ORGANIZANDO NOSSO MUNDO SOCIAL
Como os seres humanos se conectam hoje
Em 16 de julho de 2013, uma nova-iorquina mentalmente desequilibrada sequestrou seu filho de sete meses de uma agência de adoção em Manhattan.1 Nesses casos, a experiência demonstra que as chances de encontrar a criança diminuem drasticamente a cada hora que passa. A polícia temia pela segurança do bebê e, sem pistas, recorreu a uma vasta rede social criada para fornecer alertas de situações de emergência nacional — enviou mensagens de texto para milhões de celulares na cidade. Pouco antes das quatro da madrugada, vários nova-iorquinos foram acordados pela mensagem de texto:
O alerta, que mostrava a placa do carro usado para sequestrar a criança, resultou na identificação do carro por alguém que chamou a polícia de Nova York e a criança foi recuperada em segurança.2 A mensagem atravessou o filtro de atenção das pessoas.
Três semanas depois, a polícia rodoviária da Califórnia divulgou um alerta regional, e posteriormente estadual, relativo ao sequestro de duas crianças perto de San Diego. O alerta foi enviado por mensagem de texto para milhões de celulares na Califórnia, pelo Twitter, e repetido nos grandes letreiros normalmente usados para anunciar as condições de trânsito. Novamente, as vítimas foram recuperadas ilesas.
Não foi apenas a tecnologia que tornou isso possível. Os seres humanos têm o impulso inato de proteger as crianças, mesmo as não aparentadas. Sempre que lemos sobre ataques terroristas ou atrocidades de guerra, as reações mais viscerais e violentas são ante danos a crianças. Esse sentimento parece ser universal e inato.
O alerta Amber é um exemplo de crowdsourcing — técnica em que milhares ou até milhões de pessoas ajudam a resolver problemas que seriam impossíveis ou difíceis de resolver de qualquer outra maneira. O crowdsourcing tem sido usado para todo tipo de questões, incluindo a contagem de pássaros e animais selvagens, o fornecimento de exemplos e citações aos editores do Dicionário Oxford de Inglês e a ajuda para decifrar textos ambíguos. Os militares e as forças de segurança norte-americanos interessaram-se pela questão porque isso aumenta potencialmente a quantidade de dados que recebem, ao transformar uma grande quantidade de civis em integrantes de uma equipe para coletar informações. O crowdsourcing é apenas um exemplo da organização de nosso mundo social — de nossas redes sociais — para aproveitar a energia, a qualificação e a presença física de muitos indivíduos em benefício de todos. Em certo sentido, representa outra forma de exteriorizar o cérebro humano, uma maneira de ligar as atividades, percepções e cognições de uma grande quantidade de cérebros numa atividade conjunta para o bem comum.
Em dezembro de 2009, a Darpa ofereceu 40 mil dólares para quem conseguisse localizar dez balões que ela havia colocado bem à vista no continente norte-americano.3 Darpa é a sigla para Defense Advanced Research Projects Agency, agência de projetos de pesquisa avançada de defesa, organismo subordinado ao Departamento de Defesa norte-americano. A Darpa criou a internet (mais precisamente, projetaram e criaram a primeira rede de computadores, a Arpanet, a partir da qual foi modelada a atual World Wide Web, a internet).4 A questão era como os Estados Unidos poderiam resolver problemas de segurança nacional e defesa em grande escala, e testar a capacidade de mobilização do país em períodos de crise. Substitua “balões” por “bombas sujas” ou outros explosivos e fica clara a importância do problema.
Num dia predeterminado, a Darpa escondeu dez balões meteorológicos vermelhos de 2,5 metros de diâmetro em vários locais no país. O prêmio de 40 mil dólares seria dado à primeira pessoa ou equipe, em qualquer lugar do mundo, que conseguisse identificar corretamente a localização exata de todos os dez balões. Assim que anunciaram a competição, os peritos frisaram que seria impossível resolver o problema por meio das técnicas tradicionais de coleta de informação.5
Houve grande especulação na comunidade científica sobre como seria resolvido o problema — durante semanas isso preencheu as conversas do horário do almoço em universidades e laboratórios de pesquisa em todo o mundo. A maioria supôs que a equipe vencedora usaria imagens de satélites, mas era aí que o problema ficava difícil. Como dividiriam os Estados Unidos em seções vasculháveis com definição alta o bastante para poder localizar os balões, e ainda assim viabilizar uma navegação rápida pela enorme quantidade de fotos? Será que as imagens de satélites seriam analisadas em salas cheias de seres humanos ou a equipe vencedora aperfeiçoaria um algoritmo de visão por computador para distinguir os balões vermelhos de outros balões e de outros objetos redondos e vermelhos que não representavam o objetivo? (Solucionando de fato o problema Onde está Wally?, algo que os programas de computador só conseguiram fazer em 2011.)6
Uma especulação adicional girava em torno do uso de aviões de reconhecimento, telescópios, sonar e radar. E espectrogramas, sensores químicos, lasers? Tom Tombrello, professor de física na Caltech, preferia uma abordagem sorrateira: “Eu teria descoberto uma maneira de chegar aos balões antes de serem lançados, e colocar neles aparelhos de sinalização de GPS. Em seguida, achá-los seria banal”.
A competição teve 53 equipes inscritas, num total de 4300 voluntários. A equipe vencedora, um grupo de pesquisadores do MIT, solucionou o problema em pouco menos de nove horas. Como fizeram? Não através de imagens altamente sofisticadas de satélites ou de reconhecimento, como muitos imaginaram, mas — como vocês podem adivinhar — construindo uma enorme rede social de colaboradores e observadores só para isso — em suma, por meio do crowdsourcing. A equipe do MIT alocou 4 mil dólares para encontrar cada balão. Se você avistasse o balão na vizinhança e lhes desse a localização correta, receberia 2 mil dólares. Se um amigo seu, recrutado por você, o achasse, esse amigo receberia os 2 mil dólares, e você, mil dólares simplesmente por ter encorajado seu amigo a se juntar ao esforço. Se um amigo do seu amigo achasse o balão, você receberia quinhentos dólares por essa referência de terceiro grau, e assim por diante. A probabilidade de um único indivíduo achar um balão é infinitesimalmente pequena. Mas se todo mundo que você conhece recrutar seus conhecidos, e cada um destes recrutar quem ele conhece, você constrói uma rede de olheiros em terra teoricamente capaz de cobrir o país inteiro. Um dos problemas interessantes sobre o qual os engenheiros de rede e os funcionários do Departamento de Defesa haviam especulado é quantas pessoas seriam necessárias para cobrir o país inteiro no caso de uma verdadeira emergência, tal como a busca de uma arma atômica errante. No caso dos balões da Darpa, foram necessárias apenas 4665 pessoas e menos de nove horas.
Um grande número de pessoas — o público — é capaz de ajudar a resolver grandes problemas fora das instituições tradicionais como as entidades públicas. A Wikipédia é um exemplo de crowdsourcing: qualquer pessoa que tenha informação é encorajada a contribuir, e, através desse expediente, ela se tornou a maior fonte mundial de referência.7 O que a Wikipédia fez pelas enciclopédias a Kickstarter fez pelo capital de risco: mais de 4,5 milhões de pessoas contribuíram com mais de 750 milhões de dólares para financiar cerca de 50 mil projetos criativos de cineastas, músicos, pintores, designers e outros artistas.8 A Kiva aplicou esse conceito ao banco, usando crowdsourcing para promover rapidamente a independência econômica, oferecendo microempréstimos para ajudar a criar pequenos negócios em países em desenvolvimento. Nos seus primeiros nove anos, a Kiva distribuiu empréstimos num total de 500 milhões de dólares para 1 milhão de pessoas em setenta países, com contribuições de quase 1 milhão de financiadores.
As pessoas que compõem a multidão no crowdsourcing são típicos amadores e entusiastas de hobbies, embora não necessariamente precise ser assim. O crowdsourcing é talvez mais evidente como forma de avaliação de consumidores através de Yelp, Zagat e avaliações de produtos em sites como a Amazon.com. Nos velhos tempos pré-internet, havia uma espécie de funcionário perito em avaliação, que compartilhava sua impressão sobre os produtos e serviços em artigos de jornais ou revistas como a Consumer Reports. Agora, com TripAdvisor, Yelp, Angie’s List e outros, as pessoas comuns têm o poder de escrever resenhas sobre suas próprias experiências. Isso é uma faca de dois gumes. No melhor dos casos, podemos aprender com a experiência de centenas de pessoas se determinado motel é limpo e silencioso, ou se tal restaurante é sujo e serve porções pequenas. Por outro lado, há vantagens no velho sistema. Os avaliadores de antes da internet eram profissionais — viviam das críticas que faziam — e assim tinham uma experiência rica com que podiam contar. Se você estivesse lendo a crítica de um restaurante, estaria lendo o texto de quem já comera em muitos restaurantes, e não de alguém que tinha pouca experiência para poder comparar. Os críticos de carros e equipamento de alta fidelidade tinham um conhecimento técnico do assunto, e eram capazes de analisar o produto nas suas páginas, testando e prestando atenção em coisas a que poucos dariam atenção e que, no entanto, são importantes — como o funcionamento de freios antiderrapantes no asfalto molhado.
O crowdsourcing tem sido uma força democratizante na crítica, mas precisamos ser um pouco céticos quanto a ele. É possível confiar na multidão? Sim e não. O tipo de coisas de que todo mundo gosta pode não ser o tipo de coisa de que você gosta. Pense em um músico ou um livro que você adora, mas que não são populares. Ou em um livro ou um filme populares, mas que na sua opinião são horríveis. Por outro lado, em termos de julgamentos quantitativos, as multidões podem acertar bastante. Pegue um grande jarro de vidro cheio de centenas de jujubas e peça às pessoas que avaliem quantas há ali. Embora a maioria das respostas provavelmente seja muito errada, a média do grupo será surpreendentemente próxima à resposta certa.9
Amazon, Netflix, Pandora e outros fornecedores de conteúdo já usaram a sabedoria da multidão num algoritmo matemático chamado filtragem colaborativa. Trata-se de uma técnica em que as correlações e co-ocorrências de comportamento são rastreadas e usadas para fazer recomendações. Se você já viu uma pequena frase nos sites da internet que diz algo como “os consumidores que compraram isto também gostaram daquilo”, então já teve uma experiência em primeira mão da filtragem colaborativa. O problema com esses algoritmos é que eles não levam em conta muitas nuances e circunstâncias que podem interferir na sua precisão. Se você acabou de comprar um livro de jardinagem para tia Berta, talvez receba links sobre livros de jardinagem — recomendados só para você! — porque o algoritmo não sabe que você detesta jardinagem, e só comprou o livro para dar de presente. Se já baixou filmes para seus filhos, e viu que as recomendações do site para você eram uma enxurrada de filmes infantis, quando o que você procurava era um bom drama para adultos, então viveu o outro lado da história.
Os sistemas de navegação também usam uma forma de crowdsourcing. Quando o Waze ou o Google Maps no seu smartphone lhe mostram o melhor caminho para o aeroporto, com base no fluxo atualizado do tráfego, como sabem disso? Rastreando seu celular e os celulares de milhares de outros usuários do aplicativo para saber a velocidade com que esses celulares estão fluindo no tráfego. Se você estiver preso num engarrafamento, seu celular transmitirá as mesmas coordenadas no GPS durante vários minutos; se o tráfego está fluindo depressa, seu celular muda de posição igualmente depressa com o carro, e esses aplicativos podem recomendar caminhos com base nisso. Como todo crowdsourcing, a qualidade do sistema global depende fundamentalmente da existência de uma multidão de usuários. Nesse sentido, eles são semelhantes a telefones, faxes e e-mail: se apenas uma ou duas pessoas os possuem, não adianta muito — sua utilidade cresce na medida da quantidade de usuários.
O artista e engenheiro Salvatore Iaconesi usou o crowdsourcing para compreender as opções terapêuticas para seu câncer de cérebro, colocando todos os seus exames médicos on-line. Recebeu 500 mil respostas. Formaram-se equipes, à medida que os médicos debatiam as opções terapêuticas entre si. “Vieram soluções de toda parte do planeta, abrangendo milhares de anos da história e das tradições humanas”, disse Iaconesi. Examinando os conselhos, ele escolheu a cirurgia convencional, combinada com algumas terapias alternativas, e o câncer está agora em fase de remissão.10
Um dos empregos mais comuns do crowdsourcing é feito nos bastidores: reCAPTCHAs. São as palavras distorcidas que muitas vezes vemos nos sites.11 Seu objetivo é impedir os computadores, ou “bots”, de ter acesso a sites seguros, porque os computadores têm muita dificuldade em solucionar esses problemas, e os seres humanos geralmente não. (CAPTCHA é o acrônimo de Completely Automated Public Turing Test to Tell Computers and Humans Apart [Teste de Turing Público Completamente Automatizado para Diferenciar Computadores de Humanos]. Os reCAPTCHAs têm esse nome porque fazem uma reciclagem — reciclam o poder de processamento humano.)12 Os reCAPTCHAs agem como sentinelas contra os programas automatizados que tentam se infiltrar em sites para roubar endereços de e-mail e senhas, ou apenas explorar os usuários (por exemplo, programas de computador que compram grande quantidade de entradas para concertos e depois procuram vendê-las a preços inflacionados).13 A origem dessas palavras distorcidas? Em muitos casos, páginas de velhos livros e manuscritos que o Google está digitalizando, e que seus computadores têm dificuldade em decifrar. Individualmente, cada reCAPTCHA leva apenas cerca de dez segundos para ser solucionado, mas, com mais de 200 milhões deles sendo solucionados todo dia, isso resulta em mais de 500 mil horas de trabalho feito em um dia. Por que não transformar todo esse tempo em algo produtivo?
A tecnologia para escanear automaticamente textos escritos e transformá-los em texto editável não é perfeita. Muitas palavras que os seres humanos são capazes de ler são lidas de maneira equivocada pelos computadores. Considere o seguinte exemplo de um livro que está sendo escaneado pelo Google:14
Depois que o texto é escaneado, dois programas diferentes de reconhecimento ótico de caracteres tentam comparar os borrões na página a palavras conhecidas. Se o programa não chega a uma conclusão, a palavra é considerada insolúvel, e, em seguida, o reCAPTCHA a utiliza como desafio a ser solucionado pelos usuários. Como o sistema sabe que você adivinhou corretamente uma palavra desconhecida? Não sabe! Mas o reCAPTCHA compara as palavras desconhecidas com palavras conhecidas; eles presumem que se você solucionou a palavra conhecida, você é um ser humano, e que seu palpite sobre a palavra desconhecida é razoável. Quando várias pessoas concordam quanto à palavra desconhecida, considera-se que ela foi solucionada, e essa informação é incorporada ao processo de escaneamento.
O Mechanical Turk da Amazon costuma ser usado em tarefas nas quais os computadores não são especialmente eficientes, mas que os seres humanos achariam tediosas e repetitivas. Uma experiência recente de psicologia cognitiva publicada na revista Science utilizou o Mechanical Turk da Amazon para encontrar seus participantes. Os voluntários (que receberam três dólares cada um a título de pagamento) precisavam ler uma história e em seguida se submeter a testes que mediam seu grau de empatia. A empatia demanda a habilidade de trocar de perspectiva sobre a mesma situação ou interação. Isso requer que se use o modo devaneio do cérebro (a rede negativa para tarefas), que envolve o córtex pré-frontal, o cingulado e suas conexões com a junção temporoparietal.15 Os republicanos e democratas não usam essas regiões de empatia de seus cérebros ao pensar uns nos outros. A descoberta da pesquisa foi que pessoas que leem ficção literária — livros clássicos, aclamados pela crítica, também chamados de alta literatura (em contraposição à ficção popular ou não ficção) — são mais capazes de detectar as emoções de outra pessoa, e a teoria proposta era a de que a ficção literária envolve o leitor num processo de decodificar os motivos e pensamentos dos personagens, ao contrário da ficção popular e da não ficção, que são menos complexas. A experiência exigia centenas de participantes, e teria levado muito mais tempo para ser realizada usando participantes físicos no laboratório.
É claro que trapacear também faz parte da natureza humana, e quem estiver usando o crowdsourcing precisa empregar freios e contrapesos. Ao ler uma crítica on-line de um restaurante, você não tem como saber se ela foi escrita por alguém que de fato jantou lá ou se foi apenas o cunhado do dono. Para a Wikipédia, esses pesos e contrapesos são feitos pela simples quantidade de pessoas que contribui e critica os artigos. O pressuposto tácito é que enganadores, mentirosos e outras pessoas com diferentes graus de sociopatia constituem uma minoria em qualquer coletivo humano, e que as pessoas de bem triunfarão sobre as do mal. Infelizmente isso nem sempre é verdade, mas parece ser verdade o suficiente na maioria dos casos para que o crowdsourcing seja útil e muito confiável. Ele constitui também, em muitos casos, uma alternativa barata ao que muitos especialistas contratados custaria.
Os críticos defendem o argumento de que “a multidão está sempre certa”, mas já foi demonstrado que isso não é verdade. Alguns membros da multidão podem ser teimosos e dogmáticos, e ao mesmo tempo desinformados, e a existência de um painel de peritos supervisores contribui bastante para a exatidão e o sucesso de programas de crowdsourcing como a Wikipédia. Como explica Adam Gopnik, ensaísta da New Yorker:
Quando a concordância é fácil, ótimo, e quando há discordância generalizada sobre valores e fatos, como, digamos, sobre a origem do capitalismo, também é ótimo; você tem os dois lados.16 O problema é quando um lado está certo e o outro está errado, e não se sabe quem está errado. As páginas sobre a questão da autoria dos textos de Shakespeare [Wikipédia] e do Sudário de Turim são palco de conflito constante, e estão repletas de informação não confiável. Os criacionistas ocupam o ciberespaço tão bem quanto os evolucionistas, e expandem suas mentes da mesma maneira. Nosso problema não é especialmente a falta de inteligência, mas o poder obstinado da burrice em estado puro.
As redes sociais modernas estão repletas de velhas e estúpidas disfunções e novas oportunidades maravilhosas.
As relações sociais modernas não são complexas demais para serem organizadas?17
Algumas das maiores mudanças sociais que enfrentamos são culturais, mudanças no nosso mundo social e na maneira como interagimos entre nós. Imagine que você esteja vivendo no ano 1200. Você provavelmente teria quatro ou cinco filhos, e mais quatro ou cinco que já morreram antes de completar dois anos. Você moraria numa casa de um só aposento, com chão de terra e uma lareira no centro para esquentar. Você compartilharia essa casa com seus pais, filhos e uma família ampliada de tias, tios, sobrinhos e sobrinhas, todo mundo apertado. Sua rotina diária estaria intimamente ligada à dos cerca de vinte familiares.18 Você conheceria umas duzentas pessoas, a maior parte delas durante a vida toda.19 Os estranhos seriam vistos com desconfiança pelo fato de ser raro encontrá-los. A quantidade de pessoas que você conheceria durante sua vida inteira seria menor do que a de pessoas pelas quais você passaria durante a hora do rush na Manhattan de hoje.
Por volta de 1850, o grupo familiar europeu médio havia diminuído de vinte pessoas vivendo sob o mesmo teto para dez, e, em 1960, para exatamente cinco.20 Hoje, 50% dos americanos moram sozinhos.21 Menos indivíduos têm filhos, e, os que têm, têm menos. Durante dezenas de milhares de anos, a vida humana girou em torno da família. Na maior parte do mundo industrializado, não gira mais. Em vez disso, criamos vários mundos sociais que se sobrepõem — no trabalho, através de hobbies, nos nossos bairros. Nós nos tornamos amigos dos pais dos amigos de nossos filhos, ou dos donos dos cachorros amigos dos nossos. Criamos e mantemos redes sociais com nossos amigos da universidade ou do colégio, mas cada vez menos com a família. Conhecemos mais estranhos e os incorporamos às nossas vidas de muitas maneiras novas.
As noções de privacidade que achamos normais hoje são muito diferentes daquelas de apenas duzentos anos atrás. Anos depois do início do século XIX, ainda era uma prática comum dividir quartos e até mesmo camas nas hospedarias de beira da estrada.22 Os diários nos revelam hóspedes reclamando de outros hóspedes retardatários que chegavam no meio da noite e deitavam em sua cama. Como observa Bill Bryson no seu livro cheio de detalhes íntimos, Em casa, “era inteiramente normal que um criado dormisse ao pé da cama de seu senhor, a despeito do que o senhor pudesse estar fazendo debaixo das cobertas”.23
As relações sociais humanas baseiam-se em hábitos de reciprocidade, altruísmo, comércio, atração física e procriação. E aprendemos muito sobre essa realidade psicológica de nossos parentes biológicos mais próximos, os macacos e os grandes primatas. Existem consequências secundárias desagradáveis da intimidade social — rivalidade, ciúmes, desconfiança, mágoas, competição por maior projeção social. Os macacos e primatas vivem em mundos sociais muito menores do que os nossos hoje, geralmente em grupos com menos de cinquenta indivíduos. Mais de cinquenta levaria a rivalidades que destroem sua unidade. Por outro lado, os seres humanos têm convivido em vilas e cidades com dezenas de milhares de pessoas há vários milhares de anos.
Um vaqueiro no Wyoming ou um escritor no Vermont rural talvez não encontre ninguém ao longo de uma semana, enquanto um vendedor do Walmart talvez faça contato visual com 1700 pessoas por dia.24 As pessoas que vemos constituem grande parte do nosso mundo social, e nós as categorizamos implicitamente, dividindo-as numa quantidade infinita de categorias: família, amigos, colegas de trabalho, fornecedores de serviços (caixa de banco, vendedor de mercearia, tintureiro, mecânico, jardineiro), consultores profissionais (médicos, advogados, contadores). Essas categorias são ainda mais subdivididas — sua família inclui uma família nuclear. Parentes que você gosta de encontrar e parentes que não. Há colegas de trabalho que você pode sair para tomar uma cerveja depois do expediente e outros que não. E o contexto importa: as pessoas com quem você gosta de conviver no trabalho não são necessariamente as que você gostaria de encontrar num fim de semana na praia.
Além da complexidade das relações sociais existem fatores contextuais ligados ao trabalho, ao lugar onde você mora e à sua personalidade. Um vaqueiro do Wyoming pode incluir no seu mundo social um pequeno número de pessoas mais ou menos constante; artistas, executivos das quinhentas empresas mais valiosas da Fortune e pessoas expostas ao público podem conhecer centenas de pessoas novas toda semana, sendo que irão querer interagir de novo com algumas delas por vários motivos pessoais ou profissionais.
Então como você acompanha essa horda de pessoas com quem deseja se conectar? O célebre advogado Robert Shapiro recomenda este método prático:
“Quando conheço alguém novo, faço anotações — no seu cartão profissional ou num pedaço de papel — sobre onde e quando o conheci, sua área profissional, e, se tivermos sido apresentados por alguém, quem o apresentou. Isso me ajuda a contextualizar o elo que tenho com ele. Se tivermos almoçado juntos, anoto quem mais estava presente. Transmito essas informações à minha secretária, que digita tudo e o acrescenta à lista dos meus contatos. É claro que o sistema se torna mais elaborado com quem interajo regularmente. Depois que acabo os conhecendo, talvez acrescente à lista de contatos o nome da esposa, dos filhos, seus hobbies, coisas que fizemos, registrando a data e o lugar, talvez a data de seu aniversário.”25
David Gold, especialista de produtos médicos regional da Pfizer, utiliza uma técnica similar.
“Imagine que conheci o dr. Ware em 2008. Anoto o que conversamos num aplicativo de anotações no meu telefone e mando isso para mim mesmo por e-mail. Então, se o encontrar novamente em 2013, posso dizer: ‘Lembra que a gente estava conversando sobre naltrexona, ou algo assim?’. Isso não só fornece um contexto para interações, mas dá continuidade. Embasa e organiza a cabeça de ambas as partes, e assim também a interação.”26
Craig Kallman é presidente e CEO da Atlantic Records em Nova York — sua carreira depende de se manter em contato com uma quantidade enorme de pessoas: agentes, empresários, produtores, funcionários, colegas do ramo, diretores de estações de rádio, varejistas e, claro, os muitos músicos no seu catálogo, de Aretha Franklin a Flo Rida, do Led Zeppelin a Jason Mraz, Bruno Mars e Missy Elliott.27 Kallman tem uma lista de contatos eletrônica de 14 mil pessoas. Parte desse arquivo inclui a última vez em que se falaram e como os integrantes estão conectados entre si no seu banco de dados. A grande vantagem que o computador traz para um banco de dados desse tamanho é que você pode fazer buscas por intermédio de diversos parâmetros. Depois de um ano, Kallman talvez se lembre apenas de uma ou duas coisas sobre alguém que conheceu recentemente, mas pode fazer uma busca na lista de contatos e achar o registro certo. Talvez lembre apenas que almoçou com a pessoa em Santa Monica há cerca de um ano, ou que conheceu alguém por intermédio de Quincy Jones. Ele pode verificar, pela data do último contato, quem não encontra há um bom tempo.
Como vimos no Capítulo 2, as categorias são muitas vezes mais úteis quando possuem limites flexíveis e vagos. E as categorias sociais ganham muito com isso. O conceito de “amigo” depende da distância a que você se encontra de seu lar, de quão movimentada é sua vida social e de muitas outras circunstâncias. Se você topar com um velho amigo do colégio quando estiver visitando Praga, talvez aprecie jantar com ele. Mas em casa, onde você conhece uma porção de gente com quem prefere passar seu tempo, talvez jamais fizesse um programa com ele.
Organizamos nossas amizades em torno de várias motivações e necessidades: razões históricas (mantemos contato com velhos amigos do colégio e gostamos da sensação de continuidade com períodos anteriores de nossas vidas), admiração mútua, compartilhamento de objetivos, atração física, características complementares, ascensão social... Em condições ideais, os amigos são pessoas com quem podemos ser verdadeiramente como somos, com quem podemos baixar a guarda sem medo. (Pode-se argumentar que o amigo é uma pessoa com quem nos permitimos entrar no modo devaneio, com quem podemos trocar e destrocar diferentes modos de atenção sem nos sentirmos constrangidos.)
A amizade obviamente também gira em torno de gostos e aversões compartilhados — é mais fácil ser amigo de quem gosta de fazer as mesmas coisas de que gostamos. Mas mesmo isso é relativo. Se você é um entusiasta da confecção de colchas e existe apenas outra pessoa na cidade assim, o interesse compartilhado talvez os aproxime. Mas, numa convenção de fabricantes de colchas, talvez você descubra alguém cujo gosto por colchas combine melhor com o seu, e portanto haverá mais afinidade e potencialmente uma ligação mais estreita. É por isso que a companhia daquele amigo e compatriota é bem-vinda em Praga. (Finalmente alguém que sabe falar inglês e pode conversar sobre o Super Bowl!) E também é por isso que esse amigo se torna menos interessante quando você volta para casa, onde existem pessoas cujos interesses se alinham melhor com os seus.
Uma vez que viviam em grupos sociais que mudavam lentamente e encontravam as mesmas pessoas no decorrer de toda a vida, nossos ancestrais podiam memorizar quase todos os detalhes sociais de que precisavam saber. Hoje em dia, muitos de nós não conseguem acompanhar todas as pessoas que já conhecemos e as pessoas novas que passamos a conhecer. A neurociência cognitiva nos aconselha a exteriorizar a informação para clarear a mente. É por isso que Robert Shapiro e Craig Kallman mantêm arquivos de contatos com informação contextual sobre onde conheceram uma nova pessoa, o que conversaram ou quem os apresentou. Além disso, pequenos reparos ou notas no arquivo podem ajudar a organizar os registros — amigos de trabalho, amigos de colégio, amigos de infância, melhores amigos, conhecidos, amigos de amigos —, e não há motivo para não fazer múltiplos reparos num arquivo. Num banco de dados eletrônico você não precisa arrumar os registros, pode simplesmente procurar qualquer um que contenha a palavra-chave pela qual você se interessa.
Reconheço que isso pode parecer um trabalho tedioso — passar o tempo organizando dados sobre seu mundo social em vez de compartilhar seu tempo de fato com as pessoas. Acompanhar os aniversários ou saber qual o vinho predileto de alguém não exclui uma vida social dotada de espontaneidade, e não implica a necessidade de agendar rigidamente todo encontro. Trata-se de organizar a informação que você possui para permitir que essas interações espontâneas sejam emocionalmente mais significativas.
Não é preciso ter uma lista de contatos tão repleta de gente quanto a do CEO da Atlantic Records para sentir a pressão do trabalho, da família e do tempo que impede que você tenha a vida social que deseja. Linda, a executiva assistente apresentada no capítulo anterior, sugere uma solução prática para se manter em contato com uma vasta gama de amigos e contatos sociais — use um lembrete. Algo para despertar sua memória. Funciona melhor numa anotação em papel ou no seu calendário eletrônico. Você configura uma frequência — digamos, a cada dois meses — para fazer contato com seus amigos. Quando o lembrete surgir, se você não se comunicou com eles desde a última vez, mande um bilhete, texto, post no Facebook, ou dê um telefonema só para ver como estão. Depois de algumas experiências desse tipo, você se acostumará a certo ritmo e começará a ter prazer em manter contato com eles dessa forma; talvez eles até comecem a entrar em contato com você, reciprocamente.
Exteriorizar a memória não é algo que precisa ser feito em artefatos concretos como calendários, arquivos de lembretes, celulares, ganchos de chaves e fichas de papel — pode incluir outras pessoas. O professor é o maior exemplo de alguém que pode agir como repositório de informações herméticas de que você raramente vai precisar.28 Ou sua esposa pode se lembrar do nome daquele restaurante de que você gostou tanto em Portland. A parte da memória externa que inclui outras pessoas é conhecida tecnicamente como memória transativa, e abrange quem na sua rede social possui o conhecimento que você busca29 — saber, por exemplo, que se você perder o número do celular de Jeffrey, pode consegui-lo com sua esposa, Pam, ou dos filhos, Ryder e Aaron. Ou que, se não conseguir lembrar em que dia cairá o dia de Ação de Graças canadense este ano (sendo que você não está perto da internet), pode perguntar a seu amigo canadense Lenny.
Os casais que vivem uma relação íntima têm uma maneira de dividir a responsabilidade sobre o que precisa ser lembrado, e isso é na sua maior parte implícito, sem que cheguem a determinar essa tarefa mutuamente. Por exemplo, na maioria dos casais, cada membro domina uma área de conhecimento que o outro não tem, e essas áreas são bem conhecidas dos dois. Quando chega uma informação que diz respeito ao casal, aquele que tem o respectivo conhecimento assume a responsabilidade pela informação, e o outro deixa que seu companheiro tome as providências (desobrigando-se da necessidade de fazê-lo). Quando chega uma informação que não pertence à área de informação de nenhum dos dois, há normalmente uma breve negociação sobre quem cuidará disso. Essas estratégias de memória transativa se combinam, assegurando que a informação necessária ao casal seja sempre recolhida por pelo menos um dos parceiros.30 Esse é o motivo pelo qual, depois de uma relação muito longa, quando um dos parceiros morre, o outro pode ficar em apuros, sem saber como navegar por vastos pedaços da vida cotidiana. Pode-se dizer que uma grande parte do nosso armazenamento de dados se encontra dentro do pequeno grupo de nossas relações pessoais.
Grande parcela de ter sucesso na organização de nosso mundo social depende, como tudo o mais, de identificar o que queremos dele. Uma parte de nossa herança primata faz com que a maioria de nós queira se sentir pertencente a um grupo, se encaixar em algum canto.31 O grupo a que pertencemos tem menos importância para uns do que para outros, desde que façamos parte de um grupo e não fiquemos inteiramente isolados. Embora existam diferenças individuais, ficar muito tempo sozinho provoca mudanças neuroquímicas que podem resultar em alucinações, depressão, pensamentos suicidas, comportamento violento e até mesmo psicose.32 O isolamento social é também um fator de risco de parada cardíaca e morte, mais ainda do que fumar.33
E apesar de muitos acharem que preferem ficar sozinhos, nem sempre sabemos o que queremos.34 Em uma experiência, pessoas que vão de transporte público de casa para o trabalho foram perguntadas sobre qual seria sua viagem ideal: preferiam ficar sentadas quietas, sozinhas, ou conversar com a pessoa a seu lado? A resposta majoritária foi que preferiam ficar sentadas sozinhas — a ideia de ter que travar uma conversa com o companheiro de assento era aborrecida (confesso que eu teria respondido a mesma coisa). Os viajantes foram então orientados a sentar sozinhos e “usufruir sua solidão” ou conversar com a pessoa sentada ao lado. Os que conversaram com o vizinho de assento relataram ter tido uma viagem significativamente mais agradável. E os resultados não tinham a ver com diferenças de personalidade — continuavam os mesmos no caso de indivíduos extrovertidos ou tímidos, abertos ou reservados.35
No alvorecer de nossa espécie, o pertencimento ao grupo era essencial para a proteção contra predadores e tribos inimigas, para o compartilhamento de recursos alimentares limitados, a criação das crianças e cuidados quando se era ferido. Ter uma rede social preenche uma necessidade biológica profunda e ativa regiões do cérebro, no córtex pré-frontal anterior, que nos ajudam a nos posicionarmos diante dos outros e monitorar nossa posição social. Também ativa os centros emocionais no sistema límbico do cérebro, inclusive a amígdala, que nos ajudam a regular as emoções. Há um bem-estar na sensação de pertencimento.36
Então entram em cena os sites de redes sociais. De 2006 a 2008, o MySpace foi a rede social mais visitada no mundo, e o site mais visitado nos Estados Unidos, superando até o Google.37 Hoje é o equivalente na internet a uma cidade fantasma, com bolas digitais de vegetação sendo sopradas por suas ruas vazias. O Facebook cresceu rapidamente para se tornar a rede social dominante, que hoje tem mais de 1,2 bilhão de usuários regulares por mês, mais de um a cada sete habitantes do planeta.38 Como fez isso? Ele nos atraiu pela novidade e pelo nosso impulso de nos conectarmos a outras pessoas. Permitiu-nos manter contato com um grande número de pessoas apenas com um pequeno investimento de tempo. (E, para aqueles que realmente preferem ficar sozinhos, ele permite que permaneçam conectados com os outros sem ter que vê-los pessoalmente!)
Depois de toda uma vida tentando acompanhar as pessoas, e de pedacinhos de papel com o número de seus telefones e endereços, agora você pode procurá-las pelo nome e ver o que estão fazendo, e deixá-las ver o que você está fazendo, sem nenhum problema. É preciso lembrar que, historicamente, fomos criados em pequenas comunidades em que todos que conhecíamos em criança eram conhecidos pelo resto da vida. A vida moderna não funciona assim. Temos uma grande mobilidade. Saímos de casa para cursar a universidade ou para trabalhar. Saímos de casa ao formar uma família. Nossos cérebros carregam um anseio primordial e residual de saber para onde foi toda essa gente que fez parte de nossas vidas, de reconectar, de chegar a uma certeza. As redes sociais nos permitem fazer tudo isso sem exigir muito tempo. Por outro lado, como muitos já observaram, perdemos contato com essas pessoas por algum motivo! Houve uma rejeição natural, nós não seguimos as pessoas de que não gostávamos ou cuja relevância para nossas vidas diminuiu com o passar do tempo. Agora elas podem nos encontrar e ter a expectativa de poder nos encontrar. Mas, para milhões de pessoas, o lado positivo supera o negativo. Recebemos feeds de notícias, o equivalente ao pregoeiro público ou às fofocas do salão de beleza, nos nossos tablets e telefones, num fluxo contínuo. Podemos modelar esses fluxos para entrar em contato com quem ou aquilo que mais queremos, e ter nossa própria fonte de informação social. Não se trata de uma substituição do contato pessoal, mas algo suplementar, uma maneira fácil de permanecer ligado a pessoas dispersas e bastante ocupadas.39
Há talvez uma ilusão em tudo isso. A rede social fornece extensão, mas raramente profundidade, e nós ansiamos pelo contato pessoal, ainda que o contato on-line reduza um pouco esse anseio. Por fim, o contato on-line funciona melhor como um suplemento e não como substituto do contato pessoal. O custo de toda essa nossa conectividade eletrônica parece ser o de limitar nossa capacidade biológica de nos conectarmos com os outros.40 Outra gangorra em que uma coisa substitui a outra na nossa atenção.
Além do impulso mínimo de pertencer a um grupo ou uma rede social, muita gente busca algo mais — ter amigos para fazer coisas juntos, para passar o tempo livre ou trabalhar em conjunto;41 um círculo de pessoas que compreendam as dificuldades que podemos estar enfrentando, que sejam encorajadoras e ofereçam ajuda quando necessário;42 uma relação que forneça ajuda prática, louvor, encorajamento, confidências e lealdade.43
Além da companhia, os casais buscam intimidade, que pode ser definida como a permissão para que o outro compartilhe e tenha acesso a nosso comportamento particular, nossos pensamentos particulares, alegrias, mágoas e medo de ser magoado.44 A intimidade também inclui significados compartilhados — aquelas piadas particulares, o olhar de soslaio que só a sua amada compreende —, uma espécie de telepatia.45 Inclui a liberdade de ser quem você é numa relação (sem a necessidade de projetar uma impressão falsa de si próprio) e permitir que o outro faça o mesmo. A intimidade nos permite falar abertamente de coisas que são importantes para nós e tomar uma posição clara em questões emocionalmente difíceis, sem medo de ser ridicularizado ou rejeitado.46 Tudo isso descreve uma visão especificamente ocidental — outras culturas não consideram que a intimidade seja necessária, e nem sequer a definem da mesma maneira.47
Não é de admirar que homens e mulheres tenham imagens diferentes daquilo que a intimidade acarreta: as mulheres se concentram mais do que os homens na dedicação e na continuidade da comunicação,48 e os homens, na intimidade física e sexual.49 A intimidade, o amor e a paixão nem sempre andam juntos, evidentemente — eles pertencem a construtos multidimensionais muito diferentes.50 Nós esperamos que a amizade e a intimidade tragam uma confiança mútua, mas nem sempre isso acontece. Tal como nossos primos chimpanzés, parece que temos uma tendência inata a ludibriar quando se trata de interesses próprios (motivo de uma quantidade incomensurável de frustrações e corações partidos, sem falar nos roteiros de sitcoms).51
A intimidade moderna é muito mais variada, plural e complexa do que era para nossos ancestrais.52 No decorrer da história e no âmbito das culturas, a intimidade foi raramente enfatizada e valorizada como fazemos hoje.53 Durante milhares de anos — os primeiros 99% de nossa história — não fazíamos grande coisa a não ser procriar e sobreviver.54 O casamento e a procura pelo par eram motivados principalmente pela reprodução e as alianças sociais. Muitos casamentos em certos períodos históricos eram realizados para criar laços entre tribos vizinhas, como uma maneira de diminuir rivalidades e tensões a respeito de recursos limitados.
Em consequência da mudança das definições de intimidade, hoje muita gente espera mais coisas do que nunca de seus parceiros românticos. Esperamos que eles estejam presentes para nos dar apoio emocional, companheirismo, intimidade e suporte financeiro, e esperamos em várias circunstâncias que desempenhem a função de confidente, enfermeiro, bom ouvinte, secretário, tesoureiro, pai, protetor, guia, líder de torcida, massagista. Enquanto isso, esperamos que sejam consistentemente atraentes, sexualmente sedutores, e que acertem o passo com nossos próprios apetites e preferências sexuais. Esperamos de nossos companheiros que nos ajudem a conquistar nosso pleno potencial na vida. E eles o fazem crescentemente.
Nosso desejo cada vez maior de que nossos parceiros façam todas essas coisas têm raízes numa necessidade biológica de nos conectarmos profundamente pelo menos com uma pessoa. Quando não temos isso, criar essa conexão se torna uma alta prioridade. Quando essa necessidade é preenchida por uma relação íntima satisfatória, os benefícios são tanto psicológicos quanto fisiológicos. Pessoas numa relação usufruem de melhor saúde,55 se recuperam mais rápido de doenças56 e vivem mais.57 Na verdade, a existência de uma relação íntima satisfatória é um dos mais fortes fatores para a previsão da felicidade e do bem-estar emocional, quando estes são medidos.58 Como iniciamos e mantemos relações íntimas? Um fator de importância é como são organizados os traços de personalidade.
Das milhares de maneiras que os seres humanos diferem entre si, talvez o traço mais importante para se dar bem com os outros seja a simpatia. Na literatura científica, ser simpático é ser cooperativo, amistoso, ter consideração e ser prestativo59 — atributos que são mais ou menos estáveis no decorrer da vida e se manifestam desde cedo na infância.60 As pessoas simpáticas são capazes de controlar emoções indesejáveis, como raiva e frustração.61 Esse controle se dá nos lobos frontais, que governam os impulsos e nos auxiliam a regular as emoções negativas, a mesma região que governa o nosso modo de atenção executiva. Quando há danos nos lobos frontais — por acidentes, derrame, Alzheimer ou um tumor, por exemplo —, a simpatia é muitas vezes a primeira coisa que se perde, junto do controle dos impulsos e da estabilidade emocional. Parte dessa regulação emocional pode ser aprendida — as crianças que recebem um reforço positivo ao controle dos impulsos e da raiva tornam-se simpáticas quando adultas. Como se pode imaginar, ser simpático é uma tremenda vantagem para a preservação de relações sociais positivas.62
Durante a adolescência, quando o comportamento é um tanto imprevisível e fortemente influenciado por relações interpessoais, reagimos e somos guiados em grau muito maior por aquilo que nossos amigos fazem.63 Na verdade, um sinal de maturidade é ser capaz de pensar com independência e chegar às próprias conclusões.64 Ter um melhor amigo durante a adolescência é parte importante de vir a ser um adulto bem ajustado. Os que não têm isso provavelmente tenderão mais a sofrer algum tipo de bullying e ser marginalizados, carregando essas experiências até se tornarem adultos desagradáveis. E a despeito da importância de ser agradável para as consequências da sociabilidade futura na vida, o simples fato de ter um amigo agradável também é uma forma de proteção contra problemas sociais futuros na vida, ainda que você mesmo não seja simpático.65 Tanto meninas quanto meninos se beneficiam com um amigo simpático, embora as meninas se beneficiem mais do que os meninos.66
As relações íntimas, inclusive o casamento, estão sujeitas ao que os economistas comportamentais chamam de padrões fortes de seleção entre muitos atributos diversos.67 Por exemplo, em média, os parceiros de casamento tendem a ter idade, nível educacional e capacidade de atração semelhantes. Como descobrir um ao outro num mar de desconhecidos?
Arranjar casamentos ou “prestar serviços de assistência romântica” não é novidade. A Bíblia descreve casamenteiros comerciais há mais de 2 mil anos, e as primeiras publicações a lembrar os jornais modernos, do início dos anos 1700, traziam anúncios de pessoas (na maior parte, homens) procurando parceiros.68 Em várias épocas da história, quando se viam isoladas de parceiros potenciais — os primeiros colonos do Oeste americano, soldados da Guerra Civil, por exemplo —, as pessoas começavam a publicar anúncios à procura de parceiros ou a responder anúncios colocados por parceiros em potencial, que forneciam uma lista de atributos ou qualidades.69 Quando a internet chegou à maioridade nos anos 1990, o namoro on-line foi introduzido como alternativa ao anúncio pessoal e, em alguns casos, aos casamenteiros, por intermédio de sites que usavam algoritmos científicos para aumentar as chances de compatibilidade.
A maior transformação do namoro entre 2004 e 2014 é que um terço dos casamentos nos Estados Unidos começou com relações on-line,70 em comparação a uma fração disso na década anterior.71 Metade desses casamentos teve início em sites de relacionamento, o resto pela mídia social, salas de bate-papo, mensagens instantâneas e assim por diante.72 Em 1995, ainda era tão raro que um casamento tivesse começado pela internet que os jornais davam a notícia, muito excitados, como se fosse algo estranhamente futurístico e um tanto monstruoso.73
Essa mudança comportamental não foi causada tanto pela própria internet ou pela mudança de opções de namoro, e sim porque a população dos usuários da internet havia mudado. O relacionamento on-line costumava ser estigmatizado como uma extensão mais arrepiante do mundo um tanto suspeito dos anúncios pessoais dos anos 1960 e 1970 — o último recurso para os desesperados ou incapazes de namorar. O estigma inicial ligado ao relacionamento pela internet tornou-se irrelevante à medida que surgiu uma nova geração de usuários, para quem o contato on-line já era bem conhecido, respeitável e estabelecido. E, tal como o fax e o e-mail, o sistema só funciona quando um grande número de pessoas o utiliza. Isso começou a ocorrer por volta de 1999-2000.74 Ao chegar a 2014, vinte anos depois da introdução do relacionamento on-line, os jovens usuários têm mais probabilidade de adotá-lo, porque são usuários ativos da internet desde criancinhas, utilizando-a para fins de educação, compras, entretenimento, jogos, vida social, procura de empregos, notícias e fofocas, vídeos e música.75
Como já se notou, a internet ajudou alguns de nós a se tornar mais sociais e a estabelecer e manter um grande número de relacionamentos. Para outros, especialmente usuários pesados e introvertidos, para começo de conversa, a internet os levou a ficar socialmente menos envolvidos, mais solitários e mais passíveis de depressão.76 Estudos demonstraram um declínio dramático de empatia entre os estudantes universitários que parecem ser menos suscetíveis a valorizar a atitude de se pôr na pele do outro ou de tentar compreender seus sentimentos.77,78 Não é só porque andam lendo menos literatura de boa qualidade, e sim porque passam mais tempo sozinhos, na ilusão de estar sendo sociais.
O namoro on-line é organizado de modo diferente do namoro convencional de quatro maneiras cruciais — acesso, comunicação, complementação e assincronia.79 Ele nos dá acesso a um conjunto muito maior e mais amplo de parceiros em potencial do que jamais encontraríamos nas nossas vidas pré-internet. O campo dos elegíveis costumava ser limitado a pessoas que conhecíamos, com quem trabalhávamos, íamos à igreja, ao colégio ou que moravam na vizinhança.80 Muitos sites de relacionamento alardeiam milhões de usuários, aumentando dramaticamente o tamanho do bolo. Na verdade, os cerca de 2 bilhões de pessoas que estão conectadas à internet são potencialmente acessíveis. Naturalmente, o acesso a milhões de perfis não significa necessariamente acesso a encontros virtuais ou face a face; simplesmente permite aos usuários ver quem mais está disponível, muito embora os disponíveis possam não estar reciprocamente interessados em você.81
O meio de comunicação do namoro on-line nos permite conhecer a pessoa, analisar um amplo conjunto de fatos e trocar informações antes do estresse do encontro cara a cara, e talvez evitar esse encontro se as coisas não estiverem correndo bem. O encontro do par se dá tipicamente através de algoritmos matemáticos que nos ajudam a selecionar parceiros em potencial, filtrando os que possuem traços indesejáveis ou não possuem os mesmos interesses.
A assincronia permite que ambas as partes reflitam a seu tempo antes de responder, e assim apresentem a melhor versão de si mesmas sem toda a pressão e a ansiedade que ocorrem nas interações sincrônicas, em tempo real. Você já abandonou uma conversa só para se dar conta, horas depois, do que desejaria ter dito? O namoro on-line resolve isso.
Tomados no conjunto, esses quatro fatores-chave que distinguem o namoro na internet nem sempre são desejáveis. Primeiro, há um descompasso entre aquilo que as pessoas acham atraente num perfil e aquilo que descobrem ao encontrar alguém pessoalmente.82 E, como frisa o psicólogo da Universidade Northwestern, Eli Finkel, esse acesso formatado a um conjunto de milhares de parceiros em potencial “pode induzir um modelo mental tendente à avaliação que leva os namorados on-line a objetificar parceiros em potencial, e até a solapar seu desejo de se comprometer com algum deles”.83
Também pode fazer com que as pessoas tomem decisões preguiçosas e duvidosas em razão da sobrecarga cognitiva e decisória.84 Sabemos, a partir da economia comportamental — e de decisões que envolvem carros, apetrechos, casas e, sim, parceiros em potencial —, que os consumidores não podem dar conta de mais de duas ou três variáveis em termos de interesses ao avaliar um grande número de alternativas. Isto está diretamente relacionado às limitações da capacidade da memória funcional, discutidas no Capítulo 2. Também tem relação com as limitações da nossa rede de atenção. Ao considerar alternativas de relacionamento, precisamos necessariamente que nossa mente alterne entre o modo executivo central — monitorando todos aqueles pequenos detalhes — e o modo devaneio, aquele em que procuramos nos imaginar com cada um dos parceiros atraentes: como seria nossa vida, como se sentiriam ao nos dar o braço, será que vão se entender bem com nossos amigos, será que nossos filhos herdarão o nariz dele ou dela. Como é sabido, todas essas rápidas trocas entre os cálculos do executivo central e o devaneio da mente sonhadora exaurem os recursos neuronais, levando-nos a tomar decisões ruins. E quando os recursos cognitivos estão baixos, temos dificuldade em nos concentrar na informação relevante e ignorar a que é irrelevante.85 Talvez o namoro on-line seja uma forma de organização social que descarrilou, transformando a ação decisória em algo mais difícil do que fácil.
Permanecer comprometido com qualquer relação monógama, quer tenha sido iniciada on-line ou não, requer fidelidade, ou “abrir mão do fruto proibido”. Sabe-se que isso é uma função da disponibilidade de alternativas atraentes.86 A mudança com o surgimento do namoro on-line, entretanto, tem a ver com o fato da existência possível de milhares de alternativas a mais no mundo virtual do que no mundo real, criando uma situação em que a tentação pode superar a força de vontade, tanto para homens quanto para mulheres. Casos de pessoas (normalmente homens) que se “esqueceram” de apagar seu perfil num site de relacionamento depois de encontrar e iniciar uma relação séria com alguém são uma enormidade.
Agora que um terço das pessoas que se casam se conheceram pela internet, a ciência do namoro on-line atingiu sua maturidade. Os pesquisadores mostraram o que todos suspeitávamos: os que namoram on-line enganam; 81% mentem sobre altura, peso ou idade.87 Os homens tendem a mentir sobre a altura, as mulheres, sobre o peso. Ambos mentem sobre a idade. Numa pesquisa, foram observadas discrepâncias de dez anos, a informação sobre o peso era rebaixada em quinze quilos e a altura, exagerada em cinco centímetros.88 Como tudo acabaria sendo descoberto num encontro pessoal, tais desinformações são mais estranhas ainda. E parece que, no mundo on-line, inclinações políticas são mais sensíveis e menos tendentes a ser reveladas do que idade, peso ou estatura. É mais fácil os que namoram on-line admitirem ser gordos do que republicanos.89
Na maioria desses casos, os mentirosos têm consciência das mentiras que contam. Então o que os motiva? Em virtude da grande quantidade de opções disponíveis aos que namoram on-line, o perfil resulta de uma tensão subjacente entre o desejo de veracidade e o de demonstrar a melhor aparência possível.90 Os perfis muitas vezes dão uma ideia errada de como você era em algum momento do passado recente (por exemplo, tinha um emprego) ou transmitem a maneira como você gostaria de ser (por exemplo, alguns quilos mais magro e seis anos mais jovem).
Não importa se a organização do mundo social está dando errado ou não, o mundo do relacionamento on-line hoje demonstra pelo menos uma tendência promissora: até agora, o risco de casamentos iniciados na internet terminarem em divórcio é 22% menor.91 Embora isso possa parecer impressionante, o efeito de fato é mínimo. Conhecer alguém na internet reduz o risco geral de divórcio de 7,7% para 6%. Se todos os casais que se conheceram off-line tivessem se conhecido on-line, somente seria evitado um divórcio em cada cem casamentos. Além disso, os casais que se conheceram na internet tendem a ser mais instruídos e a ter um emprego, se comparados aos casais que se conheceram pessoalmente, e o êxito educacional e o emprego ajudam a prever a longevidade matrimonial. Por isso esse efeito observado pode não se dever ao namoro on-line em si, mas ao fato de que os que namoram na internet tendem a ser mais instruídos e ter emprego, como grupo, do que os que namoram off-line.
Como se podia esperar, os casais que se conheceram por e-mail tendem a ser mais velhos do que os que conheceram o parceiro via redes sociais e mundos virtuais (os jovens não usam mais o e-mail com muita frequência). E, tal como a Darpa, a Wikipédia e a Kickstarter, sites de relacionamento que usam crowdsourcing têm surgido. Os aplicativos ChainDate, ReportYourEx e Lulu são apenas três exemplos do tipo Zagat de avaliação para encontrar parceiros de namoro.
Depois que iniciamos uma relação, romântica ou platônica, até que ponto conhecemos as pessoas com que nos relacionamos, e até que ponto somos capazes de saber o que pensam?92 Somos surpreendentemente incapazes. Mal passamos da proporção 50/50 na hora de avaliar o que nossos amigos e colegas de trabalho pensam de nós, ou até se gostam de nós. Os speed daters são péssimos em avaliar quem deseja ou não namorá-los (que intuição...). Por um lado, casais que achavam que se conheciam bem adivinharam corretamente as reações do parceiro quatro em dez vezes — mas acharam que estavam acertando oito em dez tentativas.93 Em outra experiência, voluntários assistiram a vídeos de pessoas mentindo, ou dizendo a verdade, sobre o fato de serem soropositivos. As pessoas achavam que conseguiam detectar as mentiras em 70% das vezes, mas, na realidade, não acertavam mais do que 50%.94 Somos um tanto incapazes de dizer se alguém está mentindo, mesmo quando nossa vida depende disso.95
Isso tem consequências potencialmente graves para a política externa. Os ingleses acreditaram em Adolf Hitler, em 1938, quando ele afirmou que a paz seria preservada se ele obtivesse o território logo além da fronteira tcheca. Assim, os ingleses desencorajaram os tchecos a mobilizar seu exército. Mas Hitler mentia, já tendo preparado seu exército para a invasão. Um erro oposto de interpretação de intenções ocorreu quando os Estados Unidos acreditaram que Saddam Hussein mentia ao afirmar não possuir armas de destruição em massa — de fato, ele estava dizendo a verdade.96
Fora do contexto militar ou estratégico, em que a mentira é usada como tática, por que as pessoas mentem nas interações cotidianas? Um dos motivos é o medo da retaliação depois de termos feito algo que não devíamos. Não é o melhor lado da natureza humana, mas faz parte dela mentir para evitar o castigo. E isso começa cedo — crianças de seis anos já dizem “eu não fiz” enquanto estão fazendo! Os funcionários da empresa de petróleo Deepwater Horizon, nas águas do golfo na costa da Louisiana, sabiam dos problemas de segurança, mas tinham medo de falar, por receio de serem despedidos.97
Mas também faz parte da natureza humana perdoar, especialmente quando se recebe uma explicação. Um estudo mostrou que pessoas que tentavam furar fila eram perdoadas pelos outros mesmo diante de uma explicação ridícula. Numa fila de xerox, “Desculpe, posso passar na frente? Preciso fazer cópias” funcionava tão bem quanto “Desculpe, posso furar a fila? Preciso cumprir um prazo terrível”.
Quando médicos dos hospitais da Universidade de Michigan começaram a revelar abertamente seus erros aos pacientes, as ações por erro médico caíram pela metade.98 O maior empecilho para um acordo entre as partes era pedir aos pacientes que imaginassem o que seus médicos estavam pensando, e ter que processá-los para descobrir, em vez de simplesmente permitir que os médicos explicassem como o erro ocorrera.99 Quando nos defrontamos com o elemento humano, as dificuldades que o médico precisa enfrentar, ficamos mais propensos a compreender e perdoar.100 Nicholas Epley, professor da Booth School of Business, da Universidade de Chicago (e autor de Mindwise [Da mente]), diz: “Se ser transparente reforça os laços sociais que fazem a vida valer a pena ser vivida, e permite que os outros perdoem nossas faltas, por que não fazer isso com mais frequência?”.
As pessoas mentem por outros motivos, é claro, não apenas por medo da retaliação. Às vezes é para evitar magoar os outros, e às vezes pequenas mentiras sociais são a cola social que impede a explosão da cólera e miniminiza o antagonismo.101 Nesse contexto, somos surpreendentemente eficazes em descobrir quando os outros estão mentindo, e em fingir que não sabemos, cooperando, quase sempre. Isso tem a ver com nossa maneira delicada de pedir algo quando queremos evitar confrontos com as pessoas — os atos de fala indireta.
Por que as pessoas são indiretas conosco
Grande parte da interação social humana requer que dominemos nossa hostilidade inata de primata a fim de podermos conviver. Embora de modo geral os primatas sejam uma das espécies mais sociais, há poucos exemplos de primatas vivendo em grupos integrados por mais de dezoito machos — as tensões interpessoais e hierarquias de domínio simplesmente se tornam excessivas para eles, que se separam. E, no entanto, os seres humanos têm vivido em cidades com dezenas de milhares de machos por vários milênios. Como conseguimos? Uma maneira de ajudar um grande número de seres humanos a viver próximos uns dos outros é através do uso de uma linguagem de não confronto, ou atos de fala indireta. Os atos de fala indireta não dizem aquilo que de fato queremos dizer, mas o insinuam. O filósofo Paul Grice os chamou de implicaturas.102
Vamos imaginar que John e Marsha estejam sentados no escritório, Marsha ao lado da janela. John sente calor. Ele pode dizer “abra a janela”, que é uma afirmação direta e talvez faça Marsha se sentir meio incomodada. Se eles são colegas de trabalho e têm o mesmo status, quem é ele para dizer a ela o que fazer?, talvez pense Marsha. Mas se, em vez disso, John disser “puxa, está fazendo calor aqui”, ele a está convidando a uma iniciativa de cooperação, uma decorrência simples, mas não banal, do que ele disse. Ele está insinuando seu desejo de uma forma não diretiva, não confrontadora. Normalmente, Marsha joga de acordo, inferindo que ele gostaria que ela abrisse a janela, e não que está simplesmente fazendo uma observação sobre o clima. Nesse ponto, Marsha tem várias opções de como reagir:
Os casos mais simples dos atos de fala são aqueles em que o locutor exprime uma frase e quer dizer exata e literalmente o que diz.103 No entanto, os atos de fala indireta constituem uma poderosa cola social que permite a nossa convivência. Neles, o locutor exprime exatamente o que diz, mas também algo mais. Esse algo mais é supostamente aparente para o ouvinte, mas permanece não dito. Portanto, o ato de fala indireta pode ser considerado um ato lúdico, um convite de cooperação num jogo de pique-esconde verbal, do tipo “você compreende o que estou dizendo?”. O filósofo John Searle diz que o mecanismo que permite a eficácia da fala indireta é que ela evoca, tanto no falante quanto no ouvinte, uma representação compartilhada do mundo; ela depende de informação compartilhada de bastidores, que é tanto linguística quanto social. Ao apelar ao conhecimento compartilhado dos dois, falante e ouvinte criam um pacto, afirmando sua visão do mundo em comum.
Searle nos convida a considerar outro tipo de caso, com dois falantes, A e B.
A: Vamos ao cinema hoje à noite.
B: Preciso estudar para uma prova.
O falante A não está fazendo uma implicatura — a fala pode ser compreendida literalmente como um pedido direto, marcado por vamos. Mas a resposta do falante B é claramente indireta. Ela quer comunicar tanto uma mensagem literal (“vou estudar para uma prova esta noite”) quanto uma insinuação implícita (“portanto não posso ir ao cinema”). A maioria das pessoas concorda que B está empregando um meio mais delicado de resolver um conflito potencial entre duas pessoas, evitando o confronto. Se, em vez disso, B dissesse:
B1: Não.
o falante A se sentiria rejeitado, sem motivo ou explicação. Nosso medo de rejeição é compreensivelmente muito forte; na verdade, a rejeição social ativa a mesma parte do cérebro ativada pela dor,104 e — talvez surpreenda, mas é coerente — o Tylenol pode reduzir a experiência de sofrimento social.105
O falante B frisa sua posição dentro de uma moldura cooperativa e, ao fornecer uma explicação, insinua que realmente gostaria de ir, mas simplesmente não pode. Isso equivale à pessoa que fura a fila para fazer cópias e fornece uma explicação sem sentido, que é mais bem recebida do que explicação nenhuma. Mas nem todas as insinuações são criadas do mesmo modo. Se, ao contrário, B tivesse dito:
B2: Esta noite preciso lavar o cabelo.
ou
B3: Estou no meio de um jogo de paciência que preciso terminar.
então B espera que A julgue a resposta como rejeição, e não oferece nenhuma explicação simpática — é uma espécie de bofetada em termos da conversa, embora amplie o jogo de implicaturas. B2 e B3 são maneiras de recusar ligeiramente mais gentis, pois não envolvem a negativa seca e sem rodeios.
Searle estende a análise dos atos de fala indireta de modo a incluir falas cujo significado pode ser inteiramente indecifrável, mas cuja intenção, se estivermos certos, é 100% clara.106 Ele pede que consideremos o seguinte: imagine que você fosse um soldado americano sem uniforme capturado pelos italianos durante a Segunda Guerra Mundial. Então, para fazer com que o soltem, inventa um plano para convencê-los de que é um oficial alemão. Você poderia dizer a eles, em italiano, “sou um oficial alemão”, mas eles poderiam não acreditar. Imagine ainda que seu italiano não seja bastante fluente para dizer isso.
A fala ideal nesse caso seria dizer, em alemão perfeito, “sou um oficial alemão. Solte-me, e depressa”. Imagine, no entanto, que você não sabe alemão o bastante para dizer isso, e que a única coisa que sabe é um verso de um poema que aprendeu no colégio: “kennst du das Land, wo die Zitronen blühen?”, que significa “conheces a terra onde os limões florescem?”. Se seus guardas italianos não falam nada de alemão, o fato de você dizer “kennst du das Land, wo die Zitronen blühen?” tem o efeito de comunicar que você é alemão. Em outras palavras, o sentido literal de seu ato de fala se torna irrelevante, e somente o significado implícito possui uma função. Os italianos ouvem apenas aquilo, que reconhecem ser alemão, e você espera que eles deem o salto lógico e concluam que você de fato deve ser alemão, e portanto merece ser solto.
Outro aspecto da comunicação é que a informação pode ser atualizada através de contratos sociais.107 Você pode comentar com seu amigo Bert que Ernie disse isso e aquilo, mas Bert acrescenta a nova informação de que agora sabemos que Ernie é um mentiroso108 e não merece confiança.109 Nós ficamos sabendo que Plutão não é mais um planeta quando um grupo de especialistas devidamente habilitado, autorizado pela sociedade a emitir essas decisões e juízos, disse isso.110 Determinadas falas possuem, por via do contrato social, a autoridade de mudar o estado do mundo. O médico que o declara morto muda na mesma hora o seu estado, que tem por efeito mudar totalmente a sua vida, quer você esteja ou não esteja morto de fato. Um juiz pode declará-lo culpado ou inocente de uma acusação, e, mais uma vez, a verdade não importa tanto quanto a força que essa decisão terá em termos de determinar seu futuro. O conjunto de pronunciamentos capazes de mudar dessa forma o estado do mundo é limitado, mas poderoso. Nós damos poder a essas autoridades legais ou quase legais para facilitar a nossa compreensão do mundo social.
Com exceção desses pronunciamentos formais e legalistas, Grice e Searle adotam como premissa que toda conversação é um empreendimento cooperativo, que necessita tanto do sentido literal quanto do implícito para ser processada.111 Grice sistematizou e categorizou as várias regras que governam a fala normal, cooperativa, ajudando a iluminar os mecanismos por meio dos quais os atos de fala indireta funcionam. As quatro máximas de Grice são:
Os três exemplos a seguir demonstram a violação da máxima 1, quantidade, em que o segundo falante não contribui de modo suficientemente informativo:
A: Aonde você vai hoje à tarde?
B: Sair.
A: Como foi seu dia?
B: Ótimo.
A: O que você aprendeu na escola hoje?
B: Nada.
Mesmo não tendo conhecimento das máximas de Grice, reconhecemos intuitivamente que essas respostas não são cooperativas. O primeiro falante, em cada caso, insinua que gostaria de saber alguma coisa com certo grau de detalhe em resposta à sua pergunta, e o segundo falante opta por negar qualquer cooperação desse tipo.
Outro exemplo: imagine que o professor Kaplan esteja escrevendo uma recomendação para um aluno que está tentando uma vaga num curso de pós-graduação.
Prezado sr., o dominío de inglês do sr. X é excelente e ele tem frequentado com regularidade as minhas aulas. Atenciosamente, professor Kaplan.
Ao violar a máxima da quantidade — não fornecendo informação suficiente —, o professor Kaplan insinua que o sr. X não é um aluno muito bom, sem dizê-lo de fato.
Eis um exemplo do extremo oposto, em que o segundo falante fornece informação em demasia:
A: Pai, onde está o martelo?
B: No chão, a cinco centímetros da porta da garagem, numa poça d’água onde você o deixou três horas atrás, depois que lhe pedi que o devolvesse à caixa de ferramentas.
O segundo falante, nesse caso, ao fornecer informação em demasia, insinua mais do que os fatos da fala, sinalizando aborrecimento.
A está parado ao lado de um carro claramente enguiçado quando B passa.
A: Minha gasolina acabou.
B: Há uma oficina uns quatrocentos metros rua abaixo.
B está violando a máxima da qualidade se, na verdade, não houver nenhuma oficina na rua, ou se souber que a oficina está aberta, mas não tem gasolina. Imagine que B queira roubar os pneus do carro de A. A presume que B esteja dizendo a verdade e por isso se afasta, dando bastante tempo a B para levantar o carro com o macaco e tirar um ou dois pneus.
A: Onde está Bill?
B: Tem um Volkswagen amarelo do lado de fora da casa de Sue...
B foge da máxima da relevância ao insinuar que A deve inferir algo. Agora, A tem duas opções:
É claro que B tem outras respostas possíveis à pergunta “Onde está Bill?”.
B1: Na casa de Sue. (Sem implicatura.)
B2: Bem, eu vi um Volkswagen estacionado na casa de Sue, e Bill tem um Volkswagen. (Leve implicatura, preenchendo a maioria das lacunas para A.)
B3: Que pergunta indiscreta! (Direta, um tanto confrontadora.)
B4: Eu não devia contar a você. (Menos direta, mas ainda um tanto confrontadora.)
B5: Não faço ideia. (Violando a qualidade.)
B6: [Se afasta] (Decidindo abandonar a conversa.)
Atos de fala indireta como esses refletem o modo como realmente usamos a linguagem na fala cotidiana. Não há nada que não seja familiar nessas trocas. A grande contribuição de Grice e Searle foi que eles as organizaram, colocando-as num sistema através do qual podemos analisar e compreender como funcionam. Tudo isso acontece num nível subconsciente para a maioria. Indivíduos com disfunções relacionadas ao autismo muitas vezes têm dificuldade com atos de fala indireta, por conta de diferenças biológicas em seus cérebros que dificultam sua compreensão de ironia, fingimento, sarcasmo ou qualquer outra fala não literal.112 Será que há correlações neuroquímicas para a boa convivência e a manutenção dos laços sociais?
Existe um hormônio no cérebro liberado pela parte anterior da glândula pituitária, a oxitocina, que foi chamado pela imprensa popular de hormônio do amor, uma vez que a oxitocina era considerada a substância que fazia as pessoas se apaixonarem. Quando alguém tem um orgasmo, há uma liberação de oxitocina, e um de seus efeitos é nos fazer sentir que estamos ligados ao outro.113 Os psicólogos evolucionistas especularam que se tratava da maneira através da qual a natureza induzia os casais a quererem permanecer juntos depois do sexo, para criar quaisquer filhos produzidos pelo ato sexual. Em outras palavras, é evidentemente uma vantagem evolucionária para a criança quando esta tem dois pais que cuidam dela e a protegem. Se os pais se sentem ligados um ao outro por meio da liberação da oxitocina, é mais provável que compartilhem a criação dos filhos, desse modo propagando a sua tribo.
Além da dificuldade de compreender qualquer fala não literal, indivíduos com disfunções relacionadas ao autismo não se sentem ligados às pessoas da mesma forma que os outros, e têm dificuldade em sentir empatia pelos demais. Esses indivíduos revelam ter níveis mais baixos de oxitocina do que o normal, e a administração desse hormônio faz com que se tornem mais sociais e melhora o reconhecimento das emoções. (Também reduz seus comportamentos repetitivos.)
A oxitocina tem sido, além disso, associada a sentimentos de confiança. Numa experiência típica, as pessoas ficam assistindo a políticos discursando. Os observadores estão sob a influência da oxitocina durante metade dos discursos a que assistem e de um placebo durante a outra metade (é claro que sem saber disso). Quando lhes pedem que indiquem os políticos que mereceram mais sua confiança e seu provável voto, as pessoas escolhem os candidatos que viram sob a influência da oxitocina.114
É bem sabido que as pessoas que recebem apoio social durante uma doença (simples cuidados e assistência) se recuperam melhor e mais rápido.115 O simples contato social quando estamos doentes também libera oxitocina, ajudando por sua vez a melhorar os prognósticos saudáveis, ao reduzir o nível de estresse e do hormônio cortisol, que é capaz de lesar o sistema imunológico.
Paradoxalmente, os níveis de oxitocina também aumentam durante as lacunas ou mesmo a escassez de apoio social (assim, a ausência torna o coração mais amoroso — ou pelo menos mais apegado). A oxitocina é capaz, portanto, de agir como um sinal de perigo pressionando a pessoa a buscar contato social. Para resolver esse paradoxo — a oxitocina é a droga do amor ou do desamor? —, uma teoria recente está ganhando terreno, a de que a oxitocina regula a importância da informação social, e é capaz de induzir emoções sociais positivas e negativas. Seu verdadeiro papel é organizar o comportamento social.116 Há evidências iniciais promissoras a sugerir que a farmacoterapia com a oxitocina é capaz de promover sentimentos de confiança e reduzir a ansiedade social, inclusive em pessoas com fobia social e transtorno de personalidade limítrofe. Terapias sem drogas, como a musicoterapia, talvez produzam efeitos terapêuticos semelhantes, através da regulagem oxitocinérgica; revelou-se que a música eleva os níveis de oxitocina, especialmente quando as pessoas ouvem ou tocam música juntas.117
Um elemento químico cerebral aparentado, uma proteína chamada vasopressina, também foi associado à regulagem do sentimento de pertencimento, à sociabilidade e ao namoro. Se você acha que seus comportamentos sociais estão em grande parte sujeitos ao seu controle consciente, está subestimando o papel dos neuroquímicos na modelagem dos seus pensamentos, sentimentos e atos. Um exemplo: existem dois tipos de ratos silvestres; um é monógamo, o outro não. Basta injetar vasopressina nos ratos namoradores que eles se tornam monógamos; ou bloquear a vasopressina nos que são monógamos para que se tornem lascivos como Gene Simmons num filme de John Holmes.
Injetar vasopressina também induz comportamentos agressivos inatos a se tornarem mais seletivos, protegendo o parceiro de ataques emocionais (e físicos).118
Descobriu-se que drogas recreativas como o LSD e a maconha induzem sensações de comunhão entre os seus usuários e outras pessoas, e, em muitos casos, a sensação de maior comunhão com o mundo em geral. O ingrediente ativo da maconha ativa receptores neuronais específicos chamados receptores de canabinol, e já foi demonstrado experimentalmente em ratos que ele aumenta a atividade social (quando os ratos conseguiam levantar do sofá).119 A ação do LSD no cérebro inclui a estimulação da dopamina e determinados receptores de serotonina, enquanto atenua o estímulo sensorial do córtex visual (que talvez seja parcialmente responsável pelas alucinações visuais). No entanto, o motivo de o LSD provocar sentimentos de comunhão social ainda é desconhecido.
Para nos sentirmos socialmente conectados aos outros, gostamos de pensar que os conhecemos e até certo ponto podemos prever sua conduta. Separe um instante para pensar em alguém que você conhece bem — um amigo íntimo, um membro da família, cônjuge, e assim por diante — e classifique a pessoa segundo as três opções abaixo.
A pessoa em que estou pensando tende a ser:
a. subjetiva |
analítica |
depende da situação |
b. enérgica |
descontraída |
depende da situação |
c. formal |
casual |
depende da situação |
d. quieta |
falante |
depende da situação |
e. cautelosa |
ousada |
depende da situação |
f. permissiva |
firme |
depende da situação |
g. intensa |
tranquila |
depende da situação |
h. realista |
idealista |
depende da situação |
Agora volte e se classifique de acordo com os mesmos itens.
A maioria das pessoas classifica os amigos em termos de traços (as primeiras duas colunas).120 Por quê? Porque, por definição, só enxergamos os atos públicos dos outros. Quanto à nossa conduta, enxergamos não apenas os atos públicos, mas atos privados, sentimentos e pensamentos íntimos. Nossas vidas nos parecem muito mais repletas de uma complexa diversidade de pensamentos e condutas porque experimentamos um leque mais amplo de comportamentos próprios, enquanto de fato só possuímos evidências parciais sobre os outros. Daniel Gilbert, psicólogo de Harvard, chama isso de o problema da “invisibilidade” — os pensamentos íntimos dos outros são invisíveis para nós.121
No Capítulo 1, as ilusões cognitivas foram comparadas às ilusões visuais. Elas representam uma janela que se abre sobre o funcionamento interno da mente e do cérebro, revelando-nos algumas das subestruturas que sustentam a cognição e a percepção. Tal como as ilusões visuais, as ilusões cognitivas são automáticas — isto é, mesmo quando sabemos que elas existem, é difícil ou impossível desligar o maquinário mental que lhes dá origem. As ilusões cognitivas nos levam a percepções erradas da realidade e a tomar decisões ruins em relação a alternativas que nos são apresentadas, a opções médicas e também quando se trata de interpretar a conduta de outras pessoas, especialmente aqueles que constituem nosso mundo social. Interpretar mal a motivação alheia leva a compreensão equivocada, desconfiança e conflito interpessoal, e, no pior dos casos, à guerra. Felizmente, muitas ilusões cognitivas podem ser superadas pelo treinamento.
Uma das descobertas mais sólidas da psicologia social diz respeito a como interpretamos as ações dos outros, e está relacionada à demonstração que acabamos de citar. Existem duas categorias amplas para explicar por que as pessoas fazem o que fazem — disposicional ou situacional. As explicações disposicionais adotam a ideia de que todos possuímos certos traços (disposições) que são mais ou menos estáveis no decorrer de nossas vidas. Como você acabou de ver, tendemos a descrever as pessoas que conhecemos em termos de traços: são extrovertidas ou introvertidas, simpáticas ou desagradáveis, festivas ou estraga-prazeres.
As explicações situacionais, por outro lado, reconhecem que a circunstância momentânea às vezes contribui para nossas reações e pode sobrepujar as predisposições inatas. Essas abordagens opostas são às vezes caracterizadas como “a pessoa em contraposição à situação”. A explicação disposicional diz: “Eu nasci (ou sou feito) deste jeito”. A situacional (citando o humorista Flip Wilson) diz: “Foi o demônio quem me obrigou a fazer”.
Em uma célebre pesquisa, pediram aos alunos do Princeton Theological Seminary que fossem até uma sala para dar suas opiniões sobre “a educação religiosa e as vocações”.122 Depois de eles terem preenchido uma série de questionários, o pesquisador explicou que questionários tendem a ser muito simplistas e que, para a parte final da experiência, desejava que gravassem uma fala de três a cinco minutos baseada num texto pequeno. Cada aluno recebeu então um de dois textos: um parágrafo debatendo se “a pregação” pode ser eficaz entre os clérigos profissionais nos dias de hoje ou a parábola do bom samaritano do Novo Testamento (que parou para ajudar um homem doente depois que um sacerdote e um levita simplesmente passaram por ele numa estrada).
Ora, numa experiência de psicologia social, as coisas geralmente não são o que parecem — os pesquisadores fazem um enorme esforço para esconder o que realmente pretendem, de modo a reduzir a possibilidade de os participantes ajustarem seu comportamento à experiência. Nesse caso, o pesquisador disse aos participantes que o espaço no prédio em que estavam era apertado, e que por isso arranjara para que a fala fosse gravada num prédio ao lado (isso fazia parte da dissimulação). O pesquisador então desenhou mapas para os participantes, mostrando como chegar lá.
Treze participantes em cada grupo de leitura foram informados de que deveriam se apressar porque um auxiliar no prédio adjacente já os esperava havia alguns minutos. A outros treze foi dito: “Eles ainda vão precisar de alguns minutos para recebê-los, mas em todo caso vocês já podem ir para lá”.123 Isso constitui um fator situacional — alguns estudantes têm pressa, outros não. Algumas pessoas são mais prestativas do que outras, um traço intrínseco que presumimos possuir certa estabilidade ao longo da vida de alguém. Mas este grupo específico — alunos de seminário — é, sem dúvida, mais prestativo do que a média, porque estudam para ingressar no sacerdócio, uma profissão prestativa. Presumimos que as diferenças nos traços de solicitude e compaixão sejam minimizadas nessa população específica, e, além do mais, quaisquer diferenças individuais remanescentes seriam distribuídas de modo igualitário pelas duas condições da experiência, já que os pesquisadores distribuíram os estudantes a esmo entre essas duas condições. O propósito da experiência joga com inteligência os fatores disposicionais contra os situacionais.
Entre os dois prédios de Princeton, os pesquisadores haviam colocado um cúmplice — um auxiliar de pesquisa — sentado, caído numa porta, parecendo precisar de cuidados médicos. Cada vez que um estudante de teologia passava, o cúmplice tossia e gemia.
Se você acredita que os traços de uma pessoa são a melhor maneira de prever sua conduta, preveria que todos, ou a maioria dos alunos do seminário, parariam para ajudar aquela pessoa doente. E, num acréscimo elegante à experiência, metade deles havia acabado de ler sobre o bom samaritano, que parara para auxiliar uma pessoa numa situação muito parecida com aquela.
Qual foi o achado dos pesquisadores? Os estudantes que tinham pressa eram seis vezes mais propensos a continuar andando, e passar por aquele sujeito visivelmente doente sem ajudá-lo, do que os estudantes que tinham bastante tempo. A quantidade de tempo que os estudantes tinham era o fator situacional que previa seu comportamento, e o parágrafo que haviam lido não tivera importância nenhuma.
Esse achado surpreende a maioria das pessoas. Já foram feitas dezenas de experiências desse tipo para demonstrar como se fazem previsões incorretas, supervalorizando a importância dos traços e subestimando a força da situação, na tentativa de explicar o comportamento das pessoas. Essa ilusão cognitiva é tão poderosa que recebeu um nome: erro fundamental de atribuição. Uma parte adicional do erro fundamental de atribuição é deixarmos de avaliar que os papéis que as pessoas são obrigadas a desempenhar em certas circunstâncias compelem seu comportamento.
Numa inteligente demonstração disso, Lee Ross e seus colegas encenaram um falso jogo em Stanford.124 Ross escolheu um punhado de alunos de sua turma para um jogo trivial e, aleatoriamente, designou metade deles Inquiridores e a outra metade Contendores. Pediu aos Inquiridores que formulassem perguntas de conhecimento geral difíceis, mas não impossíveis de serem respondidas — podiam explorar qualquer área em que tivessem interesse ou conhecimento, como cinema, livros, esportes, música, literatura, o currículo do curso ou algo do noticiário. Ross lembrou que cada um tinha determinado conhecimento que provavelmente ninguém mais na sala de aula tinha. Talvez eles colecionassem moedas, e uma boa pergunta seria em que anos os Estados Unidos cunharam moedas de aço em vez de cobre. Ou talvez estivessem fazendo um curso excepcional sobre Virginia Woolf no Departamento de Letras, e uma pergunta seria em que década foi publicado Um teto todo seu. Uma pergunta indevida seria “qual o nome da minha professora do primeiro grau?”.
Os Inquiridores então se puseram diante da turma e fizeram perguntas aos Contendores enquanto o resto observava. Eles exploraram temas de conhecimento geral, trivialidades e factoides como os que vemos nos programas de perguntas e respostas da TV; perguntas como “O que querem dizer as iniciais de W. H. Auden?”; “Qual é o atual regime de governo do Sri Lanka?”; “Qual é a maior geleira do mundo?”; “Quem foi o primeiro atleta a correr um quilômetro e meio em quatro minutos?”; e “Qual foi o time que venceu a World Series de 1969?”.125
Os Contendores não se saíram muito bem nas respostas. Um ponto importante aqui é que a manipulação sobre quem seria Inquiridor e quem seria Contendor era óbvia para todos os implicados, já que a escolha fora feita de modo aleatório. Depois de terminado o jogo, Ross pediu aos observadores na turma que respondessem a duas perguntas: “Numa escala de um a dez, que grau de inteligência você daria ao Inquiridor em comparação com o aluno médio de Stanford?” e “Numa escala de um a dez, que grau de inteligência você daria ao Contendor comparado ao aluno médio de Stanford?”.
Nós, seres humanos, temos uma tendência bem inculcada de prestar atenção às diferenças individuais. Isso provavelmente nos foi bastante útil no decorrer da história da evolução, na hora de tomar decisões sobre com quem acasalar, caçar, em quem confiar como aliado. Traços como consolador, afetuoso, emocionalmente estável, confiável, fiel e inteligente teriam sido critérios importantes. Se estivéssemos sentados na turma de Lee Ross em Stanford, observando esse falso game show, nossa impressão esmagadora seria de surpresa diante do conhecimento enigmático demonstrado pelos Inquiridores — como podiam saber tanto? E sobre tanta coisa diferente? Não eram apenas os Contendores que não sabiam as respostas; a maioria dos observadores também não sabia!
Um aspecto importante da experiência é que ela foi concebida para conferir uma vantagem na autoapresentação dos Inquiridores sobre os Contendores ou observadores. Depois que Ross juntou os dados, verificou que os alunos observadores da turma realmente classificaram os Inquiridores como sendo verdadeiramente mais inteligentes do que o aluno médio de Stanford. Além disso, classificaram os Contendores como estando abaixo da média. Os classificadores atribuíram a cena que viram a disposições estáveis. O que deixaram de fazer — a ilusão cognitiva — foi perceber que o papel desempenhado pelos Inquiridores praticamente garantia que eles parecessem instruídos, do mesmo modo que o papel desempenhado pelos Contendores garantia que parecessem ignorantes. O papel de Inquiridor conferia uma grande vantagem, uma oportunidade de demonstrar a construção de uma imagem em proveito próprio. Nenhum Inquiridor em seu juízo perfeito faria uma pergunta cuja resposta já não soubesse, e como ele havia sido encorajado a forjar perguntas difíceis e obscuras, não seria provável que os Contendores soubessem muitas respostas.126
O jogo não só foi fraudado, mas também as reações mentais dos participantes — na verdade, as reações mentais de todos nós. Sucumbimos com frequência à ilusão cognitiva do erro fundamental de atribuição.127 Saber que ele existe pode nos ajudar a superá-lo. Imagine que você está andando no corredor do seu escritório e passa por um novo colega de trabalho, Kevin. Você o cumprimenta e ele não responde. Você poderia atribuir sua conduta a um traço estável de personalidade e chegar à conclusão de que ele é tímido ou mal-educado. Ou poderia atribuir sua conduta a um fator situacional — talvez estivesse distraído pensando em alguma coisa, atrasado para uma reunião ou zangado com você. A ciência não afirma que Kevin raramente reage ao fator situacional, apenas que os observadores tendem a não dar importância a ele. Daniel Gilbert foi ainda mais longe ao mostrar que esse erro fundamental de atribuição é produzido pela sobrecarga de informação. Para ser mais específico, quanto maior é a sua sobrecarga de informação, maior é a probabilidade de que você cometa erros sobre a motivação da conduta de alguém.
Outro modo de contextualizar os resultados da experiência de Stanford é observando que os participantes chegaram a uma conclusão muito influenciada pelo desfecho do jogo, fazendo uma inferência baseada numa predisposição sobre o desfecho.128 Se você ouviu falar que Jolie passou para um curso difícil na universidade e Martina não, talvez conclua que Jolie seja mais inteligente, estudou mais ou é melhor aluna.129 A maioria pensaria isso. O resultado parece ser um indicador irrefutável de algo relativo à capacidade acadêmica. E se você descobrisse que Jolie e Martina tiveram examinadores diferentes nas provas? Tanto Jolie quanto Martina acertaram a mesma quantidade de perguntas, mas o examinador de Jolie era indulgente, e deixou que todo mundo da turma passasse, enquanto o examinador de Martina era rigoroso e reprovou quase todo mundo. Mesmo sabendo isso, o viés do resultado é tão forte que as pessoas continuam a concluir que Jolie é mais inteligente.130 Por que isso tem tanta força apesar de às vezes estar errado?
Eis o segredo. É porque na maior parte do tempo o resultado tem um valor de previsão e funciona como uma simples pista para tirar inferências quando estamos fazendo juízos. A confiança em pistas inconscientes e primais como essas é eficaz, geralmente rendendo juízos precisos com muito menor esforço e menor carga cognitiva.131 Na era da sobrecarga de informação, preconceitos baseados em resultados podem poupar tempo, mas precisamos ter consciência disso, porque às vezes eles simplesmente nos induzem ao erro.
Na margem do seu mundo social
Outra ilusão cognitiva relativa aos juízos sociais é que temos muita dificuldade em ignorar informação que depois é desmentida. Imagine que você esteja tentando decidir entre o trabalho A e o trabalho B; ofereceram-lhe cargos nas duas empresas com o mesmo salário. Você começa a fazer perguntas, e uma amiga lhe diz que o pessoal da empresa A é muito difícil de lidar e que, além disso, já houve vários processos por assédio sexual contra a gerência da empresa. É muito natural repassar na sua mente todas as pessoas que você conheceu na empresa A, tentando imaginar quem é difícil e quem está envolvido nas acusações de assédio. Alguns dias depois, você e sua amiga estão conversando e ela se desculpa, dizendo que confundiu a empresa A com uma diferente com nome parecido — a evidência que o fez chegar à primeira conclusão foi então sumariamente cancelada. Dezenas de experiências mostraram que o conhecimento original — agora tido como falso — exerce uma influência prolongada sobre os juízos; é impossível apertar a tecla reset. Os advogados sabem bem disso, e muitas vezes inoculam a semente de uma ideia falsa na cabeça dos jurados e do juiz. Depois da objeção do advogado da outra parte, o aviso do juiz — “o júri deve ignorar esta última informação” — chega tarde demais para afetar a impressão causada e o juízo feito.132
Um exemplo vívido disso é dado por uma experiência realizada pelo psicólogo Stuart Valins. Essa experiência revela sua idade — é dos anos 1960 —, e não é nem de longe politicamente correta pelos padrões atuais. Mas os dados fornecidos são válidos e foram replicados solidamente em dezenas de estudos conceitualmente semelhantes.133
Levados ao laboratório, estudantes do sexo masculino foram informados de que participariam de uma experiência sobre o que o estudante universitário médio acha atraente numa mulher.134 Eles foram colocados numa cadeira, com eletrodos nos braços e um microfone no peito. O pesquisador explicou que os eletrodos e o microfone mediriam a excitação fisiológica em reação a pôsteres de mulheres que foram capas da Playboy, que seriam mostrados um a um. Cada participante viu as mesmas fotos que os outros participantes, mas em ordem diferente. Um alto-falante irradiava o som das batidas do coração dos participantes. Todos eles olharam, uma a uma, as fotos mostradas pelo pesquisador, e as batidas do coração aumentavam e diminuíam audivelmente em função da atração exercida na foto de cada mulher.
Sem que os participantes soubessem, os eletrodos em seus braços e o microfone no peito não estavam conectados ao alto-falante — era tudo um ardil. As batidas que pensavam estar ouvindo eram, na realidade, a gravação de um pulso num sintetizador, e as flutuações no ritmo haviam sido predeterminadas pelo pesquisador.135 Terminada a experiência, o pesquisador mostrou aos alunos a verdadeira natureza do som das batidas do coração — na realidade, o pulso no sintetizador, que nada tinha a ver com seu ritmo cardíaco. O pesquisador mostrou aos participantes o sistema de playback do gravador, e que os eletrodos no braço e o microfone no peito não estavam ligados a nada.
Pense nisso do ponto de vista do participante. Por um breve momento, deram-lhe a impressão de que as verdadeiras reações físicas de seu corpo demonstravam que ele havia achado determinada mulher especialmente atraente. Depois, a evidência dessa impressão havia sido anulada por completo. Logicamente, se ele estivesse comprometido com tomadas de decisão racionais, apertaria a tecla reset das suas impressões e concluiria que não havia motivo para confiar no som saído dos alto-falantes. A recompensa pela experiência veio em seguida, quando o pesquisador deixou que os participantes selecionassem fotos para levar para casa, em retribuição pelo seu auxílio na experiência. Que fotos os homens escolheram? Na sua maioria, as que haviam sido acompanhadas pelas batidas mais fortes do coração. A crença que tinham — e cuja evidência havia sido depois removida — persistiu, obnubilando seu julgamento. Valins acredita que o mecanismo responsável por essa ocorrência é a autopersuasão. As pessoas investem uma quantidade significativa de esforço cognitivo para gerar uma crença que é coerente com o estado fisiológico pelo qual estão passando. Tendo feito isso, os resultados desse processo são relativamente persistentes e resistentes à mudança, porém representam um erro de julgamento traiçoeiro.136 Nicholas Epley diz que, na maioria dos casos, não temos consciência da construção de nossas crenças nem dos processos mentais que levam a elas.137 Assim, mesmo quando a evidência é explicitamente retirada, a crença persiste.
A persistência da crença surge na vida cotidiana através da fofoca. A fofoca não tem nada de novo, é claro. É um dos mais antigos defeitos humanos registrados por escrito, no Velho Testamento e em outras fontes antigas, desde a aurora da escrita. Os seres humanos fofocam por muitos motivos. Talvez isso nos ajude a nos sentirmos superiores aos outros quando nos sentimos inseguros sobre nós mesmos, ou nos auxilie a construir laços com outros para testar sua fidelidade — se Tiffany está querendo se juntar a mim para fofocar contra Britney, talvez eu possa considerá-la uma aliada. O problema da fofoca é que ela pode ser falsa. Isso é especialmente verdade quando o boato é passado de boca em boca e de orelha a orelha por várias pessoas, cada uma embelezando-o mais. Por causa da persistência da crença, o erro na informação social, baseado numa mentira deslavada ou na distorção dos fatos, pode ser difícil de erradicar. E depois pode ser difícil consertar as carreiras e relações sociais.
Além de nossos cérebros conterem uma predisposição inata para atribuir traços e gostar de boatos, os seres humanos tendem a ter uma desconfiança inata de forasteiros, sendo que forasteiro pode ser qualquer um diferente de nós. “Diferente de nós” pode ser descrito por meio de várias dimensões e qualidades: religião, cor da pele, cidade de origem, o colégio em que nos formamos, nosso nível de renda, o partido político a que pertencemos, o tipo de música que ouvimos, o time pelo qual torcemos. Nas escolas de ensino médio em todo o território americano, os alunos tendem a formar grupinhos com base em alguma dimensão diferencial marcante (para eles). A dimensão divisória primordial é geralmente entre os alunos que se filiam e endossam a tese generalizada de que o colégio os ajudará e aqueles que, por motivos de origem, experiência familiar ou condição socioeconômica, creem que o colégio seja uma perda de tempo.138 Além dessa divisão primordial, os estudantes geralmente se subdividem em grupos menores, com base numa divisão posterior daquilo que constitui “gente como nós”.
Essa divisão da filiação ao grupo social surge numa época em que nossos cérebros e corpos estão sofrendo mudanças neuronais e hormonais dramáticas. Socialmente, começamos a compreender que podemos ter nossos próprios gostos e desejos. Não precisamos gostar daquilo que nossos pais gostam e dizem que deveríamos gostar — exploramos, e a seguir desenvolvemos e refinamos, nosso próprio gosto para música, roupas, filmes, livros e atividades. É por isso que os colégios de ensino fundamental tendem a ter relativamente poucos grupos sociais, enquanto as escolas de ensino médio têm tantos.
Mas junto a tantas outras ilusões cognitivas que levam ao julgamento social falho existe um fenômeno conhecido como o preconceito de grupo. Tendemos — erroneamente, é claro — a pensar que as pessoas que fazem parte do nosso grupo são indivíduos, enquanto os membros de outros grupos são considerados um coletivo menos diferenciado. Isto é, quando nos pedem que julguemos o grau de disparidade entre os interesses, personalidades e inclinações dos membros do nosso grupo, em contraposição aos do outro grupo, tendemos a superestimar as semelhanças entre os membros do grupo que não é o nosso.
Então, por exemplo, se pedem aos democratas que descrevam a semelhança entre um democrata e outro, eles podem dizer algo do tipo “ah, os democratas são oriundos de todos os setores — somos um grupo muito diversificado”. Se, em seguida, lhes pedirem que descrevam os republicanos, talvez digam “ah, esses republicanos, eles só se importam com impostos mais baixos. São todos iguais”. Nós também tendemos a preferir membros do nosso grupo. Geralmente, um grupo será percebido de maneira diferente, e com maior precisão, pelos próprios membros do que por forasteiros.139
O efeito grupo comum/grupo de fora tem uma base neurológica. Dentro de uma região do cérebro chamada córtex pré-frontal medial existe um grupo de neurônios que dispara quando pensamos em nós mesmos e em pessoas parecidas conosco.140 Essa rede neuronal está relacionada ao modo devaneio, descrito no Capítulo 2 — o modo devaneio está ativo quando pensamos em nós mesmos em relação a outros, e quando nos metemos a encarar as coisas sob perspectiva.141
Uma explicação plausível para o efeito grupo comum/grupo de fora é que ele é meramente um produto do contato — conhecemos uma porção de pessoas diferentes em nosso grupo, e as conhecemos mais do que as pessoas do outro grupo. Isso precisa ser verdadeiro por definição; nós nos associamos aos membros do nosso grupo, não com o grupo de fora. Portanto, nos defrontamos regularmente com a complexidade e a diversidade de nossos amigos, a quem conhecemos bem, enquanto acreditamos equivocadamente que as pessoas que não conhecemos são menos complexas e diversificadas. Somos mais capazes de engajar o córtex pré-frontal medial com membros do nosso grupo porque o comportamento deles é mais facilmente visualizado pelo nosso cérebro, em todas as suas nuances.
Mas essa hipótese é contrariada pelo fato espantoso de que aquilo que constitui um grupo comum e um grupo de fora pode ser definido a partir das premissas mais frágeis, tais como um cara ou coroa entre dois grupos formados aleatoriamente.142 Um critério para se sentir pertencente ao grupo é a interdependência do destino.143 Depois de estabelecer o destino comum pelo cara ou coroa — um grupo ganharia um pequeno prêmio, o outro não —, pediu-se a estudantes que participavam de uma experiência que julgassem as semelhanças e as diferenças de vários membros de cada grupo. Houve um forte efeito grupo comum/grupo de fora até mesmo nesse agrupamento controlado. Membros de um grupo relataram que as pessoas de seu grupo — pessoas que haviam acabado de conhecer — tinham mais qualidades desejáveis, e que preferiam conviver com elas. Outras pesquisas mostraram que manipulações igualmente fracas levaram os membros de um grupo a se avaliarem como mais diferentes entre si do que membros do grupo de fora.144 Parece que dividir pessoas em categorias mutuamente exclusivas ativa a percepção de que “nós” somos melhores do que “eles”, mesmo quando não há uma base racional para isso.145 Simplesmente é como “nós” somos.
Quando pensamos em organizar nosso mundo social, a implicação do preconceito de grupo é evidente. Tendemos obstinadamente a fazer mau juízo dos forasteiros, diminuindo nossa capacidade de construir novas relações sociais potencialmente cooperativas e valiosas.
O racismo é uma forma de juízo social negativo que surge de uma combinação de crença persistente, preconceito contra grupos de fora, erro de categorização e raciocínio indutivo falho. Ouvimos falar de um determinado traço ou ato indesejável da parte de um indivíduo e logo concluímos que se trata de algo totalmente previsível em alguém daquela origem étnica ou nacional. A forma do argumento é a seguinte:
1.0. A mídia relatou que o sr. A fez isso.
1.1. Eu não gosto do que ele fez.
1.2. O sr. A é da Horrolândia.
1.3. Logo, todo mundo da Horrolândia faz coisas de que não gosto.
Não há nada de errado, obviamente, com as afirmações 1.0 e 1.1. A afirmação 1.2 parece violar (desprezar) a máxima griceana sobre a importância, mas, em si mesma, não é uma violação. Notar o país de origem de alguém não é algo moral nem imoral em si mesmo. Existe como fato, fora da moralidade. É no modo como se usa a informação que entra a moralidade. Pode-se reparar na religião ou no país de origem de alguém como um passo para a aproximação, para entender melhor as diferenças culturais. Ou pode-se usar isso para generalizações racistas. De um ponto de vista lógico, o verdadeiro problema acontece em 1.3, uma generalização a partir de um único exemplo específico. Por uma série de motivos históricos e cognitivos, os seres humanos desenvolveram uma infeliz tendência a agir assim, sendo que em alguns casos trata-se de uma questão adaptativa. Eu como um pedaço de fruta que nunca vi antes, passo mal, então presumo (raciocínio indutivo) que todos os pedaços dessa fruta são potencialmente não comestíveis. Fazemos generalizações sobre todo tipo de pessoas e coisas porque o cérebro é uma gigantesca máquina de inferir, e utiliza quaisquer dados à mão para assegurar nossa sobrevivência.146
No final dos anos 1970, o psicólogo social Mick Rothbart ministrava uma disciplina sobre relações raciais para uma turma com aproximadamente a mesma quantidade de alunos negros e brancos.147 Quase sempre um aluno branco começava sua pergunta com a introdução “será que os negros não sentem...”, e Mick pensava consigo mesmo: “boa pergunta”. Mas se algum aluno negro começasse sua pergunta com “será que os brancos não sentem...”, Mick se via pensando: “o que será que eles querem dizer com ‘brancos’? Existem vários tipos de brancos: conservadores, alguns mais à esquerda, judeus, gentios, gente sensível aos problemas das minorias, gente insensível a eles. ‘Brancos’ é demasiadamente amplo e sem sentido para se usar como categoria, e não há como responder à... pergunta... formulada dessa maneira”.
É claro que os mesmos pensamentos provavelmente passavam pela cabeça dos estudantes negros da turma quando a pergunta começava com “será que os negros não sentem...”. Nos casos de preconceito de grupo, cada grupo pensa no outro como algo homogêneo e monolítico, e se enxerga como algo variado e complexo.148 Você provavelmente está pensando que para resolver o problema basta uma crescente exposição deste fato — se os integrantes dos grupos passarem a se conhecer melhor, os estereótipos desaparecerão.149 Isso é em grande parte verdade, mas o preconceito de grupo, por estar tão profundamente enraizado na nossa biologia evolutiva, é algo difícil de suprimir. Numa experiência, homens e mulheres que se avaliaram mutuamente como grupo caíram na mesma armadilha cognitiva. “É impressionante”, escreveu Mick Rothbart, “ter demonstrado esse fenômeno com dois grupos que mantêm contato quase contínuo, e possuem uma grande quantidade de informações um sobre o outro.”150 Depois que formamos um estereótipo, tendemos a não reavaliá-lo.151 Em vez disso, descartamos qualquer nova prova em contrário como “exceção”. Essa é uma forma de persistência na crença.
Os sérios problemas da fome, da guerra e da mudança climática que enfrentamos exigirão soluções que envolvem todos os que apostam no futuro do planeta. Nenhum país ou coletivo de países conseguirá resolver essas questões sozinho se tiverem visões excludentes uns dos outros, em vez de includentes. Pode-se dizer que o destino do mundo depende (entre outras coisas) de se abolir a exclusão grupal oriunda do preconceito. Num determinado caso, foi o que aconteceu.
Outubro de 1962 foi talvez o momento histórico em que estivemos mais próximos de destruir completamente o planeta, quando o presidente Kennedy e o secretário Khruschóv chegaram a um impasse nuclear, conhecido no Ocidente como a crise dos mísseis de Cuba.152 (Ou, como chamavam os soviéticos, a crise do Caribe de 1962.)
Um dos aspectos principais da solução da crise foi uma comunicação particular, através de canais não oficiais, entre JFK e Khruschóv. Estava-se no auge da Guerra Fria. Funcionários de cada lado acreditavam que o outro queria dominar o mundo e não merecia confiança. Kennedy via a si mesmo e todos os americanos como membros de um grupo comum, e Khruschóv e os soviéticos como um grupo de fora. Acumulavam-se todos os preconceitos que já vimos: os americanos acreditavam-se merecedores de confiança, e qualquer comportamento agressivo dos EUA (mesmo a julgar por padrões internacionais) justificava-se; qualquer comportamento agressivo dos soviéticos mostrava apenas sua verdadeira natureza, de gente má, irracional, sem compaixão, determinada à destruição.
A virada aconteceu quando Khruschóv dispensou toda a retórica e fanfarronice e pediu a Kennedy que visse as coisas sob a perspectiva dele, que demonstrasse um pouco de empatia. Implorou a Kennedy várias vezes que “tentasse se colocar no nosso lugar”.153 Em seguida, frisou a semelhança entre eles, como líderes de seus respectivos países. “Se você está realmente preocupado com a paz e o bem-estar de seu povo, que é sua responsabilidade de presidente, então eu, como secretário do Conselho de Ministros, também estou, em relação ao meu povo.154 E, mais ainda, a preservação da paz mundial deveria ser nossa preocupação conjunta, uma vez que, nas condições atuais, se a guerra estourar, não será apenas uma guerra em torno de reivindicações recíprocas, mas uma guerra mundial cruel e destrutiva.”
De fato, Khruschóv realçou um grupo a que tanto ele quanto Kennedy pertenciam — líderes de grandes potências mundiais. Ao fazê-lo, transformou Kennedy, de membro de um grupo de fora, em membro de um grupo comum.155 Foi essa a virada na crise, que abriu possibilidades para uma solução de compromisso que a resolveu, em de 26 de outubro de 1962.
A ação militar é muitas vezes equivocada. Durante a Segunda Guerra Mundial, os nazistas bombardearam Londres na esperança de provocar uma rendição; a atitude teve o efeito contrário, aumentando a determinação dos britânicos de resistir. Em 1941, os japoneses tentaram impedir que os Estados Unidos entrassem na guerra, atacando Pearl Harbor, tiro que saiu pela culatra ao empurrar os Estados Unidos para a guerra. Nos anos 1980, o governo norte-americano financiou uma ação militar contra a Nicarágua para obter uma reforma política. Durante o final de 2013 e o começo de 2014, três anos após o início da revolta democrática no Egito, o governo no poder ficou preso num círculo vicioso de terrorismo e repressão com a Irmandade Muçulmana, que endureceu a determinação de ambos os lados.156
Por que essas intervenções tantas vezes fracassam? Em virtude do preconceito de grupo, tendemos a pensar que a coerção será mais eficaz contra nossos inimigos do que contra nós mesmos, e que a conciliação será mais eficaz a partir de nós mesmos do que de nossos inimigos.157 O ex-secretário de Estado George Shultz, refletindo sobre quarenta anos de política externa americana, de 1970 ao momento presente, disse: “Quando pensamos em todo o dinheiro que gastamos em bombas e munição, e em nossos fracassos no Vietnã, Iraque, Afeganistão e em outros lugares ao redor do mundo [...]. Em vez de promover nossos interesses por meio da força, deveríamos ter construído escolas e hospitais nesses países, melhorando a vida das crianças. A essa altura, essas crianças teriam chegado a uma idade em que teriam influência, e nos apreciariam, em vez de nos odiar”.158
Quando queremos escapar de um mundo social
Numa sociedade organizada e civilizada, dependemos uns dos outros de várias maneiras. Presumimos que as pessoas não jogarão o lixo de qualquer jeito na calçada da nossa casa, que os vizinhos nos avisarão se virem qualquer atividade suspeita quando estivermos viajando e que se precisarmos de auxílio médico urgente, alguém vai parar e chamar uma ambulância. O fato de morar em grandes e pequenas cidades é sobretudo um fator de cooperação. O governo, em seus vários níveis (federal, estadual, municipal, distrital), faz leis para definir o comportamento cívico que, na melhor das hipóteses, só enquadram casos de extrema incivilidade. Dependemos uns dos outros não apenas no cumprimento da lei, mas no que diz respeito a sermos prestativos e cooperativos para além da lei. Poucas jurisdições possuem uma lei que estipule que se você vir a filha de quatro anos de Cedric cair da bicicleta na rua, será obrigado a ajudá-la ou a avisar a Cedric. Mas seria considerado monstruoso se você não fizesse isso. (A Argentina é um dos países que exige legalmente que as pessoas ajudem no caso de outras precisarem de ajuda.)159
Ainda assim, as interações sociais são complexas, e uma série de experiências demonstrou que ou agimos em interesse próprio ou simplesmente não queremos nos envolver. Imagine, por exemplo, ser testemunha de um sequestro, assalto ou qualquer acontecimento perigoso. Existem normas sociais claras sobre o socorro à vítima de uma situação assim. Mas também existem temores perfeitamente justificáveis sobre as consequências que alguém pode sofrer se intervir.160 Contrapostas às normas sociais e à inclinação ao socorro, existem várias forças psicológicas que nos empurram para a inação. Como dizem os psicólogos sociais John Darley e Bibb Latané, “‘eu não queria me meter’ é um comentário bem conhecido, que encobre temores de males físicos, de passar vergonha, de se envolver com a rotina policial, de perder dias de trabalho e até o emprego, e outros perigos desconhecidos”.161
Além disso, há muitas circunstâncias em que não somos as únicas testemunhas de um fato que parece exigir uma intervenção, como nos lugares públicos. Na condição de espécie altamente social, que vive em íntima proximidade com milhares de outras pessoas, nós queremos pertencer. Por sua vez, esse desejo nos faz olhar para os outros em busca de pistas sobre o que é aceitável em determinada situação. Vemos alguém do outro lado da rua que parece estar sendo assaltado. Olhamos em volta e vemos dezenas de outras pessoas que assistem à mesma situação sem fazer nada. “Talvez”, pensamos, “isso aí não seja o que parece ser. Nenhuma dessas pessoas está reagindo. Talvez saibam alguma coisa que eu não sei. Talvez não seja um assalto de verdade, apenas dois conhecidos que resolveram improvisar uma luta. Preciso respeitar sua privacidade.” Sem que saibamos, dezenas de outras pessoas também estão olhando em volta e tendo o mesmo diálogo interno, chegando à mesma conclusão de que é contra a norma social se envolver nesse conflito específico. Não se trata apenas de problemas em um livro didático. Em 2011, um sujeito de 61 anos, Walter Vance, que sofria do coração, morreu depois de desmaiar numa loja Target na Virgínia Ocidental, enquanto centenas de fregueses passavam por ele, até por cima dele.162 Em 2013, os clientes de uma loja de conveniência QuickStop, em Kalamazoo, Michigan, passaram por uma pessoa que havia levado um tiro e estava morrendo na porta.163 O caixa não foi verificar se o homem estava vivo; continuou a atender os clientes.
Essa tendência de não se deixar envolver é impulsionada por três poderosos princípios psicológicos inter-relacionados. Um deles é o forte desejo de se adequar ao comportamento alheio na esperança de que isso nos ajude a conquistar a aceitação do nosso próprio grupo social, a ser considerado cooperativo e simpático.164 O segundo é o da comparação social — tendemos a examinar nosso comportamento em termos dos outros.165
A terceira força que nos impele à inação é a difusão da responsabilidade. Isso se baseia num sentido muito natural e inculcado de justiça e de querer castigar os acomodados: “Por que eu deveria me expor se toda essa gente aí não está fazendo nada? Eles poderiam tomar uma atitude tanto quanto eu”. Darley e Latané fizeram uma experiência clássica reproduzindo uma emergência médica na vida real. Os participantes tinham três vezes mais probabilidade de rapidamente pedir socorro — que estava tendo uma convulsão — quando se consideravam as únicas testemunhas do que quando achavam que havia mais quatro pessoas também presentes. A difusão da responsabilidade acarreta a difusão da culpa pela inação, e pela possibilidade muito real de que alguém já tivesse tomado, sem que soubéssemos, uma iniciativa de obter socorro, como, por exemplo, chamar a polícia.166 Como dizem Darley e Latané:
Quando existe apenas uma testemunha de uma emergência, se houve socorro, ele deve ter partido de sua iniciativa. Apesar de poder ignorá-la (pela preocupação com sua segurança pessoal ou pelo desejo de “não se envolver”), qualquer pressão para obter socorro se concentra apenas nessa única testemunha. Diante da presença de vários observadores, no entanto, a pressão de intervir não recai sobre nenhum deles; antes, a responsabilidade de intervir é compartilhada por todos os espectadores. Como resultado, ninguém ajuda.167
É claro que essa não é nenhuma forma especialmente admirável de conduta, mas captura uma parte essencial da natureza humana, que, é preciso que se diga, não representa nada que possa nos trazer orgulho como espécie. Não somos apenas uma espécie social, mas muitas vezes também uma espécie egoísta. Como disse uma participante da experiência de Darley e Latané a respeito da convulsão que outra pessoa estava sofrendo: “Que azar, isso só acontece comigo!”. Isto é, ela não conseguiu sentir empatia pela vítima, pensando apenas no inconveniente de ser incomodada. Felizmente, não somos todos assim, nem em toda situação. Os seres humanos e outros animais são muitas vezes altruístas. Os gansos se socorrem mutuamente mesmo com um grande risco pessoal;168 os macacos-vervet dão gritos de alarme diante da proximidade de predadores,169 tornando-se assim muito mais visíveis diante desses mesmos predadores, e os suricatos ficam de sentinela enquanto o resto do bando come.170 Qual o mecanismo neuroquímico que sustenta esse comportamento altruísta de ficar de guarda? A oxitocina — o mesmo hormônio de filiação social que aumenta a confiança e a cooperação social entre os homens.171
A distinção entre as nossas reações egoístas e altruístas podem ser consideradas um erro de categorização. Quando praticamos o conformismo, a comparação social ou a difusão de responsabilidade, estamos nos incluindo na categoria do grupo majoritário, em contraposição à vítima. Nós nos vemos conectados a ele, que se torna nosso grupo comum. Deixamos de nos identificar com a vítima, que se torna um integrante de um grupo de fora, não merecendo confiança nem grande compreensão. Por isso Darley e Latané descobriram que tantos de seus participantes corriam para ajudar quando se viam na posição de únicas testemunhas — sem um grupo social em cuja categoria pudessem se incluir, estavam livres para se identificar com a vítima. Conhecer esses princípios pode nos ajudar a superá-los, sentir empatia pela vítima e sufocar a tendência a dizer “eu não quero me meter”.
O seu mundo social é o seu mundo social. Quem pode dizer como ele deve ser organizado? Estamos todos crescentemente interconectados, e nossa felicidade e nosso bem-estar são cada vez mais interdependentes. Uma das medidas do êxito de uma sociedade é o grau de compromisso dos cidadãos com o bem comum. Se você vir o alerta da polícia sobre a placa de um carro, na estrada, e depois uma placa idêntica, chame a polícia. Procure ser solidário. Apesar de toda a digitalização de nossa vida social, ainda estamos todos juntos nesta aventura.