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Só ao crepúsculo Helene se arrisca a apanhar um táxi para regressar a Himmelbjerget. O parque de estacionamento está deserto, o único carro é o dela, no meio do terreno. Paga ao taxista, que arranca imediatamente. E se o perseguidor ainda andasse por ali? Por um instante, Helene olha para as árvores agitadas pelo vento, depois apressa-se a entrar no carro.

Agora vê perseguidores em todo o lado. Ao longo do trajeto para a escola de mergulho continua a espreitar pelo espelho retrovisor, mas nunca vê ninguém. Estaciona junto a uma fila de árvores e fica imóvel durante algum tempo, depois sai do carro e constata que hoje a escola está fechada. E agora? Será melhor esquecer e voltar para casa?

– Sr.ª Söderberg?

Pouco mais adiante há uma luz. Helene aproxima-se.

Uma mulher jovem, sentada num banco a mexer em equipamentos de mergulho, sorri-lhe.

– Já soube pelos jornais que tinha aparecido.

Helene fita-a. Não estava preparada para uma coisa do género.

– Vai-me desculpar, mas não me lembro de si. Já nos conhecemos?

A mulher põe de lado os equipamentos, levanta-se e aproxima-se dela. Instintivamente, Helene recua dois passos. A outra parece perplexa.

– Então sempre é verdade, aquilo que escreveram. A história da amnésia, quero dizer. – Dirige-lhe um olhar interrogativo e depois acrescenta: – Sente-se bem?

– Sim, estou... estou só à procura do Martin. O instrutor desta escola.

– Sim, eu sei quem é o Martin. Mas tem a certeza de que está bem? Precisa de ajuda?

– Só preciso de falar com o Martin – responde Helene, tentando manter um tom descontraído.

– Está mesmo a chegar. Foi fazer um mergulho noturno com um grupo.

A mulher indica o cais.

– Obrigada.

Helene avança naquela direção e percorre o pontão estreito até à extremidade. Ao fim de pouco tempo, surgem debaixo de água algumas luzes que se aproximam, formando uma longa fila serpenteante, como um monstro subaquático luminescente. O primeiro mergulhador emerge ao lado da escadinha e sobe para o pontão. Está enfiado num fato preto. Depois chega um segundo, um terceiro, um quarto. Todos idênticos de aspeto, todos vergados ao peso do equipamento, quando saem da água. O último da fila puxa a máscara para a testa. Um rosto sardento, barbicha ruiva, olhos simpáticos.

– Sr.ª Söderberg!

– É o Martin? Tem dois minutos?

Da entrada da escola, um dos alunos chama-o.

– Martin, vens abrir a porta?

– Preciso de lhe perguntar uma coisa, é só um instante – diz Helene rapidamente. – Sabe que eu desapareci há três anos, não sabe?

Martin assente.

– Só sei aquilo que li nos jornais.

– Imediatamente antes, fui ao hotel onde você trabalhava e mostrei-lhe um objeto. De que se tratava?

Martin reflete.

– Não me lembro exatamente... mas acho que me perguntou por uma pessoa que tinha estado lá hospedada.

– Quem?

– Não sei dizer-lhe.

Martin encolhe os ombros.

– Homem ou mulher? Não se lembra mesmo de nada? É muito importante.

– Despacha-te, Martin, estamos a morrer de frio – grita outro aluno.

– Eh, um instante! – responde Martin, impaciente, enquanto ela espera, ansiosa. Depois, de repente, dirige o olhar para uma pessoa que está atrás dela.

– Helene! – diz uma voz masculina.

Ao sentir uma mão no ombro, Helene volta-se.

Edmund. Olhar alucinado, pescoço vermelho, tom descontrolado. Por isso Helene não lhe reconheceu a voz.

– O que é que estás aqui a fazer? – pergunta-lhe ela, surpreendida.

– Mas como «o que é que estás aqui a fazer»? O que é que tu estás aqui a fazer, quando muito. – Edmund está quase a gritar.

Helene não sabe como lhe responder. Nunca o viu assim.

– Como é que sabias que eu estava aqui?

– Telefonou-me a Ann Louise. – Edmund faz um gesto com a mão.

Helene olha para a sede da escola de mergulho e vê a jovem que a reconheceu assim que chegou, e que agora está de braços cruzados a olhar para eles, com um ar curioso.

– Telefonou-te? – pergunta-lhe, estupefacta.

O rosto de Edmund contrai-se numa máscara de raiva.

– O que é que se passa, Helene? Será que te apercebes daquilo que andas a fazer? Queres desaparecer outra vez?

Aquelas palavras atingem-na como um murro.

– Mas eu tinha-te avisado que chegava tarde – replica Helene, para não dizer nada de concreto.

– Sim, disseste-me que andavas a passear com uma amiga, mas já passaram muitas horas. Além do mais, não vejo amigas nenhumas por aqui. Estás a mentir-me? O que é que andas a tramar? A Ann Louise telefonou-me a dizer que andavas por aqui às voltas, em estado confuso. Estou preocupado contigo. Já para nem falar dos miúdos. Nem sequer pensas neles?

Helene assente. Ele tem razão. Desorientada, volta-se para Martin, que parece embaraçado.

– Sinto muito – diz Helene, dirigindo-se quer a Martin, quer a Edmund. – Desculpem, não pensei no que fiz.

Edmund cinge-a com um braço, puxa-a para si e, com um tom mais afetuoso, diz-lhe ao ouvido:

– Eu sei que não fizeste de propósito. E sei que ainda estás perturbada. Vai passar. Os médicos vão ajudar-te.

Vira-se e começa a arrastá-la com ele em direção ao grande carro que os espera do outro lado da escola. O motorista, ao vê-los chegar, liga o motor e sai para abrir as portas. Quando passam ao lado de Ann Louise, a mulher sorri a Edmund, que lhe diz:

– Obrigado por me ter avisado, foi uma ajuda preciosa.

Larga Helene para poder apertar com as duas mãos a de Ann Louise, que cora como uma rapariguinha que acaba de encontrar o seu cantor preferido, ou um presidente. Mas o que é que Edmund faz às mulheres? Olham todas para ele assim. Todas exceto Helene.

Edmund cinge-a novamente com um braço, e ela ainda tem tempo de ver a inveja no olhar de Ann Louise, antes de lhe virar as costas e de ser empurrada para dentro do carro. Senta-se no banco traseiro e pelo vidro vê os mergulhadores que, curiosos, se juntaram a observar a cena. Martin está muito próximo do carro, do lado de Helene, mas tem o olhar fixo na máscara de mergulho. Segura-a à frente da cara, bafeja sobre ela, esfrega o vidro. Parece que a está a limpar, mas de repente levanta o rosto, olha Helene nos olhos e mostra-lhe a máscara. E ali, sobre o vidro embaciado... há uma palavra: KIRSCH. Helene semicerra os olhos. Não, não é um gatafunho, nem um produto da sua imaginação. São letras verdadeiras. Uma mensagem. Kirsch. Mas o que significa?

O carro arranca, Edmund retira-lhe o braço dos ombros e fica em silêncio ao lado dela.

– Como é que nós conhecemos a Ann Louise? – pergunta Helene, cautelosamente.

– Trabalhou nas cavalariças, durante um período. Já foi há muito tempo, ainda andava a estudar.

Edmund suspira, passa os dedos pelos cabelos para os pentear e olha para ela como se fosse uma estranha.

– Mas tem o teu número de telefone.

– Não faças caso – responde ele, com um tom cansado. – Funciona assim, quando se é uma figura pública. É uma vantagem e uma desvantagem ao mesmo tempo. Desta vez foi uma vantagem. Estava mesmo preocupado.

Segura-lhe numa mão e aperta-a.

Helene sente-o tremer.

– Percebo – diz. E decide não pensar mais no assunto.

Apoia-se no encosto do banco. Quer realmente pôr toda aquela história de lado, mas os pensamentos fazem aquilo que querem e volteiam livremente na sua cabeça, girando em volta de todas as coisas para as quais ela não consegue arranjar uma explicação. Por exemplo, o perseguidor. E a mensagem de Martin: Kirsch.