais ocupara em qualquer outro momento de sua história; no entanto, apesar da importância dessa presencialidade, o discurso literário insiste em se manter inalterado. A grande prova de que essa evolução começa a se revelar são as reações da classe dominante, no sentido de se sentir ameaçada por um avanço do homem negro, que apesar de incipiente, é factual nos mais diferentes segmentos sociais. Essa inclusão que por parte dos negros começa a se fazer presente no cotidiano, em contrapartida, engendra enormes dificuldades de sua assimilação nos meios sociais, por parte da classe dominante, e, embora esta inserção seja uma realidade prática, o universo literário continua a dispensar pelo personagem negro, os mesmos tratamentos dispensados pela Literatura de outrora, em especial no que diz respeito ao quesito invisibilidade.
São pouquíssimas as manifestações que a Literatura brasileira nos oferece como referências de tratamentos que se insurgem contra um status quo literário, e entre elas o destaque recai sobre Emparedado, de Cruz e Sousa e Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves. No que concerne ao comprometimento estético, tratam--se de dois momentos muito especiais da Literatura brasileira, sobretudo, como referências de contraponto, a carência maior de textos literários que tratam de questões históricas envolvendo o negro. Nessa linha de atuação, Emparedado e Um Defeito de Cor, em importante medida, contemplam conteúdos e comportamentos estéticos por meio dos quais se impõem como obras heteróclitas e revertem um quadro hegemônico de produção existente no âmbito da Literatura brasileira, e do próprio pensamento brasileiro. Nelas, o leitor tem acesso a tratamentos mais tensos e mais questionadores, a problematizações da realidade das relações entre senhores e escravos e entre negros e brancos, criando condições que minimizam as possibilidades de formação de uma visão reducionista de mundo.
Nessa perspectiva, ambas transcendem condições puramente literárias e se consagram como obras emblemáticas dessa postura. Pelas técnicas utilizadas, configuram efeitos práticos representantes da necessidade urgente que este país tem, em procurar redimensionar formas de discutir fatos históricos que, ainda que não queiramos admitir, são imprescindíveis na composição de processos analíticos que nos ajudem a entender nosso presente e a projetar formas de pensar nosso futuro. Em sua plenitude, as contribuições trazidas por essas duas obras denunciam, claramente, que os insucessos resultantes das tentativas empreendidas, no sentido de entender nosso presente e de pensar nosso futuro, apresentam como causa, o fato de nós brasileiros não sermos nem humildes, nem francos, nem honestos, quando olhamos no espelho e divisamos os sina-is característicos do nosso passado.