63

 

 

 

 

O sol faz aquilo que faz sempre: sobe em direção ao zénite no seu arco. Ainda não é meio-dia, o pior ainda está para vir. Joachim olha para Ellen e tenta dizer alguma coisa, mas apenas consegue emitir um gemido que penetra através do trapo na boca. Ela pestaneja. Tem os olhos vermelhos e transpira abundantemente. Será que Kollisander está atrás da porta, ao fresco, enquanto espera que eles desidratem? Diante deles continua a estar A mulher secreta, com aquela expressão bizarra. Joachim não consegue afastar os olhos dela. Em tempos, aquele quadro era uma mulher que respirava, pensava, comia, fazia amor. Por um instante, vê-a como se ainda fosse viva. Observa o modo como a mulher espreita por cima do ombro, enfrentando o olhar do observador. A mulher secreta tem um ar indulgente. Aqueles olhos, pintados diretamente sobre a pele morta, têm piedade dele, de Kollisander, de quem quer que olhe para eles. Louise perdoa o infinito ódio que a matou: o ódio pelas mulheres, o verdadeiro carburante que impulsiona os artistas como Kollisander e muitos outros... como Joachim? Aquela sensação enraizada e aguda de não ser notado, amado... A carência de afeto pode levar à destruição, ou à grandeza. Artistas e escritores, à falta do verdadeiro amor da única pessoa que lhes interessa, sentem-se levados a fazerem-se amar por milhares, milhões de outras. Mas, a cada novo admirador, a cada volume vendido, a cada quadro pendurado numa enorme sala, cresce a raiva. O artista tenta levar para a cama mulheres muito jovens, mas sem conseguir alívio, por isso desata a bater, a humilhar. Mas nem disto tira prazer, é impossível deixar a raiva para trás. Finalmente, Kollisander atingiu o extremo: matou Louise, esfolou-a. E agora ali está ela, ressurgida, diante de Joachim, com aquele olhar ligeiro por cima do ombro, o sorriso quase impercetível nos pequenos lábios vermelhos. Não há dúvida, a mulher secreta perdoa aos homens o seu ódio pelas mulheres. Do Além, diz: Com a minha morte, mataram-se a vocês mesmos. Perderam tudo, enquanto eu continuo a existir.

Sim. Joachim matou-se a si mesmo. Agora apercebe-se de que todo o seu percurso levou a isto: foi ele que moldou Ellen, à força de recusas e tiranias, dando forma a um monstro. Só pode agradecer a si próprio. E Ellen reagiu na primeira oportunidade, ou seja, quando Joachim lhe pediu ajuda. É como se lhe tivesse respondido: Muito bem, vamos os dois em direção à ruína, vamos dar as mãos e atirar-nos ao inferno.

Ellen tem os olhos fechados, a respiração ofegante e oscila ligeiramente para trás e para a frente. Joachim, desesperado, afasta o olhar. Levanta os olhos, mas a luz encandeia-o, por isso inclina a cabeça até pousar o queixo no peito e baixa as pálpebras. A escuridão dá-lhe frescura por um instante, mas depois emerge o rosto de Helene, com os cabelos loiros e o olhar apontado para ele, e eis de novo o nó na garganta. A ideia de não a voltar a ver é intolerável. Ninguém sabe que ele e Ellen estão aqui. Mais cedo ou mais tarde, a polícia vai procurá-los, isso é claro, mas Kollisander não terá de fazer mais nada senão eliminar os seus corpos. Desta vez vai ser mais esperto, vai certificar-se de que desaparecem realmente, sem deixar vestígios. Ninguém, nem mesmo Helene, relacionará o seu desaparecimento com as novas e misteriosas pinturas de Kollisander. E isto significa que ninguém vai poder afastar as suspeitas de Helene: encontraram o ADN dela no cadáver de Louise, e para os investigadores isso basta. Vai acabar na cadeia. Não! Desesperado, Joachim dá um esticão aos braços, mas os apertados nós de tecido não cedem. Puxa com toda a força, mas apenas consegue uma grande ardência na pele. Ao ouvir aqueles ruídos, Ellen abre os olhos e dirige-lhe um olhar angustiado. Rendeu-se, é evidente. Mas Joachim não. Flete as pernas e sente o peso do corpo esticar até ao espasmo os ligamentos dos ombros. A dor propaga-se aos braços e à espinha. Mas o tecido ainda não cede. Finca os pés no chão e dá um salto, de forma a deixar cair pesadamente o corpo, várias vezes. Nada, os nós apenas se apertam mais. Para a refletir. Agora o sol está alto, queima, o suor escorre para os olhos e forma fios ao longo das costas. Se ao menos pudesse beber... Água fresca com que molhar a cara e aclarar as ideias. É como se, juntamente com o suor, estivesse a perder o dom do intelecto. Durante quanto tempo se pode sobreviver numa sauna? O corpo inteiro reclama água. O sol arde, implacável, não há sequer uma nuvem, apenas céu azul, sem filtros nem proteções. Que temperatura estará, agora, aqui dentro? Cinquenta graus? Mais? Joachim baixa os olhos, ardem-lhe. Se estiver calor suficiente, será que o corpo humano pode entrar em autocombustão? Há alguma coisa que lhe está a escapar, ele sabe, mas quanto mais reflete, mais o cérebro corre por sua conta. Mas deve haver uma saída, há sempre. De repente, os seus olhos pousam num objeto no chão, um farrapo amarrotado. Pano branco raiado de vermelho. Vermelho-sangue. O farrapo que Kollisander usou para limpar o pincel. Sessenta graus, é necessária uma temperatura de sessenta graus exatos, para que o preparado esteja suficientemente fluido para poder ser usado. Não mais. O que foi que Ellen disse sobre a cola animal? Ah, não, não foi ela, foi o funcionário da loja das tintas. Foi ele que explicou que é preciso ter muito cuidado porque aquilo é perigoso, muitos ateliers arderam desta maneira. Está a ver o farrapo para limpar os pincéis? Basta uma coisa de nada para desencadear a autocombustão. Kollisander teve bastante cuidado em pôr a tampa no recipiente esmaltado e em levá-lo para fora do atelier, por isso é evidente que teve em conta o risco de incêndio, mas esqueceu-se dos farrapos. É verdade que os deixou em cima da mesa, que está à sombra, mas se Joachim conseguisse puxá-la para a pôr entre ele e Ellen, em pleno sol? Levanta os olhos. As cordas estão amarradas à trave por cima dele. Esticando um pé para fora, tenta chegar à mesa. Não é pesada, Kollisander escolheu-a precisamente para poder deslocá-la quando está a pintar. Bastava aproximá-la um bocadinho, entre ele e Ellen, por baixo dos raios de sol. Não é uma tarefa fácil, incendiar um aposento quando se está amarrado na posição do Homem Vitruviano, mas talvez, se Ellen conseguisse dar um empurrãozinho... e se as chamas subissem o suficiente para se propagarem na trave... Não é de excluir essa hipótese. O fogo vai sempre para cima. Só resta esperar que não morram asfixiados pelo fumo. Emite um gemido. Ellen vira pesadamente a cabeça para ele e fita-o com uns olhos turvos. Joachim estica várias vezes o queixo em direção à mesa atrás dela e dá pontapés na mesma direção. Ela abana a cabeça. Não percebeu. Ele apoia-se nos pés durante uns instantes, para descansar e reunir energias, depois ergue-se em bicos de pés e estica-se para o lado o mais que pode. A dor é atroz. Estica uma perna, fica equilibrado sobre o dedo grande, com o peso do corpo nos ligamentos dos ombros. Finalmente, Ellen percebe. Ou não? Em qualquer caso, tenta ajudá-lo. Como está mais perto da mesa, consegue empurrá-la alguns centímetros. O ruído do arrastamento parece dar-lhe uma nova esperança, a sensação de reagir, de fazer alguma coisa. Joachim faz-lhe um sinal de encorajamento e ela volta a tentar, mas ao fim de várias tentativas está prestes a desistir. Nesse preciso momento, consegue levantar as pernas, ficando suspensa pelos braços, e dar um pontapé à mesa. Joachim não consegue capacitar-se do facto de uma mulher tão franzina ter aquela força toda, mas finalmente Ellen consegue aproximar a mesa dele. Nesse momento, não aguenta mais. Mas agora Joachim consegue chegar-lhe com o pé: agarra uma perna da mesa e puxa-a para debaixo dos raios de sol. Agora a mesa está no meio deles. Ellen dirige um olhar preocupado aos farrapos e as suas narinas dilatam-se ligeiramente: já percebeu. Sentem ambos o cheiro acre da cola animal. Ellen abana a cabeça, os seus olhos dizem: Não! Demasiado perigoso. O fogo não se consegue controlar, iam acabar queimados vivos. Dos farrapos começa já a erguer-se um fio de fumo. Trocam um olhar. Esta á a única possibilidade que têm, ela também sabe isso. Por um instante, Joachim teme que a combustão não se realize, mas depois vê a ténue luz azulada e amarela que cobre o tecido. Acontece tudo num segundo: como num disparo, todos os farrapos em cima da mesa se incendeiam. As chamas devoram avidamente a madeira da mesa e sobem cada vez mais alto. Joachim olha para Ellen, que permanece imóvel, na mesma posição, de dentes cerrados Talvez também ela esteja a pensar que mais vale morrer queimada, depressa, em vez de ficar a desidratar lentamente. Finca-se nos pés e dobra-se de lado para afastar o mais possível o corpo do fogo, mas alguns farrapos continuam perigosamente próximos. De repente, no chão de pedra acende-se um fio de chamas – talvez Kollisander tenha entornado alguma coisa ali? – que, com a rapidez de um raio, vai atingir a parede atrás de Joachim. As chamas não chegam à trave por cima deles, mas em contrapartida a beira do vestido de Ellen já está a ficar negra, e Joachim sente um calor ameaçador na pele, primeiro nas ancas e depois, de repente, nas costas pinceladas. Ellen tinha razão, é demasiado perigoso, não há maneira de controlar o incêndio, vão acabar queimados vivos. Grita, mas o farrapo na boca amortece o som, deixando sair apenas um gemido desesperado. Agora a mesa no meio deles está completamente em chamas e o lado interior da trave já está negro, mas o fumo... Ellen grita e Joachim fecha os olhos, a pensar: Meu bom Deus, eu nunca acreditei em Ti, mas... Não consegue completar a oração, a dor é demasiado forte. Volta a abrir os olhos e espreita para cima. O fogo propagou-se pela trave. Tenta chamar a atenção de Ellen que, porém, está inerte. O fumo irrita as narinas, Joachim sabe que não vai levar muito tempo até que todo o atelier se transforme num mar de chamas. Tenta aproximar a corda do fogo, mas de repente apercebe-se de que é uma empresa desesperada: estas labaredas não serão a lâmina que vai cortar aqueles nós. Ele vai morrer e, juntamente com ele, também ficará reduzida a cinzas A mulher secreta, a prova que ia absolver Helene. E a culpa é só de Joachim. Claro que não vai ter de aguentar o peso disso durante muito tempo, uma vez que tem apenas poucos minutos de vida, mas essa consciência não o tranquiliza minimamente. Em contrapartida, olhando através do fumo, vê que pelo menos Ellen está em paz.

Joachim já não consegue manter os olhos abertos, ardem-lhe demasiado.

– Ellen! – grita, mas aquele nome transforma-se num estertor desesperado por trás do farrapo que lhe tapa a boca.

Ellen não reage. Perdeu os sentidos ou já está morta?