17

 

 

 

 

Hans Peter Rosenberg, médico psiquiatra, uma vez por semana, é este o acordo. Uma vez por semana, Edmund manda-o buscar de avião, para dizer aquilo que é preciso. Helene senta-se em frente a ele na sala virada para o lago. Preferia estar com as crianças, até porque não está de facto convencida de que todas aquelas perguntas sirvam para alguma coisa.

– Ainda nada? – pergunta o Dr. Rosenberg, com um ar atencioso.

Helene ganha tempo, tenta bebericar o chá.

– Posso contar com a sua discrição?

– Mas isso é uma questão que nem se coloca – responde o psiquiatra, indignado.

– Mesmo em relação ao meu marido?

Ele prepara-se para dizer qualquer coisa, mas detém-se. Helene observa-o. Ele sorri.

– Alguma vez ouviu falar do juramento de Hipócrates?

– Hum... não.

Helene não consegue não se deixar contagiar por aquele sorriso.

– É o juramento que todos os médicos devem prestar, de há trezentos anos a esta parte. E não vou ser eu a quebrá-lo.

Helene assente. Reflete.

– Tive um... – procura a palavra mais apropriada. – Um vislumbre de memória.

– E o que foi?

Helene fala-lhe do regato no bosque, do facto de se ter lembrado que mais adiante passa uma estrada.

– Aquilo fez-me bem, porque demonstra que eu sou realmente a Helene, a mulher que antes morava aqui e desapareceu. Mas também me deixou agitada. Porquê?

– Porque ainda não apareceu o resto que, no entanto, está aí, em qualquer parte.

O médico sorri.

– Mas não me vem mais nada à ideia. Só me lembro que corria pelo bosque. – Helene abre os braços num gesto de resignação. – E quando cheguei à estrada, tive uma sensação estranha, como se estivesse... a fugir.

– A fugir?

Helene assente. A fugir. Sim, é essa a palavra certa.

– Como é que vão as coisas entre a senhora e o seu marido? – pergunta o Dr. Rosenberg.

– Bem. Mas parece-me uma experiência completamente nova.

– É natural. Perguntou-lhe?

– O quê?

– Se eram felizes. Podia ser um dos fatores que desencadearam a amnésia – responde o médico. E depois acrescenta: – Se alguém foge, há de haver um motivo.

– Ele diz que éramos felizes.

Rosenberg observa-a por um instante.

– Helene... Talvez devesse deixar de parte as questões mais vastas e concentrar-se nas circunstâncias do seu desaparecimento, sobre aquilo que aconteceu naqueles dias. Percebe?

– Sim, provavelmente devia.

– Parece que a sua memória está disposta a deixá-la entrar, mas só por uma porta bem precisa. – O médico inclina-se ligeiramente para a frente, entrelaça as mãos e baixa a voz. – É inútil pôr-se a ver velhas fotografias suas e das crianças. As recordações não são coisas que se possam extrair à força. Agarre-se àquilo que lhe voltou à ideia agora, ou seja, na sua corrida pelo bosque. Parta daí. O que aconteceu, pouco antes de se ter posto a correr? Ou pouco depois?

 

 

É Edmund quem acompanha Rosenberg à porta, e isso incomoda Helene, que se sente posta de lado, como uma criança que é deixada sozinha no momento em que os adultos têm de ter «conversas de grandes». Pensando bem, o que a irrita é o aspeto sexista da história. Edmund rodeia-se de mulheres que «põem a casa a funcionar»: uma velhota com farda de empregada, uma moça de estrebaria... Mas Helene não se sente à vontade no papel da mulherzinha toda sorrisos que se deixa de lado quando os homens têm «conversas de grandes». Há ainda nela um resíduo de Louise, a mulher que geriu uma cafetaria e que tinha de acordar todas as manhãs para ir buscar o peixe ao defumadouro, meter ao forno o pão de fermentação natural para servir com leite e mel caseiro, a mulher que fez um contrato com a Carlsberg para ter guarda-sóis gratuitos em troca da exclusividade de serviço da cerveja especial produzida pela velha fábrica. Ela é a mulher que amanhava enguias, retirando-lhes as vísceras, as barbatanas e o sangue, deixando-as em sal durante meses de forma que estivessem prontas para o menu outonal, divinas com as beterrabas em salmoura e uma pasta de alho selvagem, uma receita quase secular, típica da ilha, na qual não é preciso fazer a mínima modificação, a não ser que se pretenda gerar uma sublevação popular. Ela é a mulher que fazia a contabilidade e limpava os congeladores com Rodalon, um produto para tirar o cheiro de animais mortos e sorvete de limão. Vai ter de explicar todas estas coisas a Edmund, mais dia, menos dia. Se calhar, ele nem sequer sabe o que é o Rodalon.

As crianças estão lá fora, no relvado. Helene vai lá ter e tenta estar um pouco com eles, mas é difícil: aquela lembrança continua a atormentá-la. O regato, a água gélida, o bosque. Pela primeira vez, ao fim de três anos, a memória espreita, mas só para lhe mostrar um passado do qual não pode falar com mais ninguém além de Rosenberg. Segundo o médico, a amnésia teve origem ali. Porque fugiu? Tinha encontrado outro homem com quem queria ir embora? Improvável. Se assim fosse, onde está o homem em questão? Não é Joachim, porque ela conheceu-o bastante tempo depois. Talvez fosse Edmund a ter arranjado outra e ela tivesse descoberto. Ao fim e ao cabo, são coisas que sucedem continuamente e um pouco por todo o lado. Mas uma experiência do género só faz perder a boa disposição, não a memória, certamente. E então, o que foi que aconteceu?

Esforça-se por se mostrar presente, para não perder nem um instante da companhia dos filhos, agora que finalmente está outra vez com eles. Sofie nunca lhe larga a mão. Christian fá-la rir e basta olhar para a cara dele para perceber que também se está a divertir. Têm o mesmo sentido de humor, e isso já é um bem. Quanto às manifestações de afeto, virão quando ele voltar a habituar-se a ela. Sempre que se sentam, Sofie salta-lhe para o colo e Helene goza a sensação que lhe provoca o peso do corpo da menina. Fá-la pensar que Christian devia ter mais ou menos aquele tamanho, quando ela desapareceu.

Depois de jantar, vai deitar as crianças e a seguir vai ter com Edmund ao escritório.

– Estão a dormir? – pergunta ele, levantando os olhos dos seus papéis.

– Sim, não fizeram fitas.

Helene olha em volta. Mais do que um escritório, é uma biblioteca: mobiliário clássico e estantes maciças que sobem até ao teto. Todos os candeeiros têm um abat-jour verde. No centro da sala há dois pequenos divãs de pele cor de vinho.

– A tua secretária é aquela. – Edmund indica-lha. É idêntica à sua, mas ligeiramente mais pequena.

Curiosa, Helene aproxima-se. A secretária está ao lado de uma janela com vista sobre o jardim e sobre o lago. Ali está ele, o seu quarto com vista.

– É aqui que nós trabalhamos, à noite. Mas tu também tens o teu gabinete. – Edmund levanta-se, põe-se ao pé dos sofás e observa-a com manifesto desejo.

Ela aproxima-se, e de repente o vestido bege parece-lhe mais justo do que devia. É como se lhe exibisse todas as curvas dos seios e das ancas. Senta-se.

Edmund senta-se ao lado dela e pousa-lhe uma mão numa coxa.

– Helene... – A voz é rouca.

– Como era o nosso casamento? – pergunta ela, interrompendo-o.

Ele hesita.

– Bom.

A mão está ainda ali, firme, mas não se mexe. Edmund está à espera de um sinal de consentimento. Tem uma pele dourada, uns olhos vivos e bonitos. É um homem atraente, não vale a pena negar. E um bom pai. Mas então por que razão ela... fugiu?

– Diz-me mais alguma coisa. Éramos felizes? Íamos muitas vezes para a cama? – pergunta-lhe Helene, apesar de estar convencida de que ele não gosta de falar daquelas coisas, sóbrio como é.

Após um longo silêncio, Edmund cinge-a com um braço e puxa-a para ele.

– Todos os casais têm os seus problemas – diz Helene. – Qual era o nosso?

– Arranjar tempo para estarmos juntos – responde ele, rapidamente. – O projeto da aquisição foi uma tarefa tal, que...

– Aquisição? – interrompe ela.

Edmund hesita.

– Não estava à espera de ter de falar sobre isso agora.

– Ah?

– Trabalhámos durante vários anos no projeto de aquisição de uma companhia holandesa, graças à qual entraríamos no círculo dos maiores transitários do mundo. Era o teu projeto, Helene, o teu sonho – diz ele, com um ar agitado. Depois encolhe os ombros. – Só que depois desapareceste...

– Claro, mas... éramos felizes?

– Felicíssimos, Helene. Gostávamos muitíssimo um do outro, partilhávamos tudo, trabalhávamos juntos, íamos de férias juntos, estávamos com as crianças. E íamos para a cama... – Embaraçado, baixa os olhos. – Fazíamos isso muitas vezes.

Inclina-se sobre ela, com um movimento natural, imparável. Os lábios de ambos encontram-se num beijo instintivo, exploratório. Helene tem o coração acelerado. É impensável que consiga experimentar algum sentimento, se continuar a analisar as suas próprias reações. Tem de relaxar. Edmund, evidentemente, não tem qualquer problema, a julgar pela respiração. Beija-a outra vez, segura-lhe o rosto entre as mãos. Tem uma técnica irrepreensível: a boca não está demasiado húmida, nem demasiado seca, nem demasiado aberta, nem demasiado fechada. A língua passa sobre os lábios dela, quente e agradável. Mas, mas... Helene está em luta consigo mesma. Quere-o e não o quer. De repente, ele larga-a e levanta-se. Ela olha para ele, confusa. Edmund estende-lhe uma mão, ela segura-a e ele começa a andar. Atravessa todo o rés do chão, sobe as escadas, entra no quarto, dirige-se à cama. Ao que parece, não é o tipo de homem que salta para cima da mulher na biblioteca. Helene teria preferido que fosse? Já era difícil ao início, mas depois daquela interrupção ainda é mais. Ele tira a roupa, lentamente e com método, pousando-a numa cadeira. Ela fica imóvel, a vê-lo despir-se. Tem pelos escuros no tórax e no ventre. Os músculos são bem definidos. Não falam, ele não olha para ela. Quando fica nu, aproxima-se e, sem hesitar, despe-a também a ela, com a mesma determinação e disciplina com que se despiu. E ela deixa-o agir. Aliás, levanta os braços, para que lhe seja mais fácil tirar-lhe o vestido, levanta um pé, depois o outro, para se libertar das cuecas. Pronto, estão nus. Homem e mulher. Ele pega-lhe outra vez na mão e leva-a até à cama.

– És tão bonita. Sempre foste lindíssima – diz, arquejante.

Deita-se sobre ela, apertando-a contra o colchão. O corpo inteiro dele contra o corpo inteiro dela. Apoia os cotovelos na cama, mais uma vez segura-lhe no rosto com as duas mãos e beija-a. O mesmo beijo bem calibrado, perfeito. Helene retribui, não pode fazer outra coisa. Devagar, passa-lhe as mãos ao longo do tronco e sente entre as coxas o sexo duro de Edmund. Ele põe-se ligeiramente de lado, aproximando o seu abdómen.

– Não – murmura ela.

– O quê? – Edmund afasta-se dela. Ficam estendidos um ao lado do outro, a recuperar a respiração. Lá fora ouve-se o vento entre as árvores e, mais ao longe, a sirene de um barco.

– Desculpa – diz Helene, com um fio de voz.

– Não te preocupes. – Ele pousa-lhe uma mão no braço. – Temos muito tempo, o tempo todo que for preciso. – Precisamente naquele momento, toca o telemóvel dele. – Que esperem – diz Edmund.

– Não, atende lá – diz-lhe Helene, demasiado solícita.

– Deve ser com certeza uma questão de trabalho. É só um instante.

Ele levanta-se, veste outra vez a roupa toda, com a mesma disciplina com que a tirou, depois espreita para o telemóvel e desce ao andar de baixo.

Helene fica sozinha na cama. A primeira vez é a pior, pensa, enquanto abre a gaveta da mesinha de cabeceira. Já a explorou, sabe o que está lá dentro: uma embalagem de Aspirina, alguns lenços e uma velhíssima Bíblia. A dedicatória na primeira página é quase ilegível, mas com alguma insistência Helene consegue decifrá-la: é dirigida ao seu bisavô, da parte de Steen Steensen Blicher, o pastor protestante que em 1839 orientou o primeiro encontro de Himmelbjerget. E depois está também o recibo do estacionamento. Tem a data de 23 de março. Não diz o ano, mas Helene sabe que desapareceu a 26 de março. Portanto, três dias antes do desaparecimento da antiga Helene, ela... pois, ela fez o quê? Tinha um encontro marcado naquele lugar? Na fábrica de papel de Silkeborg? Pode ser um indício? O psiquiatra disse-lhe para começar a partir dos dias antes e depois do desaparecimento. O que é que ela estava a fazer na fábrica de papel?

Ouve os passos dele nas escadas. Está a regressar. Apressa-se a meter outra vez o recibo na gaveta, depois deita-se de lado, de forma a ficar de costas para Edmund. Pensa em O vendedor ambulante, a única história de Blicher que alguma vez leu, mas não se lembra quando. A memória é sua inimiga, e ela odeia-a. Lembra-se das línguas, do sabor das papas de pão negro e cerveja branca, lembra-se de Casablanca e lembra-se de O vendedor ambulante: Não há no mundo coração mais desgraçado / que o de quem perdeu o amado. Joachim. É ele, o amado perdido. Helene fecha os olhos e finge que está a dormir. Imagina Joachim sentado ao computador. Talvez esteja feliz, agora que finalmente pode escrever outra vez.