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Como é que ela se assustou tanto? Louise observa o homem que está a ser retirado da lancha da polícia. Agora parece-lhe apenas um pobre desgraçado, rodeado de turistas alegres no porto de Gudhjem.

O carro de Joachim está numa garagem alugada, não muito longe dali. A porta range quando ele a abre. Louise fica do lado de fora à espera, enquanto ele se senta ao volante, mete marcha-atrás e sai da garagem. É um velho Volvo cor de laranja que ele não lava nem mantém arranjado. Louise não se importa. De qualquer modo, quase nunca vem a Bornholm: faz as encomendas à noite, e às onze da manhã seguinte chega o barco que lhe entrega as coisas. É Joachim que precisa, de vez em quando, de vir à ilha mãe, ou ao continente, para uma sessão de leitura pública. Vai de carro até Rønne, mete-o no ferry e depois retoma a viagem nas estradas do continente. Aldeias, bibliotecas, círculos de leitura, associações. Mas há já algum tempo que não se afasta daqui.

Joachim abre a porta a Louise. Ela senta-se. A cada movimento tem de forçar o próprio corpo, pesada como está. À luz do dia, o pó sobre o para-brisas é ainda mais evidente. Joachim tenta limpá-lo com o limpa-para-brisas, mas do esguicho saem apenas umas poucas gotas, depois mais nada. Por isso, aquela pequena quantidade de líquido limpa-vidros empasta com o pó, e a visibilidade é ainda mais escassa. Louise nota a irritação de Joachim. Típico dele. Nenhum sentido prático. Nem para a economia, nem para as limpezas, nem para a cozinha... nem para o líquido limpa-vidros.

– É mesmo necessário? – diz Louise, agastada, sem esperar uma resposta.

– Como estas coisas me irritam – resmunga Joachim, acrescentando qualquer coisa a propósito do facto de nunca ter visitado uma esquadra e de talvez isso se poder tornar útil para o livro que está a escrever.

– Procura no Google Imagens, assim evitamos este constrangimento.

– Para um escritor, o Google não chega.

Joachim explica-lhe que tudo está nos pormenores. A narração é como o diabo: esconde-se nos detalhes. Mas ela não lhe liga, só pensa em olhar para a paisagem, composta apenas de cores em movimento. Há quanto tempo não vem à ilha mãe? Para ela está muito bem a vida tranquila de Christiansø. Essa sim, tem tudo a ver com ela. Um microcosmos onde há tudo. Respira fundo, tentando relaxar. Deixar-se ir. O corpo todo está ainda tenso, desde o momento em que aquele estranho sujeito lhe entrou pela porta. Por que razão lhe provoca aquele efeito?

Chegam à esquadra, Joachim estaciona diante do inexpressivo edifício de dois andares. O sítio mais feio de Bornholm. Sobre isso, Louise não tem dúvidas. Só uma trepadeira – uma hera ou uma videira americana – tenta encobrir a verdade, ou seja, que este lugar não tem nada a ver com a beleza da ilha, mas quando muito com o oposto: fealdade, violência, embriaguez, acidentes e problemas. O carro da polícia já ali está estacionado. Louise e Joachim continuam sentados no carro, enquanto os agentes levam o homem para dentro.

Joachim pousa-lhe uma mão numa coxa e aperta-lha.

– Vai ser um instante.

 

*

Assim que transpõem a porta, encontram à frente um balcão comprido, tudo menos acolhedor, atrás do qual está um jovem, pouco mais do que um rapaz. E com demasiada cera no cabelo. Olha para eles com um ar perplexo mas, antes de ter tempo para dizer alguma coisa, dois polícias vêm receber Louise e Joachim. Um deles é o jovem que foi com um colega buscar o homem. – Morten Rask – apresenta-se pela segunda vez, como se os tivesse tomado por doentes de Alzheimer. A outra é uma mulher de baixa estatura, cabelos castanhos perfeitamente lisos, com corte à pajem, e um nariz de tal maneira torto que é impossível não olhar para ele. Aperta a mão de Joachim, depois a de Louise.

– Iben – diz. – Para começar, gostaríamos de falar convosco separadamente. Querem seguir-me?

Louise e Joachim trocam um olhar.

– Eu não me afasto da Louise – diz Joachim, com um tom decidido.

– Este meu colega dedicará à senhora todas as atenções necessárias, enquanto nós conversamos.

– Vai lá – diz Louise. – Arrumamos o assunto e assim podemos voltar para casa.

A agente está à espera no corredor, já abriu uma porta e parece impaciente.

Joachim suspira, encolhe os ombros, faz uma carícia rápida a Louise e sorri-lhe. Depois vira-se e passa pela porta, que volta a fechar-se atrás dele. O corredor fica deserto diante de Louise. Seis portas, três de cada lado, contou-as. Para qual delas será conduzida? Morten abre-lhe caminho com passos enérgicos e elásticos. Para diante de uma das portas. Grandes letras brancas: SALA DE INTERROGATÓRIOS 2. Interrogatórios? Que palavrão! Deve ser a primeira sala livre que encontraram. Será que levaram aquele sujeito estranho para a «sala de interrogatórios 1»? Louise segue o homem até ao interior da sala. O vão da porta é mais amplo do que ela esperava. Há dois janelões com um largo peitoril interior, provavelmente virados para norte, a julgar pela escassa luminosidade. O único mobiliário presente é uma mesa, no centro da sala, com duas cadeiras de cada lado. Morten afasta uma e faz-lhe sinal para se instalar, depois vai sentar-se em frente.

Pousa uma fotografia diante de Louise. Uma cena estival, de uma pequena família na varanda de uma moradia branca, luxuosa. Uma mesa posta com bandeirinhas, alguém faz anos. Sentada ao centro, uma senhora idosa, elegante, que tem ao colo uma miudinha loira. Sorriem ambas para a objetiva. Ao lado delas, um menino um pouco maior, moreno, virado a três quartos. Atrás deles, uma mulher leva para a mesa um tabuleiro com uma cafeteira de prata, chávenas de porcelana empilhadas e uma leiteira. A imagem é de tal maneira nítida que permite apreciar as mínimas incisões na porcelana e as delicadas decorações florais azuis. Destacam-se também as mãos bem tratadas da mulher. O olhar de Louise detém-se sobre um grande anel de turquesas e sobre o anel de noivado ao lado deste. Observa a figura inteira da mulher. Cabelos apanhados e bem arranjados, vestidinho de verão cor de marfim com bordados dourados, de ombros estreitos, direito mas não justo.

– Sabe dizer-me quem são estas pessoas? – pergunta Morten Rask.

– Não faço ideia.

– Não reconhece esta mulher?

O agente deixa pender o indicador sobre a fotografia, apontado para a mulher com o tabuleiro. Magra, mas com as curvas certas. Cabelos loiros, lábios carnudos, olhos... azuis? Difícil perceber. Louise tem dificuldade em focá-la. Tenta, mas por que razão é tão difícil olhar para ela?

– Nunca vi nenhuma destas pessoas na minha vida.

– Mas nota a semelhança?

– Talvez.

– É você?

– Não. Eu nunca conheci esta gente, acabei de lhe dizer isso. Nem sequer reconheço o lugar, nunca vi essa casa.

– Mas é parecida consigo.

– Acontece.

– Como é possível?

– Não faço ideia.

– Tem alguma gémea?

– Sou filha única.

– Uma meia-irmã?

– Acabei de lhe dizer que sou filha única.

– Tem a certeza.

– Como, desculpe? Claro que tenho a certeza.

O agente apoia-se nas costas da cadeira, cruza as mãos atrás da nuca, observa-a. O seu olhar deixa-a pouco à vontade.

– Quantos anos tem, Sr.ª Andersen?

– Quarenta e um.

– Portanto, nasceu em...

– Setenta e quatro.

Ele endireita as costas e cruza as pernas.

– Fale-me um pouco da sua família.

– Porquê?

Ele indica a mulher da imagem. Desta vez o indicador bate pesadamente na fotografia, toca-lhe, e isto dá a Louise uma sensação de desconforto que ela própria não compreende.

– Esta senhora chama-se Helene Söderberg. É você?

– Não. Já lhe disse.

– Então diga-me quem é.

– Louise Andersen. Mas o senhor sabe isso perfeitamente. Que história é esta?

– Quem é o seu pai, Sr.ª Andersen? Como é que consegue ter tanta certeza de que não tem uma irmã? Ou uma meia-irmã de que não tem conhecimento? Como é que sabe?

– Mas que história é esta? Porque é que fala comigo como se suspeitasse de alguma coisa?

– Por que razão não me quer falar da sua família?

Louise amolece, sente a cabeça andar à roda e está enjoada. Maldita dor de cabeça. Quando começou? Esta manhã? Ou ontem?

– Muito bem, minha senhora, vamos mudar de agulha. Mudou-se para a ilha há três anos. Antes disso, o que fazia?

– Nada de especial. Viajei por aí – diz Louise. Outra vez a dor de cabeça. Na testa. Estará a chocar alguma doença?

– Por aí?

– Sim, por aí – repete ela, irritada.

– Qual era a sua profissão?

– Eh... nada de especial. Trabalhava em cafetarias, viajava... – Louise não tem muitas lembranças daquelas viagens. Nem sequer do orfanato. Quando chegou à ilha, precisava de se esquecer de tudo. De viver no presente. Será isto crime?

– Sr.ª Andersen?

– Sim.

– Pode dar-me o nome de algum seu antigo patrão? Assim talvez eu pudesse contactá-lo...

O agente folheia alguns documentos e entretanto a sua voz desaparece. Louise não a suporta, aquela voz. E também não suporta o ruído seco dos papéis que deslizam uns sobre os outros, nem a pele áspera da ponta do dedo indicador. Fita aquele dedo, como hipnotizada, depois sente outra náusea e fecha os olhos. A sala oscila, abana como o barco de Christiansø para Gudhjem, aquele movimento ficou dentro dela. Obscuridade. Volta logo a abrir os olhos. Não quer ser sugada pela escuridão. Ele continua a folhear, concentrado, com as sobrancelhas franzidas. De que é que ele está à procura? Pelo menos, não está a lançar-lhe nenhum olhar acusador. Louise fita a mulher de vestidinho claro, observa a casa, a mulher idosa, as crianças. Não reconhece nada.