12 | Uma em duas
Sonhei que corria por um campo, e que fui atingida por um raio que me partiu em duas. Sem medo nem dor, eu era duas — duas mulheres idênticas corriam em direções opostas. No horizonte elas se encontravam, isso eu sabia porque tudo se pode no sonho: sendo uma, eu era duas.
Quando acordei, em lugar do cotidiano, a torneira do banheiro pingando, a filha que mal parece notar que eu existo, o marido esperando o café, as gaiolas dos canários dele cheirando mal e precisando ser limpas, eu vi sentada na beira da cama o meu pedaço partido no sonho. Lá estava ela, a outra. Nem precisou falar para eu saber seu nome.
Pois eu, eu mesma, me chamo Stessa, e ainda agora, mulher adulta e mãe de família, me aborreço por meus pais terem me dado nome tão esquisito. Todo mundo pergunta se não é engano. Meus professores levantavam os olhos da lista de presenças no primeiro dia de aula, e eu tinha de confirmar, é Stessa mesmo, professora. Minha faxineira até hoje me chama de dona Estércia. Há quem pergunte se o escrivão errou na hora de registrar, era Stella e saiu Stessa. Não. Acontece que eu nasci logo depois da morte de minha primeira irmã, que morreu ainda bebê, e a mãe, quando me tomou nos braços pela primeira vez, exclamou:
— É a mesma!
Minha avó, velha imigrante italiana, repetiu isso em seu idioma “ma è la stessa!” e ficou sendo meu nome. Talvez por isso eu nunca me sentisse bem sendo eu mesma. Sempre a dúvida: eu não deveria mudar, não podia ser outra? Um pouco menos certinha, isso sim, eu, tão enquadrada e medrosa. Saber dessas minhas dúvidas haveria de magoar meu marido e minha filha, então eles não bastavam, aquela nossa vida, boa apesar de tudo, não me fazia feliz?
Na sala da casa de meus pais havia a reprodução de um quadro despretensioso, com moldura estreita e simples, que minha mãe me deixou trazer quando casei: uma pintura quase infantil, um jardim com duas árvores floridas, no meio um banco onde se sentava uma menina com sua boneca na mão estendida. Ou era uma jovem mulher com uma criança? De cada lado dela havia um gato: o preto sentava-se nas patas traseiras a seu lado direito no banco; o branco estava no capim do lado esquerdo. Sempre imaginei que eu era um daqueles gatos: minha irmãzinha morta seria o branco, e naturalmente eu era o preto. Eu com minhas trapalhadas, meus medos, eu tão mentirosa, não muito inteligente nem muito bondosa. Por que um daqueles bichos não era ruivo? Tudo teria muito mais graça.
Agora, com essa outra mulher saída de mim, não um clone mas o meu avesso, revejo o quadro e entendo que não somos o bebê morto e eu: somos eu e o meu outro eu. Também percebo que eu sou o gato branco: a outra vem da escuridão, cheia de maldade, e muito mais divertida. Eu sempre fui meio sonsa. Lerda, dizia meu pai, mas que menina lerda, anda, menina!
Nem meu pai nem minha mãe sabiam dizer de onde viera aquela obra. Estava na família desde sempre, tinha vindo com minha avó da Itália, com os pais dela, no navio. Embora eu fosse uma criatura bastante simples, olhando o quadro pensava que também eu de certa forma era duas, a que todos conheciam e a que eu mesma apenas vislumbrava, oculta ameaça de romper com tudo. E aqueles dois gatos olhando: não para ela, não para a criança-boneca, mas para quem, fora do quadro, observasse.
Depois daquele sonho, cada vez que eu me olhava no espelho, atrás de mim lá estava a outra. Nas vitrines das lojas, na rua, ela andava ao meu lado, um pouco atrás, requebrando sem pudor algum. Fazia careta, dava saltos, soltava gargalhada. Cantava bem alto. Fui me dando conta de que nada era novidade. Eu a conhecia desde criança. Por isso não me espantei com sua aparição. Era a ela que eu via no espelho, quando me perguntava, e se eu agora sorrir e ela continuar séria? e se eu levantar a mão e ela não fizer o mesmo? Espreitando por entre minhas pálpebras, sorrindo ou murmurando nos cantos de minha boca, ela nasceu comigo. Dizendo não quando eu obedientemente dizia sim. Infringindo quando eu cumpria. E quando a vi separada de mim, apenas disse, ah, então era isso, eu era essa! E não achei nada esquisito aquela mulher vivendo comigo na mesma casa sem ninguém saber.
Tentei me abrir a respeito desse fato, porque guardar um segredo sempre me pareceu traição, embora eu nem soubesse a quem estava traindo. Mas eu era assim, sempre culpada, sempre em dúvida e me sentindo em dívida. Nunca houve ocasião, nem tive coragem, nem encontrei as palavras para contar tudo, olha, agora eu sou duas, tem essa outra aqui em casa... Nem havia quem se interessasse, muito menos meu marido com seus canários, minha filha com seu olhar crítico, minhas irmãs tão domésticas. Todos iam me chamar de louca.
É bem feliz, a minha outra, a de nome nunca pronunciado. Ninguém lhe cobra nada nem lhe pede coisas, nem mesmo uma xícara de café ou uma camisa bem passada, porque nem adivinham que ela existe. Se a vissem não acreditariam nela. Ela não precisa inventar nada que tenha de caber dentro de uma resposta. Nunca a vão querer enquadrar, e eu me enquadrei sempre, ainda me enquadro o tempo todo. Pois tenho horror da ideia de ser diferente e criticada por isso. A outra não se importa: assume sua diferença, faz tudo o que quer, senta-se de pernas abertas, senta no braço da poltrona, tira o fiapo de carne dos dentes com a unha — mil coisas que eu só consigo fazer em pensamento, pois eu respeito as regras.
— Mãe, você é boba, mãe! Por que nunca faz nada de que gosta de verdade, por que arruma a casa nessa mesmice pavorosa, e ninguém dá valor, e o pai ainda por cima reclama? Vai ao cinema, arruma uma amiga e passeia no shopping, compra uma roupa transada, pensa em si mesma, não só nos outros!
Olhei assombrada, então minha filha se interessava por mim?
A outra dava risadas pendurada na sua liberdade como num balão colorido. Ela sai pela noite e ri sem pudor no vento, enquanto eu medíocre fico de olho aberto no escuro pensando na minha cama. Agora, aos poucos, cada dia mais vezes percebo que ela me sequestra para fora do trivial, deste considerado obrigatório e normal, e me deixa ser, também eu, Stessa, por alguns momentos, a mulher proibida. Stessa livre da sua mesmice talvez não sobreviva, o que me assusta porque morrer também não quero.
Quando lhe pergunto como vai ser caso eu passe para o lado dela, apenas dá a sua risada e salta pela janela, para a vida. Atrás dela, um gato. Que nem é branco nem é preto: agora vejo que é ruivo. Eu nem um cachorrinho tive coragem de comprar: meu marido arqueou a sobrancelha quando há muitos anos comentei, e minhas irmãs disseram que ter bicho em casa só dá sujeira e trabalho. E os canários dele?
Começo a achar que a outra pode ser minha parte melhor. Ela não precisa mentir. Ela é a sua verdade, e não se interessa nem um pouquinho pelo que as pessoas pensam. Ela está se lixando. Nem pede desculpas a toda hora, nunca dá explicações — porque elas nem existem: as coisas são como são. E eu, apesar do café na hora, da camisa bem passada, do supermercado com muita economia, da comida como eles gostam e dos lençóis limpíssimos, dos meus pés cheios de calos e minhas mãos cheirando a cozinha ou a cocô de passarinho, apesar das minhas insônias e medos, eu estou sempre querendo me explicar. Ou espero alguém que me explique a mim mesma, mas ninguém me enxerga direito.
Estou aprendendo a trocar de lugar com ela. Estou entrando no seu papel, enquanto ela se diverte no meu, executa as minhas tarefas com todas as suas artimanhas: o café fraco, a comida requentada, a filha negligenciada, as gaiolas sujas, e a casa que caia aos pedaços. Ela não tem, como eu, culpa por qualquer coisa menos caprichada. Diverte-se feito doida, fazendo tudo malfeito e nem ligando para a cara deles.
Eu, acomodada, agora vejo que posso rir no escuro, dançar em cima do telhado, ficar bêbada de lua, abrir o coração e as pernas, não ter limites nem ser jamais domada. Aprendo a ignorar tudo o que antes me oprimia e entediava. Descubro que a realidade não existe. Se existir, não há de se limitar a camisas suadas, calcinhas sujas, gaiolas malcheirosas.
A cada dia estou mais do outro lado; aprendi o pulo do gato. A cada dia aumenta o meu poder de mudar — e a qualquer hora não volto. Deixo a outra aqui enrolada com minha vida, e para sempre fico no seu mundo, onde sou má e relaxada, sou vulgar, pinto as unhas dos pés de vermelho berrante e o cabelo de um louro medonho, dou um tapa na minha filha e cuspo no meu marido, deixo os malditos canários morrerem atolados na sujeira. E saio voando montada no meu gato ruivo, que é da banda das maldades, como eu.
Porque entre o sim e o não é só um sopro, entre o bom e o mau apenas um pensamento, entre a vida e a morte só um leve sacudir de panos — e a poeira do tempo, com todo o tempo que eu perdi, tudo recobre, tudo apaga, tudo torna tão simples e tão indiferente.