19   |   O perdão





Fui a mais moça de cinco irmãs, e devia ter nascido homem.

Meu pai brincava com um resquício de aborrecimento: Do meu saco só sai menina! E de certa forma me tratava como a um filho. Fui sua companheira de pescarias, nadava com ele no clube, me ensinou a jogar tênis e a ser boa no tiro ao alvo. Seus amigos, que tinha muitos, também comentavam que eu devia ser rapaz, e quando menina eu achava isso um elogio. De minhas irmãs, todas lindas e alegres como um bando de caturritas agitadas, como meu pai dizia, sempre fui mais chegada a Leilah, a mais velha. Nossa mãe, depois do último parto, ficou frágil e seguidamente estava de cama. Na família murmurava-se que era depressão, anemia, qualquer coisa misteriosa. Fosse qual fosse sua enfermidade, pouco participava da vida daquela casa.

Leilah não era a mais bonita das cinco. Porém seus olhos eram impressionantes: grandes, fundos, pálpebras pesadas, e uma cor singular entre cinza e verde. Eram também os olhos mais tristes que já vi. Aos quinze anos meus pais a casaram, algo quase medieval, mas foi assim mesmo: ela foi convencida ou empurrada, como diziam as más línguas, pela fantasia de minha mãe, e quem sabe a cobiça de meu pai.

Eu era uma meninota e lembro poucas coisas do começo da história, muitos detalhes minhas irmãs contaram. Ela acabava de fazer quinze anos quando nossa casa recebeu uma visita ilustre, um grande comerciante que pretendia abrir uma filial de sua empresa na cidade, e poderia ser muito importante para meu pai, que acabou gerente dessa firma.

O visitante foi tratado como um rei. Acho que no começo Leilah se encantou por ele. Nunca tinha tido um só namorado, era ingênua feito uma criança, ele todo perfumado, bem-vestido, sedutor. De parte dele pareceu uma paixão fulminante, e tão ardente que certa vez minha mãe lhe explicou que tínhamos uma educação muito severa, meu pai não permitia conversas mais abertas, namoro só depois dos quinze anos, e Leilah possivelmente nada sabia sobre intimidades. Minha mãe falou corando, mas o visitante foi gentil e educado: não se preocupe, para mim sua filha é uma joia rara, vou cuidar muito bem dela.

Chamava-se Balduino, e meu pai gostava de dizer que era nome de rei. Minha irmã Leilah tinha menos de dezesseis anos quando se casaram, e um dia ela me confessaria que tinha do sexo apenas uma ideia muito vaga, coisa de romances que lia. A lua de mel seria no exterior, mas passaram a primeira noite no melhor hotel da cidade. Na manhã seguinte cedíssimo, Leilah bateu na porta de nossa casa, e aos prantos implorou para voltar, para descasar, qualquer coisa que a afastasse daquele homem. Nunca mais queria ver a cara dele, nem chegar perto. Tinham acontecido coisas horríveis de que ela jamais haveria de querer falar.

Não sei a reação de minha mãe, mas meu pai nem a deixou sentar numa cadeira:

— Filha minha não larga o marido. Essas coisas são naturais no casamento, você vai se acostumar. Não seja criança. Volte já para ele, e comporte-se como a mulher casada e decente que você agora é. E lembre que se me causar problemas com Balduino, estará promovendo a ruína desta casa: ele é meu patrão.

Não sei exatamente o que minha irmã fez depois disso. Minhas lembranças mais claras dela são de quando estava casada há alguns anos. Ela devia estar com vinte e poucos e eu entrava na adolescência. Era ainda um moleque, ela dizia quando vinha nos visitar, pois moravam numa outra cidade, muito maior. Certo dia Balduino, menos bem de negócios, resolveu que se mudariam para nossa cidade, e manteve apenas a filial da empresa que tinha ali.

A vida deles agora era discreta, pouca festa, pouca viagem. À nossa casa vinham raramente. Meus pais o adulavam. Eu sempre o enfrentei. Respondia a suas perguntas bobas olhando nos olhos, era insolente, recusava seus convites para comer ou dormir na casa deles, mostrava sem rodeios que o achava detestável. Detestei meu cunhado desde sempre. Achava, mais por intuição do que por saber, que ele era a causa primeira da infinita tristeza de Leilah. Nunca tiveram filhos, o que para ela era uma grande dor. Brincava que eu era sua filha. Quando Balduino viajava, ela me pedia para dormir em sua casa. Longe dele parecia alegre, me levava a passear, me pedia que cuidasse para não virar rapazinho com aquela predileção de meu pai por me ensinar coisas masculinas e cortar meu cabelo tão curtinho. O dela era de um louro escuro, comprido, mas sempre preso como o de uma dama antiga.

Algumas coisas fiquei sabendo bem mais tarde, quando eu já tinha idade para ser sua confidente. Seu desejo de ter filhos era um tormento. Embora o marido não os quisesse por achar que crianças eram um estorvo, e por querer vê-la para sempre magra e linda com aqueles seios empinados, numa das viagens dele ela decidiu consultar um médico especialista, e foi sozinha, nem minha mãe sabia.

Consternado, o médico anunciou que ela não podia engravidar porque tinham-lhe ligado as trompas. Seria mesmo possível que ela não soubesse? Leilah não acreditou, depois se desesperou, não fazia a menor ideia de nada, e finalmente confidenciou com minha mãe. Chegaram à terrível conclusão de que numa viagem ao exterior em que ela tivera uma apendicite aguda, com menos de vinte anos, e fora operada, Balduino tinha convencido um médico a fazer a ligadura.

Quando ele voltou, Leilah o interrogou, reunindo toda a coragem do mundo pois tinha medo dele, e Balduino cinicamente admitiu tudo:

— Casei com uma fada, não com uma melancia.

Minha irmã desenvolveu por ele um ódio tão terrível que até eu mesma me assustei quando, ao fim de trinta anos de casamento, ela me visitou e me disse que ia se separar, eu a apoiaria? Não estava mais aguentando, não queria ficar velha e morrer naquela vida. Eu era a única solteira das cinco irmãs, era uma executiva de sucesso, ganhava muito bem, morava sozinha, e apesar de vários namorados nunca tinha querido me casar. Não porque, como alguns vaticinavam, gostasse pouco de homens, mas porque gostava muito da minha independência. E porque ninguém ainda tinha me despertado tão grande amor e paixão que me fizesse mudar de ideia.

A essa altura nossos pais já tinham morrido, e talvez por isso ela agora tivesse coragem para separar. Segundo ela, só em mim confiava para ajudar, não que não gostasse das outras irmãs, mas porque nós duas éramos as mais unidas, e eu era livre. Podia morar comigo por algum tempo, eu não teria receio de ir com ela tirar suas coisas essenciais de casa num dia em que ele se ausentasse. Fui a ponte entre ela e um excelente advogado, pois seria uma separação tumultuada e difícil, uma vez que Balduino não admitia a possibilidade de uma separação.

Na minha visão prática e otimista das coisas, logo me prontifiquei. Eu a ajudaria e protegeria em tudo, pois embora sendo eu a mais moça e ela a mais velha das cinco, éramos as mais unidas. Eu me sentia um pouco sua filha, e livrá-la de Balduino me dava prazer. Mas a separação foi quase uma tragédia. Ele, por telefonemas, bilhetes ou conhecidos, ameaçava matá-la ou se matar. Seus protestos de amor e paixão, de incapacidade de viver sem ela, quase me comoveram. O medo que ela sentia do marido a levava a fazer as piores escolhas, renunciando aos seus bens e a qualquer dinheiro dele, contrariando o advogado, que quase desistiu. Balduino a perseguia de tal maneira que tive de ameaçar com polícia caso ele mais uma vez botasse o pé no edifício onde a gente morava.

Finalmente, após uma batalha longuíssima e difícil, em que muitas vezes perdi a paciência com minha confusa irmã, a separação se oficializou, e mais tarde o divórcio, do qual ela fazia absoluta questão. Meu cunhado, a quem eu vi raramente depois disso, desmoronou. Humilhava-se, implorava a parentes e conhecidos que promovessem algum encontro. Tentava avistá-la de longe que fosse, na rua, em alguma loja. Mandava flores, presentes, que ela jogava no lixo sem olhar. Alguns anos depois foi à falência, desinteressado dos negócios, e passou a morar numa casinha modesta de subúrbio.

Nenhuma dessas notícias comoveu minha irmã, que desabrochava, a cada ano mais bonita, mais alegre, até viajando comigo. Manteve sempre seu jeito indefinível, reservado, mas que a tornava atraente. Ficamos morando juntas, sua presença não me estorvava em nada. Era quase uma figura de livro de histórias, com habilidades femininas de que eu era desprovida: bordar, tecer, pintar aquarelas, preparar pratos delicados, até costurar coisas diferentes para mim, uma blusa com rendas, uma echarpe esvoaçante. Eu tinha de ser mais feminina, dizia.

Nunca, em nossas confidências, entrou a fundo em sua intimidade com o marido. Apenas admitiu que aquilo a enojava de tal forma que seria capaz de vomitar se precisasse me dar detalhes. Às vezes eu imaginava a que maldades e perversões teria sido submetida já aos quinze anos. Ainda tentei, com muito tato, descobrir alguma coisa, mas naquele terreno ela não me dava acesso, e desisti. Há coisas que é melhor não saber.

Finalmente chegou a notícia de que Balduino estava muito doente, e antes de morrer precisava lhe pedir perdão. Que chorava convulsivamente chamando seu nome, até que por fim a médica dele, compadecida e sabendo um pouco daquela difícil separação, telefonou pedindo que eu convencesse Leilah:

— Por pior que seja a lembrança que ela tem dele, hoje está uma ruína, um pobre velho que sabe que vai morrer e quer pedir perdão. Veja se você a consegue convencer. Certamente também vai ser melhor para ela. Ódio envenena.

Fiz o que pude, afinal ele ia morrer. Mas minha irmã parecia uma estranha: o que nela era doce estava amargo, o que fora suave era duro, e a tristeza de seus olhos singulares fora substituída por um ódio quase assustador.

— Leilah, o cara está morrendo, a médica falava sério — eu repetia, e ela me olhava sem nenhuma emoção.

— De jeito nenhum. Ele que morra, que queime no inferno.

Aquilo era dito entre os dentes, com verdadeira fúria. Por fim consegui convencê-la de que não faria mal só chegar na porta do quarto do infeliz, dizer qualquer coisa e sair. Ele poderia morrer em paz, e ela estaria para sempre livre. No corredor do hospital caminhava como se fosse à guerra, o passo quase marcial. Segurava minha mão com tanta força que me machucava, e sua mão estava gelada. O passo foi hesitando à medida que chegávamos perto da porta indicada, e a poucos metros dali ela parou. Não olhou para mim. Inspirou fundo. Pensei que reunia forças para a sua ação caridosa. Mas então, me encarando firme, a boca num traço fino, os olhos dois pedacinhos de gelo cinzento, disse com uma determinação que eu desconhecia:

— Não vou. Não posso. Não quero. Eu não perdoo. Quero que ele morra da forma mais miserável, e que faço questão de que ele saiba que cheguei até aqui mas não vou perdoar.

Então virou-se, saiu pelo corredor tão depressa que quase não a consegui acompanhar. Meu cunhado morreu dias depois. Segundo a médica indignada e poucos conhecidos que ainda o visitavam, morreu chamando por Leilah. Quando comentei com ela, fez apenas um ar de profundo desprezo:

— Quanto drama.

Minha irmã voltou a ser quase aquela que eu conhecia e amava: terna, alegre, cuidadosa comigo. Mas em seus belos olhos a melancolia fora substituída por uma expressão distante e dura. Como de alguém que se despiu de toda a compaixão, e reduziu suas emoções ao mínimo necessário para apenas sobreviver. Eu nunca soube, nem saberei, o segredo daquela dor que, cara a cara com a morte, transformou uma boa mulher em uma juíza feroz. Pois quando chegou a sua hora, ela já velha, também num quarto de hospital — mas comigo e nossas irmãs —, no último momento abriu os olhos, apertou minha mão e disse baixinho:

— Graças a Deus eu consegui.

Eu ia dizer algo como, sim, você conseguiu afinal uma boa vida, e sempre foi muito amada por todas nós. Mas num último esforço ela completou, o mesmo olhar duro dos muitos últimos anos:

— Graças a Deus eu consegui não perdoar.