14   |   A Velha





Lembro dela desde sempre: para todos nós, ela simplesmente estava ali e fazia parte da nossa história.

Tinha sido babá de meu pai, a quem, mesmo ele usando barba grisalha, ainda chamava “menino”. Diziam que fora “caçada a laço” no mato. Meu avô a encontrara vagando, criança, num extremo da fazenda, que naqueles tempos era enorme. Parecia não saber de seu pai, nem mãe, aparentemente não tinha ninguém. Terminaram de criá-la, e tornou-se quase parte da família. Quase, porque suas esquisitices a deixavam à margem. Para mim era como um ser imaginário, um unicórnio ou a bruxa de João e Maria. Nem nome tinha: todos a chamavam “Velha”. E não era com maldade, mas porque ela mesma se chamava assim. Quando pequena, eu achava que aquele era seu nome verdadeiro, feito Josefa ou Maria.

— Mas como era o nome dela quando era novinha? quando foi encontrada lá na fazenda do vovô? — perguntei à minha mãe quando me dei conta de que aquilo não era nome. Ninguém sabia, ninguém lembrava mais. Quando minha mãe tinha se casado, a Velha já trabalhava para seus sogros, e meu pai não fazia a menor ideia ou não queria dizer.

A Velha morava conosco, mas não participava muito da nossa vida: vivia no porão, num quarto com minúsculo banheiro e uma só janela que ficava ao rés do chão, vista de fora. Lá ela gostava de ficar. Ajudava na cozinha eventualmente, mas com o tempo o defeito em seu pé a obrigava a ficar cada vez mais sentada. Instalavam-na perto da janela, escolhendo feijão ou arroz, descascando batatas, o pé defeituoso escondido embaixo da cadeira. É pata de elefante, ela dizia com um orgulho bizarro, mostrando o simulacro de pé sempre metido numa meia grossa. O formato era mesmo de uma pata, sem dedos, sem calcanhar, algo redondo que me dava arrepios. Tinha nascido assim, mas com a idade estava piorando, o pé ficou imenso e devia pesar quando caminhava num andar desajeitado e dolorido.

A Velha era diferente de todo mundo, não só por ser esquisita e desdentada, mas por ter um olho azul, outro castanho. Comentava-se que era por ter parte com o Diabo. Não que parecesse maligna, apenas era feia, torta, com aquela pata e aqueles olhos diferentes. Também era antes quieta do que falastrona, era fechada, gostava de ficar isolada. Mas às vezes, ajudando na cozinha e falando com a empregada, soltava umas risadas que pareciam cacarejo, e sacudia a cabeça de cima para baixo como uma galinha.

Eu sentia por ela aquele misto de fascinação e medo que se sente na infância por pessoas diferentes. Embora meus pais não aprovassem (deixa a Velha em paz!), eu e meus primos gostávamos de ir ao quarto dela, no porão, pedir que contasse histórias. Ela se escarrapachava na cadeira, nós nos sentávamos no chão, e ela desfiava umas narrativas meio amalucadas, que não faziam sentido, mas a gente adorava.

Naquele quarto ascético, apenas uma cama, uma cadeira, uma poltrona antiga de estofamento rasgado e um armário meio torto, sem um quadrinho nas paredes ou fotografia, o mais fascinante era a porta na parede dos fundos: uma misteriosa porta, uma portinha, tão pequena que por ela só passaria uma criança ou um anão. A gente olhava disfarçadamente, esperando adivinhar o que ali se ocultava, ou esperando que alguém, um monstrinho, um sapo, uma bruxa de verdade, de lá saísse para satisfazer nossa curiosidade. Mas a porta nunca se abriu, jamais descobrimos a chave para o território das nossas mais loucas fantasias: o que a Velha esconderia ali, que nem meus pais sabiam?

— Vai ver, rouba criancinhas e prende lá dentro numa gaiola — arriscou o menor de meus primos, e os outros riram dele. Minha mãe disse que a Velha devia guardar coisas só dela, sempre fora amalucada, não podia ser nada importante. Verdade era que ninguém jamais tinha entrado ali. Mas não era da nossa conta. Meu pai, interrogado, desconversou, e quando insisti classificou tudo como “bobagem de criança”, era um quarto como outro qualquer.

— Mas você já passou por aquela portinha, papai?

— Não, é claro, o que eu iria fazer ali? E teria de passar de quatro, grande como sou. Mas isso não interessa. Não se metam na vida dela. Deixa a Velha com suas manias.

Não acreditei que tudo fosse tão trivial. Havia ali algo sinistro. Um de meus primos certa vez se animou e perguntou direto:

— O que tem atrás daquela porta tão pequena, Velha?

Ela deu um meio sorriso de quem esperava essa pergunta desde sempre, e saboreava desde sempre a resposta que ia dar:

— Nada para criança. E nada para gente grande também. Quem entra ali não volta nunca mais. Vocês querem tentar? — E nos olhou com um verdadeiro olhar de bruxa capaz de nos botar em uma gaiola e nos engordar para comer mais tarde. Saímos correndo, e sua risada nos perseguiu pelo pátio ensolarado. O mistério em torno dela cresceu ainda mais. Havia também o gato. Estava sempre com um gato nos calcanhares, ruivo e enorme, que chamava de Coisa Ruim. A cozinheira dizia que o gato era da banda do Capeta, daí o nome. Uma vez tomei coragem e perguntei:

— Velha, esse gato tem parte com o Diabo?

Ela riu seu cacarejo esganiçado, me encarou com o olho azul, o castanho sempre se desviava um pouco para o lado:

— Por que você acha que o nome dele é Coisa Ruim?

Apesar de tudo isso, nunca a vi fazer maldade. Nunca a ouvi insultar ninguém. Zangada, ficava resmungando sozinha feito uma bruxa de verdade, eu achava que eram pragas e feitiços. A Velha era além disso benzedeira. Mais de uma vez, quando eu ficava doente, com febre alta, minha mãe me levava ao quarto no andar de baixo, que servia de lavanderia, sempre com cheiro bom de roupa limpa passada a ferro quente. Meu pai não podia saber de nada, pois detestava superstição. Logo vinha a Velha com uma trouxinha, abria o pano em cima da mesa, botava água num copo, jogava dentro uns carvões, murmurando sem cessar coisas incompreensíveis com sua boca desdentada. Depois tirava do pé sadio o seu único chinelo, e passava sobre meu corpo ou minha cabeça, ainda fazendo suas rezas. No final, cada vez me pregando um susto, me dava um tapinha no alto da cabeça, como quem termina de espantar um mal.

Nunca deixei de ficar boa ou de me sentir muito melhor. E, certa vez, quando uma doença de pele que chamavam cobreiro foi se alastrando em círculo pelo meu peito de menininha, e uma tia ameaçou que se o círculo se fechasse nas minhas costas eu iria morrer, minha mãe me levou ao médico, que também era companheiro de caçadas de meu pai. Primeiro, ele receitou uma pomada, que de nada adiantou. Na segunda visita, depois de me examinar e olhar atentamente as feridas que estavam bem piores, depois de apalpar pescoço, avaliar a língua e a parte inferior dos meus olhos, virou-se para minha mãe e disse, meio sem jeito:

— Olha, você pede àquela sua bruxa que faça aí uma benzedura. Porque esse tipo de doença de pele não tenho remédio que cure. — Diante do olhar espantado de minha mãe, acrescentou ainda, rindo: — Mas não vá dizer ao seu marido, ou o sujeito briga comigo.

Repetiu-se a sucessão de gestos e rezas da Velha, e três dias depois, para espanto de todos, inclusive de meu pai que de nada sabia, amanheci com as feridas secas, que logo desapareceram. Fiquei ainda mais encantada com a Velha. De parte de Deus ou do Diabo, ela sabia das coisas.

Em certas noites, sobretudo quando ameaçava tempestade e o céu era cortado de raios e trovões, a Velha saía para o pátio e andava de um lado para o outro, resmungando baixinho seus esconjuros. Mais de uma vez eu a vi da janela de meu quarto, e era de dar medo: manquitola, torta, lenço na cabeça, parecia realmente louca, com o gato correndo atrás dela, miando alto num jeito que me dava arrepios. Às vezes meu pai se irritava e botava a cabeça fora da sua janela:

— Vai dormir, Velha, vai dormir!

Ela obedecia, ainda resmungando. Logo depois que ela sumia, a chuva desabava forte. Mas na manhã seguinte lá estava ela sentada numa banqueta fora da porta que descia para o porão, tomando sol como qualquer plácida velhinha do interior.

A Velha nunca morreu. Certo dia estranharam sua ausência. Procuraram por ela, chamaram, pensaram que tivesse dado uma de suas raras saídas, e depois aparentemente não se interessaram mais. Perguntei várias vezes, mas ao redor dela se erguera um muro de silêncio. Ninguém sabia ou queria responder. Diziam apenas, saiu, sumiu, foi embora, voltou para o mato de onde veio. Vai ver, o lugar dela é lá mesmo.

Eu sabia que não era nada disso. A Velha tinha entrado no misterioso quartinho atrás da porta tão pequena que por ela só passaria uma criança ou um anão. Estava trancada por dentro, para o sempre do sempre. Tinha virado sapo, coruja, morcego, pedra, ou simplesmente estava ali mumificada, sequinha, com sua pata de elefante, e seu gato Coisa Ruim, que também nunca mais apareceu. Pois, ela mesma tinha nos dito, quem ali entrava não sairia nunca mais.

Hoje, raramente alguém se lembra da Velha em nossa família, quando nos reunimos: meus pais muito velhos, eu cheia de filhos, meus primos uns senhores circunspectos. Mas no pátio do edifício que hoje se ergue em lugar da casa da minha meninice, quando está se formando uma tempestade, quem prestar bem atenção há de escutar um cacarejar de galinha que podia ser o riso de uma bruxa, e um longo miado parecendo o lamento de uma alma perdida na escuridão.