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Ellen conduz devagar pelas ruas de Siracusa. Joachim tem o mapa no colo e dá-lhe indicações para a ponte que dá acesso a Ortigia, centro histórico da cidade. Só podem circular ali os veículos munidos de uma autorização especial, por isso Ellen e Joachim estacionam, pegam nas malas e continuam a pé. Escureceu há pouco, mas as ruas fervilham de vida. São quase todos turistas, gente culta e abastada que irrita Joachim.

– Vamos procurar um hotel? Eu precisava mesmo de um duche, para me livrar deste pó – diz Ellen.

Entram em alguns, todos cheios, uma vez que é época alta. Por fim, encontram uma pequena pensão que tem um único quarto livre e nem sequer se concedem tempo para refletir como vai ser inoportuno dormirem no mesmo quarto: estão demasiado cansados, têm medo de não arranjar mais nenhum alojamento e ter de passar a noite na praia ou num banco de jardim.

O quarto é minúsculo, tem um vago cheiro a terra, é quase inteiramente ocupado por uma cama de casal com a cabeceira amassada e tem um papel de parede às riscas vermelhas e douradas que se está a descolar junto ao teto, mas não é desprovido de um certo fascínio rústico, e por isso Ellen não protesta. Abre as portadas de vidro que dão para uma varanda microscópica e debruça-se sobre o parapeito de ferro forjado. Joachim põe-se atrás dela. Diante deles estende-se um mar de um azul irresistível, Joachim nunca viu uma cor tão carregada. As ondas batem a um ritmo regular contra os rochedos. Só uma ruazinha separa o hotel do mar. Aquele espetáculo transmite-lhe uma sensação de paz. Por um instante, só existe a água, o ruído das ondas, o cheiro. Se ao menos Helene ali estivesse! Ellen sai do quarto e avança pelo corredor à procura da casa de banho comum, depois volta a entrar, estarrecida, a dizer qualquer coisa a propósito de escaravelhos que foram a correr esconder-se no ralo do chuveiro assim que ela abriu a água. A seguir, começa a arranjar o cabelo, como se nada fosse. Não haverá mesmo nada que a possa fazer desviar da sua rota? Pois, e qual será a sua rota? O que deseja Ellen? Quais são os seus sonhos? Endireita as costas e atira a cabeça para trás, e os cabelos voltam a cair num penteado perfeito, com a risca ao lado, que lhe dá um ar...? Sedutor? Pôs um vestido preto justo e umas sandálias de couro escuro salpicadas de perolazinhas em tons claros.

– Então, vamos sair para jantar?

 

 

O jantar torna-se uma bizarra réplica de ritos familiares, e ao mesmo tempo a exploração de um território completamente desconhecido. Falam um pouco de tudo, sem um tema específico, mas também sem qualquer palavra sobre o passado, sobre Kollisander, sobre o homicídio e sobre Helene. Joachim não tem vontade de pensar nisso. É libertador descontrair-se, deixar que o vinho faça efeito e mandar àquela parte as atribulações da vida. Gozá-la. Só em dois momentos, ao longo do jantar, não consegue conter-se e deixar de refletir sobre o motivo pelo qual Ellen aceitou acompanhá-lo até aqui. Havia qualquer coisa... No dia em que conversaram naquele café, ela disse uma frase...

– Homem de gelo? – diz Ellen.

Joachim levanta os olhos.

– Por hoje, basta de preocupações. Hem?

Depois do jantar, regressam ao hotel de braço dado. Ellen apoia-se nele e começa a dizer coisas sem nexo. Quando entram no quarto, pega num maço de cigarros e vai à varanda fumar, lentamente, com concentração, a saborear.

– Também queres um? – pergunta-lhe com um sorriso, mas Joachim abana a cabeça. Está sentado na beira da cama, numa estranha serenidade que julga não merecer, e isso fá-lo sentir-se culpado.

Ellen atira a ponta do cigarro pela varanda e espreguiça-se com satisfação.

– Bem, acho que já são horas de me estender – diz, com uma voz ligeiramente rouca.

Joachim sente-se atravessar por uma chama. Continua sentado, imóvel, e sente o movimento do colchão enquanto ela se deita. Só depois, quando ouve a respiração dela tornar-se pesada, se estende de lado e a observa. A voz rouca trouxe-lhe à memória a recordação da primeira vez que foram os dois para a cama. Aconteceu numa festa, como é óbvio. Eram muito jovens, e ele era muito estúpido, exaltado pelo inesperado sucesso da sua primeira obra. Ela tinha passado a noite toda a esvoaçar em volta dele, a tentar tudo para se fazer notar, mas não era o seu tipo, por isso tinha-a descartado à primeira vista: demasiado baixa, demasiado magra, demasiado séria. Ele gostava de mulheres com seios grandes. Mas depois Ellen disse qualquer coisa, e pela primeira vez Joachim reparou naquela voz rouca, sensual, que lhe entrava na cabeça. Então sim, reparou melhor nela. Ela levou-o para casa, para um quarto bem diferente do cubículo onde ele morava, no rés do chão de uma residência de estudantes acabada de construir e que ainda cheirava a tinta. Ellen vivia num apartamento atrás do Teatro Real, onde tinha morado Hans Christian Andersen, e efetivamente na parede branca havia uma placa de latão com as datas. Ao contrário dele, tinha uma casa de banho só dela, com uma grande banheira pousada em patas de leão. Tinha acabado de se inscrever na academia e, com algum embaraço, apresentou-lhe os colegas de curso. Ele sentou-se na cama bem feita, com uma colcha comprada em Damasco. Pois, com ela era assim, cada objeto que possuía estava ligado a uma história. Tinha-lhe sido vendida por uma família proveniente dos montes de Golã, que a introduziu no mistério espiritual da dança do Sama, através da qual se pode atingir o Perfeito. Joachim lembra-se de ter deixado vaguear o olhar à descoberta de todas aquelas coisas, velhas caixas da Lock & Co, a mais antiga chapelaria do mundo, com sede em Londres, e no canto uma chaise-longue em pele vermelha e bambu escuro, muito gasta, que Ellen afirmava com insistência ter pertencido a Sarah Bernhardt. Mas destas coisas falou-lhe em seguida. Naquela noite, a primeira, Joachim ficou ali sentado sem saber o que dizer. Quando o silêncio se tornou demasiado pesado, ela pôs um disco. A blusa leve realçava a magreza dos ombros, mas ela voltou-se de repente e, com poucos movimentos, tirou a roupa.

– Pronto, é assim que eu sou – disse-lhe, outra vez com aquela voz rouca.

E ele fitou-a, observou-a sem reserva, imprimindo na mente as formas das coxas esguias e fortes, a penugem escura do púbis, os seios pequenos mas com aréolas como círculos perfeitos. Não soube o que fazer, nem mesmo nessa altura. E talvez ela se tivesse apercebido disso, considerando que, em vez de interpretar aquele silêncio como uma recusa, se aproximou e o beijou. Encavalitou-se em cima dele, pegou-lhe numa mão e pô-la entre as coxas.

– Toca-me – disse-lhe, sem fôlego.

Ele pousou a mão contra aquele ventre quente e sentiu o seu sexo intumescer até lhe doer. Ellen apertou-se contra ele, a gemer de desejo, e só então Joachim se apercebeu de que não tinha nada a temer: entre o seu desejo e o dela, não havia nenhuma diferença, Ellen desejava-o tanto quanto ele a ela. Esta nova consciência fervilhava dentro dele, dando-lhe segurança: de repente, era livre de fazer aquilo que queria. Pousou-lhe uma mão na nuca para a atrair a si e beijá-la com uma convicção nunca sentida. Ao mesmo tempo, enfiou um dedo dentro dela, depois dois, e Ellen movia a bacia para a frente e para trás, empurrando o corpo contra a sua mão e apertando os músculos em volta dos seus dedos. Ele largou-lhe a nuca e ela cingiu-o com um braço, unindo-se a ele num beijo sem princípio nem fim. Os seios tocaram-lhe o tórax, um contacto que arrancou um suspiro a ambos. Ele pousou-lhe uma mão nos flancos para acompanhar os movimentos, para a frente e para trás, para cima e para baixo. Gemiam os dois, cada um nos lábios do outro. O membro levantava o tecido das calças, Joachim morria de vontade de as tirar e de a penetrar. Ela pôs uma mão no meio das pernas e começou a tocar-se, apertando-o entre as coxas, e ele tentou mover os dedos para a frente e para trás, dentro dela, mas Ellen emitiu um gritinho de protesto, ainda com a boca aberta sobre a dele, por isso Joachim obrigou-se a ficar imóvel, sempre com as calças inchadas. Ela contraiu os músculos das coxas, movendo os dedos juntamente com a mão que ele tinha entre as pernas dela. Joachim estava à espera, mas não sabia de quê. De repente, foi como se ela se tivesse deixado ir: as coxas relaxaram, os flancos recomeçaram a mover-se para a frente e para trás, os gemidos tornaram-se mais intensos, sempre com a boca contra a dele, e depois de repente Ellen deitou a cabeça para trás e emitiu um soluço, quase sem ruído, só uma expiração rouca. Após um instante, também ele atingiu o orgasmo. Nunca lhe tinha acontecido daquela maneira, nunca tinha encontrado uma mulher que o excitasse ao ponto de o satisfazer sem um contacto direto entre os órgãos sexuais.

Ellen foi à casa de banho passar-lhe as calças por água, depois pô-las a secar no aquecedor, e aquela foi a desculpa de Joachim para passar ali a noite. E também o dia seguinte. Acabaram na cama uma quantidade de vezes, não conseguiam parar, mas a relação em que Joachim está a pensar neste momento é a primeira. Porquê? Porque entre eles se entrepôs alguma coisa. Só que desta vez essa coisa não é um par de calças de ganga, mas o tempo. É isso, sim, o que os separa. Mas o desejo existe, Joachim sente-o claramente. Podia acordá-la, beijá-la, ela não o rejeitaria com certeza. Em qualquer caso, Helene nunca viria a sabê-lo. É sempre uma oportunidade. A última. Reconciliação e adeus. Vira-se de costas e fita o teto esfolado, o papel de parede a descolar. Está tudo de pernas para o ar, até ele. Suspira, cheio de desejo, de ânsia física, de inquietação.