TODO O RESTO
O poder da gaveta da bagunça
Para muitas pessoas, ser organizado significa ter “um lugar para tudo e tudo no seu lugar”. Isto é um princípio importante para organizar arquivos, ferramentas e objetos, em casa e no escritório, e assim por diante. Mas é igualmente importante para nossos sistemas e infraestrutura organizativos que se permita a existência de categorias indefinidas, coisas que passam pelos interstícios — a pasta de miscelânea no seu sistema de arquivamento, a gaveta da bagunça na cozinha. Como diz Doug Merrill, a organização nos dá liberdade de ser um pouco desorganizados.1 Uma típica gaveta da bagunça na cozinha americana contém fósforos, pedaços de papel, talvez um martelo, hashi, uma fita métrica, ganchos para quadros. Existem certas limitações de design que legitimam uma gaveta em que cabe tudo: você não vai reprojetar a cozinha para ter uma pequena gaveta ou escaninho para hashi, e outra para fósforos. A gaveta da bagunça é um lugar onde as coisas vão se juntando até que você tenha tempo de organizá-las, ou porque não há um lugar melhor para elas. Às vezes, o que parece ser uma bagunça não precisa ser fisicamente organizado em absoluto, se você for capaz de se acalmar e perceber a organização no meio do emaranhado de detalhes.
Como frisei no decorrer deste livro, o princípio fundamental da organização, o mais crucial para evitar que percamos ou esqueçamos as coisas, é este: descarregue do cérebro para o mundo externo o ônus de organizar. Se pudermos pegar um pouco ou todo o processo de nossos cérebros e depositá-lo no mundo externo, é menos provável que cometamos erros. Mas a mente organizada lhe proporciona muito mais do que simplesmente evitar erros. Ela o capacita a fazer coisas e ir a lugares que você de outro modo nem imaginaria. Exteriorizar informação nem sempre implica anotá-la ou codificá-la em algum meio externo. Muitas vezes a coisa já foi feita para você. Basta saber ler os sinais.
Vamos pegar a numeração do sistema rodoviário interestadual dos EUA.2 Superficialmente, parece uma bagunça, mas na verdade é um sistema altamente organizado. Foi iniciado pelo presidente Dwight D. Eisenhower, e sua construção começou em 1956. Hoje, comporta quase 80 mil quilômetros de rodovias. A numeração das rodovias interestaduais segue um conjunto de regras simples. Se você conhecer as regras, fica mais fácil descobrir onde está (e mais difícil se perder), porque as regras descarregam informação da sua memória e a colocam num sistema que está no mundo exterior. Em outras palavras, você não precisa memorizar um conjunto de fatos aparentemente arbitrários como Rodovia 5 vai de norte ao sul, ou Rodovia 20 vai de leste a oeste na parte sul do país. Em vez disso, você aprende um conjunto de regras que se aplica a todos os números, e então os próprios números das rodovias lhe informam como elas avançam:
É auxiliar à rota I-80.
Vai de leste a oeste (número par).
É um ramal para uma cidade (primeiro dígito ímpar) e não voltará à rota I-80.
No estado de Nova York, a I-87 é a principal rodovia norte-sul.4 Não é um múltiplo de 5, por isso não é considerada uma rodovia principal como a I-95, que é paralela e próxima. Em Albany, a I-87 se junta à I-787, que se divide para levar os motoristas até bem dentro da cidade. Este sistema de regras é ligeiramente difícil de memorizar, mas é lógico e estruturado, e muito mais fácil de memorizar do que a direção e a natureza de todas as diversas rodovias do país.
A tabela periódica dos elementos explicita as relações e certas regularidades latentes no mundo que de outro modo poderiam passar despercebidas.5 Da esquerda para a direita, os elementos são representados em ordem crescente de número atômico (o número de prótons no núcleo). Os elementos com a mesma carga nuclear, determinada pelo número de elétrons na camada mais externa, aparecem na mesma coluna e têm propriedades semelhantes; à medida que passam de cima para baixo, o número das camadas de elétrons aumenta. Indo da esquerda para a direita, em linha, cada elemento acrescenta um próton e um elétron e se torna menos metálico. Os elementos com propriedades físicas semelhantes tendem a ficar agrupados, com os metais embaixo à esquerda, e não metais em cima à direita; os elementos de propriedades intermediárias (como semicondutores) ficam no meio.6
Uma das consequências excitantes e imprevistas de criar a tabela periódica foi que, à medida que os cientistas preenchiam essa estrutura com os elementos, descobriam lacunas onde presumiam que haveria elementos — elementos com um próton a mais do que o da esquerda e um a menos do que o da direita —, mas nenhum elemento conhecido se encaixava nessa descrição. Isto levou os cientistas a procurar os elementos que faltavam, e em todos os casos eles os acharam, ou na natureza ou através de sínteses em laboratório.
É difícil duplicar a elegância da tabela periódica, mas vale a pena tentar, mesmo em ambientes um tanto cotidianos. Uma loja de ferragens que organiza torneiras, tarrachas ou porcas e parafusos por suas dimensões de largura e comprimento é capaz de perceber com facilidade lacunas no conjunto, onde faltam peças. A organização sistemática também facilita perceber itens fora do lugar.
O princípio fundamental de exteriorizar informação se aplica de modo universal. Os pilotos de avião tinham antes dois controles extremamente parecidos, mas que desempenhavam diferentes funções para as aletas e o trem de aterrissagem. Depois de uma série de acidentes, os engenheiros surgiram com a ideia de exteriorizar a informação sobre a ação desses controles: o controle das aletas foi feito de modo a parecer uma aleta em miniatura, e o controle do trem de aterrissagem na forma de uma roda, lembrando o trem de aterrissagem. Em vez de os pilotos precisarem depender de suas memórias quanto à posição específica de cada controle, o próprio controle lhes lembrava a sua função, e como resultado os pilotos cometiam menos erros.
Mas o que acontece quando não conseguimos exteriorizar a informação — por exemplo, ao conhecer gente nova? Certamente há uma maneira de lembrar melhor os nomes das pessoas. Acontece com todos nós: você conhece alguém, entra numa conversa realmente interessante, faz bastante contato visual, troca confidências pessoais, só para descobrir que esqueceu o nome dele. É muito constrangedor perguntar, de modo que você desconversa, desconfiado, sem saber o que fazer em seguida.
Por que é tão difícil? Pela maneira como a memória funciona: nós codificamos informação nova apenas se prestarmos atenção a ela, e nem sempre estamos prestando atenção no momento em que fomos apresentados. No instante em que conhecemos uma pessoa nova, muitos de nós ficamos preocupados com a impressão que causamos — pensamos em como estamos vestidos ou se estamos com mau hálito, ou tentamos ler a linguagem corporal da pessoa para ver como ela está nos avaliando. Isso torna a codificação de uma informação nova, como um nome, impossível. E a pessoa dona de si, orientada para o próprio trabalho, quando conhece alguém novo, pode ser levada a pensamentos como “Quem é essa pessoa? Que informação importante é possível lucrar com essa conversa?”, e então começa um diálogo interno que perde o rumo, e deixa de prestar atenção naqueles breves 500 milissegundos em que o nome foi pronunciado uma vez.
Para se lembrar de um novo nome você precisa se permitir tempo para codificá-lo; cinco segundos mais ou menos costumam ser suficientes. Ensaie repetidamente o nome para si mesmo. Enquanto faz isso, olhe a pessoa no rosto e se concentre em associar o nome ao rosto. Lembre-se de que você (provavelmente) já ouviu o nome antes, de modo que não está sendo obrigado a aprender um novo nome, apenas associar um nome conhecido a um novo rosto.7 Se tiver sorte, o rosto da pessoa vai lembrá-lo de outra pessoa com o mesmo nome. Se não for o rosto inteiro, talvez uma feição qualquer. Talvez esse Gary que você está conhecendo tenha olhos parecidos com os de outro amigo Gary, ou essa nova Alyssa tenha maçãs do rosto salientes como as de uma amiga do colégio com o mesmo nome. Se você não for capaz de fazer uma conexão associativa assim, procure sobrepor o rosto de alguém que você conhece com esse nome ao rosto da pessoa atual, criando um elo imaginário. Isto será útil para lembrar.
E se a pessoa se apresenta e depois fica calada? Cinco segundos é muito tempo morto para ficar suspenso no ar. Se isso acontecer, faça uma pergunta a seu novo conhecido sobre de onde ele é ou sobre o que faz — sem que esteja realmente interessado em prestar atenção nisso; você está apenas abrindo uma área na sua memória para codificar esse nome (não se preocupe, a informação secundária geralmente também é codificada).
Se você conhece alguém com um nome que nunca ouviu antes, é apenas ligeiramente mais complicado. Aqui, o tempo para codificar é a chave. Peça a ele que soletre o nome e em seguida soletre-o, você para ele. Durante essa troca, você estará repetindo o nome para você mesmo, e ganhando um tempo valioso para ensaiar. Ao mesmo tempo, tente criar na sua mente uma imagem vívida de algo que lhe faça lembrar o nome e imagine a pessoa dentro dessa imagem. Esses truques funcionam de fato. Quanto mais absurda ou diferente a imagem mental que você cria, mais memorável se torna o nome. Para fixá-lo melhor, depois que o aprendeu, apresente seu novo conhecido às outras pessoas durante uma festa, criando mais oportunidades para praticar o nome.8 Ou comece uma frase com ele: “Courtney... eu queria lhe perguntar...”.
Exteriorizar a informação organiza a mente e permite que ela seja mais criativa. A história da ciência e da cultura está cheia de histórias sobre como ocorreram muitas grandes descobertas científicas e artísticas, quando o autor não estava com a cabeça naquilo, pelo menos não de modo consciente — o modo devaneio resolveu o problema, e a resposta surgiu de repente, num lampejo. John Lennon recordou numa entrevista como compôs “Nowhere Man”.9 Depois de trabalhar cinco horas tentando fazer algo, ele desistiu. “Em seguida, ‘Nowhere Man’ surgiu, versos e música, a porra toda, quando deitei.” James Watson descobriu a estrutura do DNA, e Elias Howe, a máquina de costura automática, em sonhos.10 Salvador Dalí, Paul McCartney e Billy Joel criaram algumas de suas obras mais apreciadas a partir de sonhos. A descrição do próprio processo criativo da parte de Mozart, Einstein e Wordsworth frisa o papel do devaneio no amparo às suas intuições. Os três livros de Assim falou Zaratustra, de Friedrich Nietzsche, foram compostos em três surtos distintos de dez dias de inspiração.11 Como nota a romancista Marilynne Robinson, vencedora do prêmio Pulitzer:
Todo escritor fica imaginando de onde vêm as ideias da ficção.12 As melhores delas muitas vezes surgem abruptamente depois de um período de seca imaginativa. E, misteriosamente, são de fato boas ideias, muito superiores às invenções conscientes.
Muitos artistas criativos relatam não saber de onde vêm suas melhores ideias e que se sentem como meros copistas, que transcrevem a ideia. Dizem que, quando ouviu pela primeira vez seu oratório A criação, Haydn irrompeu em lágrimas, gritando: “Eu não compus isto”.13 Na gangorra da atenção, a cultura ocidental supervaloriza o modo executivo central e subvaloriza o modo devaneio. A abordagem executiva central na solução de problemas é muitas vezes diagnóstica, analítica e impaciente, enquanto a abordagem do devaneio é lúdica, intuitiva e descontraída.14
Navegação e serendipidade
Malcolm Slaney, pesquisador sênior da Microsoft, e Jason Rentfrow, professor da Universidade de Cambridge, defendiam (no Capítulo 7) a dispensa de cópias físicas de documentos e correspondência, e todos os arquivos, arrumações e localizações que elas acarretam. Os arquivos digitais de computadores são mais eficientes em termos de espaço de armazenamento, e geralmente de acesso mais rápido.
Mas muitos ainda acham algo convidativo e satisfatório o manuseio de objetos físicos. A memória é multidimensional, e nossas memórias dos objetos se baseiam em múltiplos atributos. Pense lá atrás na sua experiência com pastas de arquivos, do tipo físico. Talvez você tivesse alguma velha e gasta que não se parecesse com as outras e — a despeito do que contivesse ou estivesse escrito nela — que evocasse lembranças do seu conteúdo. Os objetos materiais tendem a parecer diferentes entre si de uma maneira que os arquivos de computador não são. Todos os bits são criados iguais.15 Os mesmos zeros e uns de seu computador que fornecem lixo também podem fornecer a beleza sublime da quinta sinfonia de Mahler, as ninfeias de Monet ou o vídeo de um Boston terrier usando chifres de rena. Não há nada no próprio meio que dê uma pista da mensagem. Tanto que se você visse a representação digital de qualquer uma dessas coisas — ou deste parágrafo, por exemplo —, nem saberia se esses zeros e uns estariam representando imagens no lugar de música, ou texto. A informação, portanto, desapegou-se do significado.16
Não temos um sistema no mundo do computador que imite a experiência do mundo real que funcionava tão bem para nós. Há mais de dez anos, os aplicativos de software permitiam que as pessoas personalizassem seus ícones de arquivo e pasta, mas essa ideia nunca pegou, provavelmente porque a ausência de um objeto material pasta, com todas as suas variações nuançadas, fizesse com que todos os ícones do computador continuassem parecendo por demais heterogêneos e bobos. Esta é uma das objeções que os mais velhos fazem aos arquivos MP3 — todos parecem iguais. Não há nada que os diferencie além dos nomes. LPs e CDs oferecem a pista adicional de tamanho e cor para nos ajudar a lembrar o seu conteúdo. A Apple introduziu a possibilidade de vincular uma imagem de capa para melhorar isso, mas muitos sentem que não é igual a segurar um objeto material. As vantagens e desvantagens em jogo, em termos cognitivos e processuais, são relativas à acessibilidade (arquivos digitais) em contraposição ao ato visceral e esteticamente satisfatório de empregar os tipos de pistas visuais e táteis que nossa espécie desenvolveu para seu uso. O escritor especializado em tecnologia Nicholas Carr diz: “O meio importa, sim.17 Como tecnologia, o livro foca nossa atenção, nos isola da miríade de distrações que preenchem nossa vida cotidiana. Um computador ligado à rede faz exatamente o contrário”. Mais rápido nem sempre é desejável, e ir direto ao que você quer nem sempre é melhor.
Há uma estranha ironia nisso tudo: pequenas bibliotecas são muito mais úteis que as maiores. A Biblioteca do Congresso pode ter um exemplar de todo livro já publicado, mas é muito pouco provável que você tenha a sorte de achar ali algum livro que não conheça e que lhe dê muito prazer. Há simplesmente um excesso de material. Uma pequena biblioteca, com curadoria minuciosa e cuidada por um bibliotecário, terá sido peneirada deliberadamente para incluir determinados livros. Quando você for pegar um exemplar na estante, verá os livros ao lado que podem estimular seu entusiasmo, ou poderá ter sua atenção dirigida para um título numa seção completamente separada e não relacionada da biblioteca, e começar a inspecionar os livros ali. Ninguém inspeciona o que quer que seja na Biblioteca do Congresso — é colossal demais, completa demais. Como disse Augustus de Morgan sobre as bibliotecas do Museu Britânico, quando se quer uma obra, “ela pode ser pedida; mas, para ser pedida, ela precisa ser conhecida”. E que chance terá uma única obra de ser conhecida como fazendo parte do acervo? Minúscula. O historiador James Gleick nota: “Informação em demasia, e tanta informação perdida”.18
Muitas pessoas hoje afirmam ter descoberto algumas de suas músicas e seus livros prediletos simplesmente passeando pela coleção (limitada) de amigos. Se em vez disso você girasse a roda do gigantesco carrossel celeste para escolher a esmo uma canção ou um livro dentre os milhões existentes na nuvem, é muito improvável que encontrasse algo agradável.
Gleick, na sua história completa The Information [A informação], observa: “Existe um toque de nostalgia neste tipo de alerta, ao lado de uma verdade inegável: na busca do conhecimento, mais lento pode ser melhor. Explorar as pilhas repletas de livros das bibliotecas empoeiradas tem suas próprias recompensas. Ler — mesmo folhear — um velho livro pode fornecer uma sustância que não se consegue numa busca em banco de dados”. Talvez tenha vindo a calhar o fato de eu ter encontrado este parágrafo por acaso na biblioteca do Auburn College, quando procurava algo inteiramente diferente e a lombada do livro de Gleick chamou minha atenção. Muitas carreiras científicas foram alimentadas por artigos com que os pesquisadores toparam quando buscavam algo que se revelou muito mais tedioso e inútil. Muitos estudantes de hoje não conhecem o prazer da serendipidade que surge ao folhearmos pilhas de velhas revistas acadêmicas, virando as páginas de artigos “irrelevantes” a caminho daquele que procuramos, a mente sendo talvez atraída por algum título ou gráfico especialmente interessante. Em vez disso, eles inserem o nome do artigo de revista que querem e o computador o entrega a eles com precisão cirúrgica, sem esforço nenhum. É eficiente, sim. Animador, mas não tão capaz de desbloquear o potencial criativo.
Alguns engenheiros da computação notaram isso e tomaram medidas para consertar o problema. O StumbleUpon é um entre muitos sites da rede que permitem que as pessoas descubram conteúdo (novos sites, fotos, vídeos, música) através da recomendação de outros usuários com padrões de interesse e gosto semelhantes, uma forma de filtragem colaborativa. A Wikipédia tem um botão para um artigo aleatório, e o serviço de recomendação musical Mood Logic costumava ter um botão “surpreenda-me”. Mas essas coisas têm um escopo amplo demais, e não respeitam os sistemas organizacionais que os seres humanos sensíveis e cognitivos impuseram aos materiais. Quando topamos com um artigo de jornal, ele está perto do artigo que estávamos procurando porque um editor julgou que os artigos tivessem alguma dimensão comum, de ampla relevância para o mesmo tipo de pessoas. Na biblioteca, o sistema decimal de catalogação Dewey, ou o sistema da Biblioteca do Congresso, colocam na mesma seção livros que possuem, ao menos na mente de seus criadores, temas que se sobrepõem. Os bibliotecários nas pequenas bibliotecas espalhadas pela América do Norte estão agora experimentando o sistema de disposição “Dewey modificado”, de modo a servir melhor os usuários que procuram algo casualmente, caminhando por aquele determinado espaço da biblioteca, em vez de folhear um fichário ou procurar num buscador on-line. Os botões de serendipidade eletrônica são até agora por demais desregulados para terem alguma utilidade. A Wikipédia poderia e deveria saber o seu histórico de consultas, para que o botão do artigo aleatório recaísse dentro de um terreno pelo menos amplamente tido como de seu interesse. Em vez disso, trata todos os tópicos de modo igual — todos os bits são iguais —, e é tão provável que você receba um artigo sobre algum afluente de um pequeno rio em Madagascar quanto sobre o córtex pré-frontal.
Outra coisa perdida com a digitalização e a livre informação foi a apreciação de objetos de uma coleção. A coleção musical de alguém já foi, não faz muito tempo, um conjunto para se admirar, possivelmente para se invejar, e uma maneira de se conhecer algo sobre seu dono. Uma vez que os discos precisavam ser comprados um de cada vez, eram relativamente caros e tomavam espaço, os amantes de música montavam essas coleções de modo deliberado, planejando, usando o pensamento. Nós nos educamos sobre os artistas da música de modo a nos tornarmos consumidores mais cuidadosos. O custo de cometer um erro nos encorajava a pensar cuidadosamente antes de acrescentar um item vagabundo à coleção. Os estudantes universitários e de ensino médio examinavam a coleção de discos de um novo amigo e passeavam por ela, permitindo-se dar uma olhada no gosto musical do novo amigo e nos caminhos musicais que ele ou ela haviam presumivelmente percorrido para adquirir aquela determinada coleção musical. Agora baixamos músicas de que nunca ouvimos falar e de que talvez não gostemos, se esbarramos aleatoriamente nela no iTunes, mas o preço de cometer um erro tornou-se insignificante. Gleick conceitua essa questão assim: costumava haver uma linha entre o que possuíamos e o que não possuíamos. Esta distinção não existe mais. Quando a soma total de toda canção já gravada está disponível — toda versão, toda gravação, toda variação sutil —, o problema da aquisição se torna irrelevante, porém o problema de seleção se torna impossível. Como decidir o que vou escutar? E é claro que isso é um problema global de informação, não restrito à música. Como decidir a que filme assistir, que livro ler, que notícias acompanhar? O problema de informação do século XXI é um problema de seleção.
Há, na realidade, apenas duas estratégias de seleção diante disso — buscar e filtrar. Pode-se pensar nelas juntas, com maior parcimônia, como uma só estratégia, filtrar, sendo que a única variável é quem filtra, você ou alguém. Quando você busca algo, começa por uma ideia do que quer e vai lá tentar encontrá-lo. Mas, na era da internet, “ir lá” pode não passar de digitar algumas teclas no seu laptop, quando você está sentado na cama, de chinelos, mas de fato você vai lá no mundo digital para procurar o que busca. (Os cientistas da computação chamam isso puxar [pull], porque você está puxando informação da internet, em contraposição a empurrar [push], quando a internet envia automaticamente informação para você). Você ou seu buscador filtram e priorizam os resultados, e, se tudo der certo, você consegue o que busca na mesma hora. Tendemos a não guardar uma cópia disso, virtual ou material, porque sabemos que estará lá quando precisarmos. Nada de curadoria, colecionar, e serendipidade nenhuma.
Esse é um aspecto negativo da organização digital, e faz com que as oportunidades de devaneio sejam mais importantes do que nunca. “Os maiores cientistas são artistas também”, disse Albert Einstein.19 A própria criatividade de Einstein surgia como um súbito lampejo que se seguia a devaneio, intuição, inspiração. “Quando examino a mim e os meus métodos de pensar”, disse ele, “chego quase à conclusão de que o dom da imaginação significou mais para mim do que qualquer talento para absorver o conhecimento absoluto. [...] Todas as grandes conquistas da ciência devem começar a partir do conhecimento intuitivo. Acredito na intuição e na inspiração. [...] Às vezes tenho certeza de estar certo, mesmo sem saber por quê.” A importância da criatividade para Einstein resumia-se no seu lema “A imaginação é mais importante do que o saber”.
Muitos problemas do mundo — câncer, genocídio, repressão, pobreza, violência, grandes desigualdades na distribuição de recursos e riqueza, mudanças climáticas — exigirão grande criatividade para serem resolvidos. Reconhecendo o valor do pensamento não linear e do modo devaneio, o Instituto Nacional do Câncer promoveu uma sessão de brainstorming com artistas, cientistas e outras pessoas criativas em Cold Spring Harbor durante alguns dias em 2012. O instituto reconheceu que depois de décadas de pesquisa ao custo de bilhões de dólares, a cura para o câncer ainda estava muito longe. Eles escolheram a dedo pessoas que não tinham nenhum conhecimento ou perícia em pesquisa de câncer e as juntaram a alguns dos principais pesquisadores do câncer no mundo. A sessão de brainstorming pedia aos não peritos que simplesmente sugerissem ideias, a despeito de quão extravagantes fossem. Algumas das ideias sugeridas foram consideradas brilhantes pelos especialistas, e há colaborações em curso para implementá-las.
Tal como no caso de Einstein, a chave para a iniciativa do Instituto Nacional do Câncer é ligar o pensamento criativo não linear ao pensamento racional, linear, de modo a implementar da maneira mais potente e rigorosa possível os sonhos de homens e mulheres, conjugados aos vastos recursos dos computadores. Paul Otellini, CEO recém-aposentado da Intel, coloca a coisa desta maneira:
Quando cheguei à Intel, a possibilidade de que os computadores modelassem todos os aspectos de nossas vidas era ficção científica.20 [...] Será que a tecnologia consegue resolver nossos problemas? Pensem em como seria o mundo se a lei de Moore, a equação que caracteriza o tremendo crescimento da indústria de computadores, fosse aplicada a qualquer outra indústria. Por exemplo, à indústria automobilística. Os carros fariam 800 mil quilômetros por litro, iriam a 5 mil quilômetros por hora, e seria mais barato jogar fora um Rolls-Royce do que estacioná-lo.
Já vemos a tecnologia fazer coisas que pareciam ficção científica há não muito tempo. Os caminhões da empresa United Parcel Service (UPS) têm sensores que detectam defeitos antes que eles ocorram. Sequenciar o próprio genoma já custou 100 mil dólares, agora custa menos de mil. No final desta década, o equivalente ao cérebro humano, 100 bilhões de neurônios, caberá num único chip de computador. A tecnologia será capaz de resolver nossos problemas? Os indivíduos fascinantes, brilhantes, curiosos e diferentes que criam a tecnologia parecem achar que sim.
Quando a arte, a tecnologia ou a ciência são incapazes sozinhas de resolver problemas, a combinação das três talvez seja mais poderosa do que tudo. A capacidade da tecnologia, quando dirigida corretamente, para resolver problemas globais resistentes nunca foi tão grande. A mensagem que depreendo de Otellini é que visamos recompensas que ainda nem sequer somos capazes de imaginar completamente.
Ao fazer pesquisas para a ideia de um livro que tive vários anos atrás, O que sua gaveta da bagunça revela sobre você, olhei dezenas de gavetas da bagunça de outras pessoas. Eram editores, autores, compositores, advogados, palestrantes, construtores, professores, engenheiros, cientistas e artistas. Pedi a cada um deles que fotografasse suas gavetas abertas, em seguida que tirasse tudo de dentro delas e arrumasse em cima de uma mesa, pondo coisas semelhantes ao lado umas das outras. Pedi que tirassem outra foto antes de organizar, rearrumar, rearquivar os objetos e finalmente devolvê-los à gaveta, que acabou ficando muito mais arrumada e bem organizada.
Fiz o mesmo com minha própria gaveta da bagunça. Enquanto separava meticulosamente o lixo em categorias, ocorreu-me que nossa gaveta da bagunça fornece uma metáfora perfeita de como vivemos. Como foi que eu havia acumulado anotações de listas de compras pertencentes a velhos amigos e maçanetas quebradas do apartamento alugado de minha tia-avó? Por que senti necessidade de acumular cinco pares de tesouras, três martelos e duas coleiras adicionais? Terá sido uma decisão estratégica armazenar várias marcas de fitas na cozinha? Será que usei a árvore decisória de Thomas Goetz para resolver colocar o Vick VapoRub ao lado da chave inglesa, ou talvez tenha sido uma associação inconsciente entre Vick VapoRub (hora de dormir) e a chave em forma de crescente (lua crescente no céu noturno?)
Acho que não. Nossa gaveta da bagunça, tal como a vida, sofre uma espécie natural de entropia. De vez em quando deveríamos tirar um tempo para nos fazer as seguintes perguntas:
Outro dia, enquanto tentava mantê-la o mais arrumada possível, achei algo na minha gaveta da bagunça intelectual. É de um post no Reddit — fonte de informação e opinião numa época de sobrecarga de informação — e é sobre matemática, a rainha das ciências e imperatriz da organização abstrata.21
Às vezes, na sua carreira matemática, você percebe que seu lento progresso e o cuidadoso acúmulo de ferramentas e ideias lhe permitiram de repente fazer várias coisas novas que você não seria capaz de fazer antes de modo algum. A despeito de estar aprendendo coisas em si mesmas inúteis, quando todas foram assimiladas como se fossem naturais, surge todo um novo mundo de possibilidades. Você chegou a um novo nível. Algo dá um clique, mas agora surgem novos desafios, e coisas em que você mal podia pensar antes de repente se tornam criticamente importantes.
Isso é geralmente óbvio quando você está falando com alguém um degrau acima de você, porque eles percebem várias coisas instantaneamente, quando você precisa de bastante esforço para descobri-las. É bom aprender com pessoas assim, porque elas se lembram de como era lutar na situação em que você está, mas as coisas que elas fazem continuam fazendo sentido do seu ponto de vista (só que você mesmo não consegue fazê-las).
Conversar com alguém dois ou mais degraus acima de você é uma história diferente. Eles mal falam a mesma língua, e é quase impossível imaginar que você um dia possa saber o que eles sabem. Você ainda pode aprender com eles, se não desanimar, mas as coisas que eles querem lhe ensinar parecem realmente filosóficas, e você não acha que serão de ajuda — mas, por algum motivo, são.
Alguém três degraus acima está na verdade falando outra língua. Eles provavelmente parecem menos impressionantes do que a pessoa dois degraus acima, porque a maior parte do que estão pensando lhe é completamente invisível. Do ponto onde você está, não é possível imaginar sobre o que eles estão pensando, ou por quê. Você pode pensar que consegue, mas isso é apenas porque eles sabem contar histórias divertidas. Qualquer uma dessas histórias provavelmente contém bastante sabedoria para alçá-lo à metade do seu próximo degrau, se você dedicar bastante tempo a pensar nela.
A organização pode levar todos nós ao próximo degrau de nossas vidas.
Faz parte da condição humana recair nos velhos hábitos. Devemos olhar conscientemente para áreas de nossas vidas que precisam ser organizadas, e então atacar o problema de forma metódica e enérgica. E depois continuar fazendo isso.
De vez em quando o universo tem uma maneira de fazer isso por nós. Perdemos inesperadamente um amigo, um animal de estimação querido, um contrato de negócio, ou toda uma economia global desmorona. A melhor maneira de utilizar os cérebros que nos foram dados pela natureza é aprender a nos adaptar de bom grado às novas circunstâncias. Minha própria experiência é que, quando perdia algo que pensava ser insubstituível, isso era geralmente substituído por algo muito melhor. A chave da mudança é acreditar que, ao nos livrarmos do velho, algo ou alguém ainda mais magnífico tomará seu lugar.