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É preciso estar desesperado, para recorrer ao seu velho mundo para ter um mínimo de confirmações. Joachim sobe as escadas da sede da grande casa editora, cruzando-se com atarefados redatores e jovens estagiários mal pagos dispostos a fazer e a dizer seja o que for para perseguir o sonho de um emprego na indústria livreira. Este é o mundo do qual Joachim fugiu. O de Ellen. Um mundo que tem uma linguagem própria, códigos próprios, um universo em que só importa quem tem um lugar seguro e quem fica de fora. Joachim dirige um sorriso a um dos veteranos da redação, que não retribui e se limita a um gesto discreto. É, sem dúvida, um sinal: Joachim não é suficientemente importante, nunca fez parte do círculo que... bem, do círculo, e basta. Nisso, Ellen era muito melhor. Uma campeã. Ela, sim, conhecia a linguagem do setor. E agora, enquanto atravessa o grande edifício, regressam as memórias. Joachim tinha congeminado um pequeno truque. Sendo que não havia maneira de perceber quando Ellen dizia a verdade e quando mentia, ao fim de uns anos ao lado dela começou a estar atento à sua maneira de se exprimir e notou uma pequena diferença de velocidade. Habitualmente, Ellen metralhava furiosamente e dava respostas concisas, muitas vezes agressivas, mas quando mentia abrandava o ritmo. Não muito, mas o suficiente para lhe permitir entender que, para saber a verdade, tinha de se dirigir a outro lado.

Vários rostos familiares levantam os olhos mas ninguém o cumprimenta, e ele já sente o estômago contrair-se. Não entende a linguagem do setor. Não porque os seus livros não vendam, aliás, normalmente é o contrário. Se um autor vende mais do que algumas centenas de exemplares, ou mesmo alguns milhares, quer dizer que alguma coisa não funciona. Essa é uma das poucas coisas que Joachim aprendeu. É uma espécie de equação matemática: se um leitor se considera uma das poucas pessoas no mundo a ter bons gostos literários, não vai apreciar aquilo que agrada a muitos, porque isso significaria ter os mesmos gostos da maioria, e portanto não ser um dos poucos eleitos. Dito assim é simples, mas torna-se complicado quando se consideram os efeitos sobre certas coisas: quem cumprimenta quem, quem não é considerado digno de um olhar, quem é objeto de conversas malignas, quem pode aparecer ao lado de quem num evento público, quem vai de férias onde... em suma, sobre tudo.

Entra no gabinete. Gudrun está em pé, no meio da sala, com um monte de papéis na mão. Os papéis de Joachim. Tem o mesmo aspeto de sempre: ancas largas, cabelos negros, segura de si.

– O meu escritor preferido! – exclama, com um sorriso. Depois, após um abraço longo e afetuoso, pergunta-lhe se se sente bem no apartamento.

Conhecem-se há uma vida. Gudrun sempre trabalhou aqui, desde o tempo em que ele era ainda uma jovem promessa, na crista da onda. E agora, que epítetos lhe afivelam? Gudrun ainda acredita nele, mas por algum motivo lhe escreveu naquele e-mail: Ohhh, agora sim, agora é que se raciocina! E agora que se encontram pessoalmente, ele gostaria de se esquivar àquela vergonha. É um pobre mentecapto solitário, que perdeu a sua amada e há semanas que não escreve uma linha que não seja para o cesto dos papéis. No computador não fez mais do que fuçar no Google à procura de fotografias de Helene Söderberg e encontrar o endereço ligado ao número de telefone anotado na base de cartão: uma loja de máquinas fotográficas em Algade. Já explicou à polícia, a Iben Hansen Hansen, que ao fim e ao cabo não era Peter do Ministério do Interior, mas Gorm da Algade Foto. Procurou-o na Internet e encontrou um site manhoso, que anunciava ofertas de equipamentos fotográficos em segunda mão, todos do milénio passado. Iben disse-lhe que ia transmitir a informação a quem competia, mas Joachim captou perfeitamente aquele tom divertido: as forças da ordem não estão interessadas, tomaram-no por um destrambelhado. Acima de tudo, a bela Helene foi encontrada. Em relação a Louise Andersen, pelo contrário, estão-se todos nas tintas. Todos menos Joachim, o único a sentir a sua falta.

Gudrun desfaz o abraço.

– Então, fala-me deste livro. Estou curiosíssima.

Instala-se numa das duas poltronas cor de vinho enfiadas no canto ao lado da janela. Joachim senta-se na outra, pousa as mãos nas coxas e sente o desespero a abrir caminho dentro dele. É inútil olhar para aquelas estantes com todos os livros que Gudrun publicou durante estes anos. Enquanto ela serve o café, o olhar de Joachim detém-se durante demasiado tempo sobre um dos volumes acabados de sair, O sistema, um grande sucesso mundial sueco, quinhentas páginas sobre Lineu. Vira o livro para ler o texto da contracapa, que fala da estadia de 1735 em Haarlem, durante a qual o grande naturalista escreve o Systema naturæ, treze páginas que mudaram a conceção humana do mundo. O romance é um carrossel de erudição e efabulação, e parte de 1666, quando em Stavanger a trisavó de Lineu foi queimada na fogueira por feitiçaria, para chegar aos mais restritos círculos da Europa iluminista, onde a queda da religião marca o nascimento de uma nova era. Por um instante, Joachim não consegue decidir se todas aquelas estrelinhas na sobrecapa serão uma tentativa de representar o firmamento holandês ou se realmente o livro terá obtido tanto sucesso junto da crítica.

Volta a erguer os olhos e Gudrun sorri. Joachim não tem nada, nem sequer treze páginas, quanto mais quinhentas. Não tem nada para contar, tirando o facto de ser um falhado, abandonado a si próprio. E agora vai ter de admitir que uma pequena parte dele esperava poder ainda aspirar a Gudrun. Houve um período em que ela estava interessada. Até se insinuou, numa festa da empresa de há uns anos, mas ele repeliu-a com elegância e delicadeza, e desde então sempre fizeram de conta que não tinha acontecido nada. Já nessa altura ela tinha um casamento feliz e, tanto quanto ele sabe, ainda tem o mesmo marido. Mas daquela vez estava disposta a renunciar a tudo por ele. Joachim vê-se a si mesmo de fora. Constantemente. De manhã até à noite, é dolorosamente consciente de si mesmo. Ou seja, de Joachim sem Helene. Um zero. Gudrun começa a lançar uns olhares às pilhas de folhas em cima da secretária: Joachim tem de lhe dar alguma coisa. Pode ocupar este lugar no mundo, mas só se produzir alguma coisa.

– Romantiquices à discrição, um grande amor infeliz. Agora já não tenho constrangimentos, estou a cimentar-me numa coisa gigantesca.

Gudrun ri com um ar trocista.

– Mas também há um mistério, uma pessoa desaparecida – prossegue Joachim. – Há uma mulher, Louise Andersen, que desaparece e depois volta a aparecer, mas no fim percebe-se que é uma outra pess... – Detém-se. Está a dizer um monte de disparates.

Mas Gudrun parece genuinamente interessada.

– E então? Continua! As páginas que me mandaste são ótimas, vê-se perfeitamente que tens material de primeira ordem.

– Eh... – Joachim tenta lembrar-se do que contou naquelas folhas. Mandou tudo aquilo que tinha tido tempo para escrever naquela manhã, antes de Edmund irromper na cafetaria. Ou seja, as páginas que não apagou. Nem sequer se consegue lembrar de quantas são. Só tem uma coisa em mente: o rosto de Helene quando lhe disse adeus em frente ao restaurante.

Gudrun folheia novamente os papéis e continua, entusiasmada:

– Até sinto aqui o cheiro de um lançamento de verão. Saímos em junho? Se nos empenharmos todos nisso, é possível.

Lança-lhe um olhar de entendimento. Sabem do que falam, conhecem o mundo editorial. Uma publicação no verão significa que o romance deve ter uma prosa ligeira, para ler debaixo do guarda-sol, talvez saltando algumas páginas sem por isso perder o fio à meada.

– Mas eu não sei se consigo acabá-lo assim tão depressa. Gostava que me saísse bem – diz Joachim, num tom dócil.

– Joachim, sai bem qualquer coisa em que tu toques. Só tens de escrever. Escreve, escreve, escreve! Se queres saber o que eu acho, o teu problema é este: pensas demasiado e escreves pouco.

 

 

Joachim sai do edifício. A conversa foi uma perda de tempo para ambos. Antes de perder Helene, nunca se tinha apercebido de que estava tão só. Nem família, nem amigos. Claro, poderia sempre contactar algum primo em segundo grau, ou aquela tia velha, ou algum amigo de juventude. Homens envelhecidos, gordos, quase carecas e desiludidos com a vida, com quem se embebedar e choramingar sobre o facto de as coisas não terem corrido como se esperava: mulheres doentes terminais, carreiras extenuantes. E a ele não lhe apetece. Só quer falar com Helene. Tenta convencer-se de que lhe basta escrever um livro sobre ela, sobre o facto de a ter perdido, mas na realidade queria tê-la de novo consigo.

Inquieto, começa a andar ao longo da rua e já sabe que direção tomar: a da loja de máquinas fotográficas. Em contrapartida, não sabe bem o que vai dizer depois de entrar. Será de fazer de conta que é polícia? Não consegue renunciar a Helene. E o desaparecimento de Louise Andersen está ligado a ela. Na cabeça tem um pensamento constante: se quer recuperar uma, tem de encontrar a outra, descobrir o motivo pelo qual Helene reapareceu sob a identidade de Louise Andersen. E o único indício que possui é aquela base de cartão. Acelera o passo, apetecia-lhe começar a correr, quase tem o impulso de medir o ritmo cardíaco, a respiração, a transpiração, mas só ia fazer figura de cretino, num passeio do centro de Copenhaga no meio de tanta gente com roupa de verão. Todos em direção ao parques, com os cestinhos de piquenique. A quantidade de vida que existe em volta dele, vida da qual ele não faz parte.

Algade Foto. Joachim para. Nunca imaginaria que ainda existissem lojas daquele género. Na montra há máquinas de filmar, um projetor Super 8, pequenas bobines cinzentas, objetivas, coisas de uma época em que o mundo se podia ainda tocar com a mão. Joachim hesita. Enquanto tenta arranjar coragem para entrar, reflete ainda um pouco sobre os velhos tempos e filosofa sobre o facto de, quando ele era jovem, ser possível ainda explicar o mundo. Se em 1985 tivesse podido viajar para trás no tempo dois milénios, poderia ter descrito a Júlio César o futuro, o motor de combustão interna que faz andar uma viatura, a câmara fotográfica que fixa a luz numa fita de película, a locomotiva... Mas hoje? O mundo de hoje não se pode explicar. Facebook, Twitter, mulheres que ao fim de três anos descobrem que são outra pessoa qualquer... Não, o Julito não ia engolir estas coisas.

– Agora – murmura, e entra na loja.

Um velhote, debruçado sobre uma máquina fotográfica desmontada em cima do balcão, levanta os olhos.

– Bom dia, o que deseja?

Mostra-lhe uma foto de Helene no telemóvel e fica à espera de uma reação. Enquanto o homem examina a imagem, ele recorda o dia em que a tirou. Estavam nos rochedos, na costa setentrional da ilha, e tinham acabado de nadar.

– Sim, posso imprimir-lha, mas a qualidade não vai ser muito boa – diz o velhote, sem dar sinais de ter reconhecido Helene.

– Sabe quem é esta senhora?

O homem abana a cabeça.

– Não, não faço ideia de quem... Ah, foi o senhor que telefonou? Então pode ir àquela parte.

– Helene Söderberg. Diz-lhe alguma coisa, este nome?

O homem fecha ligeiramente os olhos com um ar desconfiado.

– Quer que o acompanhe à porta?

Joachim sente um ligeiro rubor no pescoço, como uma criança apanhada com as mãos na compota.

– Estou a investigar o desaparecimento da mulher que amo. – É uma libertação dizer as coisas como elas são, depois de um dia inteiro passado a andar às voltas sem chegar a lado nenhum, mesmo com Gudrun. É uma questão de amor, só isso. Cruza o olhar do velho e parece-lhe mais... condescendente? – Há duas mulheres pelo meio. A primeira é Helene Söderberg, a da fotografia, e a segunda é Louise Andersen. Será que o senhor conhece uma ou outra?

– Não, já lhe disse. – O homem volta a dirigir toda a sua atenção para a máquina fotográfica desmontada.

Joachim mexe-se. O que fazer?

– Já tem este estabelecimento há muito tempo? Talvez o anterior proprietário a tivesse conhecido?

– Olhe, eu estou aqui há trinta anos, e tenciono ficar outros trinta. – O homem fala sem levantar os olhos do balcão.

Joachim aproxima-se de uma prateleira cheia de sacos de fotógrafo e tripés, depois passa às montras de máquinas fotográficas novas em folha. Quando se volta, de repente dá de caras com um rapaz desengonçado que o observa da parte de trás da loja. Dá um passo em direção a ele, mas o rapaz arregala os olhos com uma expressão aterrada e abana a cabeça. Joachim hesita. O velhote está muito concentrado no seu trabalho ao balcão. Mas o jovem continua a fitar Joachim com uma tal intensidade que não deixa dúvidas: sabe alguma coisa, e queria falar-lhe, mas não na presença do velho. Por isso, Joachim dirige-se à porta da entrada.

– Bem, obrigado de qualquer maneira. Peço desculpa pelo incómodo.

– Claro, claro. Espero que encontre aquilo que procura.

O homem levanta o rosto de repente e Joachim tem a impressão de ver nos seus olhos um brilho de qualquer coisa. Agressividade? Irritação?

 

*

Joachim está sentado no café em frente. Ocupou a mesa ao lado do vidro, de forma a poder manter debaixo de olho a loja de máquinas fotográficas. Nas últimas duas horas, não entraram muitos clientes por aquela porta. Ao fim do dia, o velho e o rapaz saem no mesmo momento. O rapaz começa logo a andar ao longo da rua, enquanto o velho fica a fechar a porta à chave e a baixar a grade, que desce com uma lentidão exasperante. Joachim segue o rapaz com os olhos, enquanto pode. Finalmente o velho fechou o que tinha a fechar e, felizmente, encaminha-se na direção oposta. Joachim corre pelo passeio. Após uma centena de metros, descobre o jovem, que está a virar numa viela. Chega junto dele e pousa-lhe uma mão num ombro.

– Sabe alguma coisa? – diz, ofegante.

– Na verdade, não sei... – responde o outro, titubeante. Tem calçadas umas sapatilhas, a da esquerda está desapertada e o atacador está molhado e enegrecido à força de ser arrastado nas poças e no lixo da cidade.

– Via-se perfeitamente que queria dizer-me alguma coisa. O que é que sabe?

– Bem, é só que... essa Louise, por quem estava a perguntar...

– Sim?

– De vez em quando telefonam várias senhoras... – O jovem baixa os olhos.

– Telefonam? E o que é que dizem?

– Não sei. Devia perguntar ao Gorm.

– Em suma, pode saber-se de que é que está a falar? – Joachim começa a ficar agitado, apetecia-lhe esmagar aquele rapaz como um fruto, para lhe espremer informações até à última gota.

Mas o outro encolhe os ombros.

– Ele fecha sempre a porta. Muitas vezes ao telefone há uma certa Miss Daisy.

Joachim olha para ele, perplexo.

– Miss Daisy? E quem é?

– É uma que telefona, só isso. Fala com o Gorm.

Mais uma vez, o rapaz encolhe os ombros.

– Ouça, diga-me tudo o que sabe e vamos lá acabar com isto. Garanto-lhe que ninguém vai saber que eu falei consigo.

O jovem levanta os ombros até às orelhas.

– Não sei mais nada. É só que talvez essa Miss Daisy tenha alguma coisa a ver com aquela senhora de quem anda à procura.

Joachim suspira. É claro que por este rapaz não vai ficar a saber mais nada. Mas alguma coisa obteve: um nome. Miss Daisy. Pode procurar aquela mulher. Partindo do princípio de que se trata de uma mulher. Além do mais, agora sabe com toda a certeza que o velho mentiu. Portanto, é claro que há alguma coisa por trás. Oh, sim. Joachim tem uma nova pista para seguir. E agora experimenta uma estranha sensação de paz. Ainda tem uma possibilidade, basta encontrar Louise e descobrir por que razão Helene se fez passar por ela. Tem de haver uma explicação. Uma esperança.