1   |   A Pedra da Bruxa





Quando meu filho tão querido sumiu, quando se transformou, se matou, se jogou ou caiu da Pedra da Bruxa, se perdeu no mato — ou saiu voando e nunca mais voltou —, entendi que nossa cumplicidade só existia na minha imaginação. Essa foi a sua verdadeira morte: nossa relação tão especial era mentira. A boa vida familiar era falsa. Andávamos sobre uma camada fina de normalidade. Por baixo corriam rios de sombra que eu não queria ver. Ele, meu filho tão extraordinariamente amado, era irremediavelmente sozinho — eu, que me considerava a melhor das mães, de nada adiantei.

Tive a ilusão de que comigo ele se abria, pelo menos me escutava — com aquele olhar distraído. Pensei que nossa ligação fosse excelente, ele sendo um menino difícil. Eu respeitava seu jeito diferente, desculpava suas impaciências, “mãe, não me abraça com tanta força, mãe para de me tratar feito bebezinho, não me controla!”. Tinha certeza de que em qualquer momento crucial de sua vida era a mim que iria recorrer. E não foi assim.

Ele não era um bebê tranquilo. Não parecia contente no meu colo, só dormia quando eu o deixava sozinho no berço. Era uma criança quase sombria, comparado ao irmão mais velho, um menino forte e alegre. “Criança sombria nem existe”, diziam, “você se preocupa demais, cada bebê já nasce com uma personalidade!” Mas ele preferia contemplar as folhas no vento, os grãos de poeira no raio de sol que entrava pela janela, em lugar de brincar. Na escolinha não fazia amigos, batia nos outros e os mordia, ou era objeto de pancada. O pai não tinha a menor paciência, e se dedicava ao outro. Do mais novo, eu imaginava ser a melhor amiga.

Ele, porém, só queria ir embora. Não queria nada do que tínhamos para lhe dar. Dizia isso mesmo, sem maldade nem amargura. Quando criança queria aprender a voar feito passarinho “para ir bem longe daqui”. Crescendo, sonhava morar na montanha, armar uma tenda na Pedra da Bruxa, seu lugar preferido, e ser livre.

— Livre de quê, bobão? — perguntava bem-humorado o irmão mais velho.

Aquele meu primeiro filho, perninhas bem firmadas no mundo, um sorriso aberto, gritava de alegria quando a gente o pegava no colo. Cresceu cheio de amigos e projetos, bom na escola, ativo nos esportes, companheiro do pai. Nunca me deu trabalho. Talvez, preocupada com seu irmão menor, eu o tenha deixado um pouco de lado, mas ele nunca parecia precisar de mim. Ao contrário, preocupava-se comigo:

— Mãe, deixa esse menino viver sua vida, é o jeitão dele! Não fique sempre em cima, não seja tão ansiosa — dizia, como se fosse mais maduro do que eu.

O mais moço, filho das minhas aflições, parecia não ter amigos. Na escola olhava de longe a algazarra dos outros. Não fazia questão alguma de ser como o resto da turma: ele não tinha uma turma. Mesmo bem pequeno, de vez em quando deitava na cama, até embaixo da mesa da sala, e chorava longo tempo, um pranto sem soluços, de cortar o coração.

O pai se aborrecia:

— Levanta daí, deixa de choramingar feito uma velha, vai jogar bola com seu irmão!

Eu pedia que tivesse paciência, era uma fase. Ia passar. Depois, com jeito, me aproximava:

— Filho, mas o que foi? Vem, conta pra sua mãe.

— Nada, mãe, eu só tenho vontade de chorar.

Uma das professoras chamou minha atenção para seus desenhos: enquanto o irmão plantava casas, árvores, bichos e carros em solo firme, os dele pairavam no ar, miúdos e perdidos na página branca. As pessoas, até a si mesmo, desenhava sem rosto.

— Sem rosto? O que significa isso? — perguntou o pai fechando a cara, e me arrependi de ter comentado.

Criança difícil faz terapia, aconselharam, e meu filho fez. Ia às sessões, já um meninão magro e bonito, mas a psicóloga também se queixou:

— Ele fica ali, quieto, me olhando com aquele ar de quem está pensando em outra coisa.

Depois de muita conversa com a psicóloga e comigo, por um breve tempo o pai tentou se aproximar, levar pra casa da montanha, nadar no rio, ou pescar. O menino ia, sorria debilmente, segurava a vara de pescar sem nenhum interesse, não emburrado ou malcriado, apenas, como em geral, ausente. E nunca aprendeu a nadar.

O pai acabou furioso:

— Esse menino é muito esquisito.

— Não diga isso, é nosso filho.

— É nosso filho mas é esquisito. Nenhum outro rapaz é assim. Ele parece sempre à margem de tudo. Eu desisto.

Para surpresa nossa, algum tempo depois, o menino, que nunca pedia nada, não participava, na hora do café da manhã disse:

— Pai, domingo me leva no jogo?

— Ué, agora você se interessa por futebol? — o pai duvidava.

— Claro, meus colegas vão com os pais deles, você me leva?

O pai o encarou meio incrédulo, quem sabe participar de atividades mais masculinas dava um jeito naquele filho? Num impulso de seu coração paterno, decidiu não convidar o outro: entendeu que aquele poderia ser um momento só dos dois, o pai e o filho complicado. Comprei camiseta do clube, animei, expliquei, o menino saiu pela mão do pai, entrou no carro e acenou para mim, quase feliz. Na volta, fim de tarde, entraram em casa um pai carrancudo e um menino com rosto inchado de chorar.

— Nos primeiros gritos da torcida, no primeiro gol, começou a chorar feito uma menininha. Ficou assustado, imagine só. Passei vergonha — disse o pai, e foi se fechar no quarto.

Os dois irmãos davam-se bem, mas sem intimidade. Eu raramente os via juntos. Um parecia achar graça do outro. Ele chamava o maior de troglodita, naquele tom de afetuosa implicância que acontece entre irmãos; o mais velho o chamava de queridinho da mamãe, no mesmo tom sem maldade. Quando já era um adolescente alto, magro, um pouco desajeitado, naquela manhã fatal em nossa casa na montanha, ele chegou perto do pai quando este pegava a chave do carro, e, num esforço para vencer a barreira da timidez, pediu:

— Pai, a gente pode conversar um pouco?

O pai, desacostumado, espantou-se. Homem racional e direto, disse algo direto e racional:

— Filho, estou atrasado, preciso estar na cidade em uma hora. Na minha volta a gente fala, está bom? — E partiu sem nenhum remorso porque não imaginava o que estava por vir.

O rapaz não insistiu nem pareceu aborrecido. Virou-se e seguiu pelo caminho que entrava no mato, como tantas vezes fazia. Subiu até o lugar que todos chamavam a Pedra da Bruxa: uma saliência de rocha, pequeno platô, bem no alto, de onde se avistavam os morros, o vale, o telhado de nossa casa ao longe. Era o lugar preferido dele. Eu me preocupava, achava perigoso ficar tão na beiradinha, mas ele ria:

— Mãe, não se preocupa, se cair de lá abro as asas e saio voando! — dizia, aludindo ao seu desejo de criança, de ser pássaro.

Meu menino não voltou. Alguém o viu sentado na beira da pedra e o chamou, mas ele pareceu não escutar. Nunca voltou. Nunca mais apareceu, ninguém nunca mais soube dele. Entardeceu, anoiteceu, começamos a nos desesperar. Era dado àqueles passeios solitários, mas não se perdia: seu instinto o guiava como a melhor das bússolas. Conhecia a região desde criança, ali a gente passava férias, feriados, fins de semana.

Na mesma noite, e no dia seguinte e em vários outros, muita gente, o pai e o irmão, às vezes comigo, com polícia e amigos, procurou no mato. No rio mergulharam atrás dele, mas nada apareceu. Nem uma roupa, um farrapinho que fosse, rasgado nos galhos ou pedras; corpo algum foi lançado pela torrente que passava no fundo da garganta; nada nas trilhas, nas casas dos colonos, na região inteira. Helicópteros, grupos de busca, cachorros... nada. Depois do que me pareceu um tempo irreal, arrastou-se interminavelmente a complicada burocracia da morte, uma interminável alternância entre otimismo e exaustão. Por fim foi declarado morto. Sem velório, um luto bizarro. Nesse período o pai dele uma só vez se abriu:

— Ele pediu para conversar, e eu recusei. Naquela manhã mesmo. Como pude fazer isso, como não percebi que ele estava pedindo socorro?

Fechada na minha amargura, nem tentei consolar. Ou fiz um gesto qualquer, mas ele se encolheu:

— Eu era pai dele. E na única vez em que precisou de minha ajuda, eu não atendi. Estava atrasado para um compromisso qualquer. Penso nisso cada dia, quando acordo, antes mesmo de abrir os olhos. Eu matei meu filho. Ou pelo menos lhe dei um empurrãozinho.

Eu não soube o que dizer. Ele se debatia com a culpa, eu tentava entender alguma coisa de minha vida feita em pedaços. Nosso filho morto era uma barreira entre nós, e fomos nos afastando. Muito me doía o rapaz não ter procurado por mim. Eu, a sempre atenta, disponível, eu, que me achava tão boa mãe... e na hora fatal ele tinha querido o pai.

O irmão me disse:

— Mãe, acho que naquele dia antes de sair ele quis me pedir conselho. Nunca vou me perdoar. Tentou dizer alguma coisa e eu fiz uma das minhas piadas bestas, falei que ia sair com a minha turma.

Também a ele não procurei consolar.

Devagar, muito devagar, com os anos a vida foi se recompondo. A gente falava, vivia, comia, andava, vinha para fins de semana à casa da montanha — cada vez menos, pois meu marido e meu filho não gostavam mais dali. “Parece que ele vai aparecer a qualquer momento”, diziam. Para eles a casa tinha encerrado seu ciclo no enterro simbólico de alguns de seus objetos no cemitério ali mesmo na cidadezinha da montanha: o livro predileto, a camiseta mais bonita, os tênis, a lápide por cima. O nome dele na pedra.

Mas para mim não tinha acabado. Subia sozinha de carro até a montanha, com a desculpa de que precisava abrir a casa, cuidar do jardim. Lá fui construindo uma realidade suportável: meu filho simplesmente tinha alçado voo. Podia ser loucura, mas me dava força. Aquele não tinha sido seu sonho desde menino? Queria voar, queria ser pássaro assim como o irmão queria ser bombeiro e os colegas queriam ser médico, mergulhador, jogador de futebol. Comecei a acreditar nisso para além de qualquer critério lógico. Não comentei com ninguém, para que não achassem que a dor estava me enlouquecendo. Passei a olhar a Pedra da Bruxa como o trampolim de meu filho para uma vida escolhida. Subia até lá e ficava, como ele costumava fazer, sentada na pedra morna, ao sol, até na chuva quando a agonia era insuportável. Quase esqueci que era casada, quase esqueci meu filho mais velho, que parecia recuperado, mas certa vez me disse:

— Mãe, você continua tão triste, mas eu ainda estou aqui. Parece que eu nem existo.

Respirei fundo. Ele tinha razão.

— Você é o meu filho que existe, é tudo que eu tenho, que seu pai e eu temos, e é bonito, e bom, e amigo. Mas o seu irmão morreu.

E quando eu disse “morreu” foi tão cruel como se só naquele momento eu estivesse enterrando meu filho que fora embora tão misteriosamente.

Tempo depois apareceu um velho que morava em uma cabana no fundo do mato. Muitos o consideravam demenciado. Dizia que naquela época em que meu filho desaparecera, vira um rapaz sair voando do alto daquele morro, bem ali, na chamada Pedra da Bruxa. “Ninguém voa”, disseram, mas ele insistiu.

O assunto chegou aos ouvidos de alguém que sabia da nossa perda, e finalmente consegui falar com ele. Velho, sim. Torto pela idade e pelos trabalhos. Cheiro de fumaça e terra. Mas no rosto, quase de um macaquinho, me fitavam dois olhos bem atentos. Não era doido nem estava inventando. Sim, ele tinha visto, há um bom tempo, um rapaz sair voando do alto daquele morro, “a bem da verdade foi da Pedra da Bruxa”, ele disse na sua voz alquebrada.

— Mas ninguém voa, gente não voa, moço — consegui dizer, coração batendo em falso.

Meu marido apertou minha mão e não falou nada. Queria que eu interrompesse aquela conversa de loucos, ele não acreditava em nada daquilo, achava que ia me fazer mal. Mas o velhinho falava diretamente comigo, como se meu marido nem existisse:

— Pois, dona, aquele voou. Sim senhora. Eu estava junto do riozinho pescando, e dali enxergava a Pedra da Bruxa, sim senhora. Primeiro só vi a pessoa ali sentada sozinha e achei que era um perigo ficar tão na beirada. Quando olhei de novo a pessoa estava de pé. Parecia um rapaz. E abriu os braços, mas não se atirou: saiu voando feito uma garça, devagarinho, meio planando, e não era depressa não, era devagar. Bonito de se ver, dona. — Me olhou bem dentro dos olhos, condoído. — Dona, eu não sei explicar. Não sei nem ler nem escrever. Não sei como ele fez, até pensei quem sabe tem algum motorzinho feito de avião. Tanta coisa moderna...

Eu não sabia o que dizer, e se soubesse não teria tido voz nem força. O velho acrescentou no mesmo tom monocórdio, botando no meu braço a mão escura e enrugada:

— Eu também tenho filhos, dona, perdi um deles, já grandinho, eu sei como dói. Mas o que eu vi, eu juro, foi isso mesmo. Seu menino não morreu, dona, ele voou. — Dizia “avoou”, e eu teria achado graça se não estivesse estarrecida.

Meu marido o levou dali, gentilmente, quis lhe dar um dinheiro, que o velho não aceitou, mas aceitou uma carona de carro até algum lugar perto de onde morava. Meu marido se recusou de todos os jeitos até a mencionar aquela visita e não voltou mais para a casa da montanha.

A minha vida mudou. Aquilo apenas confirmava minha fantasia: não era fantasia. Meu filho ainda existe, o meu menino voador. Ele voa, e agora de noite às vezes chega aqui nesta velha casa de madeira junto do mato, para onde cada vez mais eu venho, já no trajeto o coração batendo forte na esperança de que alguma coisa aconteça. Um dia vou abrir a porta e ele vai estar ali. Ou vou erguer os olhos para a Pedra e avistá-lo de longe. Não importa quanto tempo já se passou: eu sou a mesma, o amor é o mesmo, e a esperança.

Meu filho perdido não se quebrou todo no fundo da garganta muito abaixo da Pedra da Bruxa. Não foi empalado por um galho de árvore mais alta. Não se afogou naquele rio onde o procuraram tanto, cujas margens percorri incansavelmente chamando o nome dele ou dizendo baixinho, você está aí no fundo, meu filho? Acorde, veja a dor da sua mãe. Ele apenas foi para algum lugar onde se sente bem, onde sente que faz parte, onde é sua casa. Onde desfruta de tudo o que eu não pude lhe dar. Sabe do meu sofrimento, por isso vem. Sinto quando chega no seu voo lunar. Pousa nas velhas telhas que há muito não trocamos, porque meu marido quer vender a casa. Claro que não vou concordar. Na cidade agora moramos num apartamento, e meu filho não saberia chegar lá. Mas aqui ele vem. Como um imenso inseto agarra-se nas telhas, a pele rebrilha na lua, tem um par de espantosas asas translúcidas, ele que tanto queria voar.

Um dia vai pousar na grama. Vou abrir a porta e ele vai entrar. Vai me abraçar, sorrir para mim, vai pegar minha mão, e quem sabe pela primeira vez vamos de verdade falar.

Ou calar — num silêncio melhor do que qualquer palavra.