5   |   Bebês no sótão





–Não sei, Anita, não sou médica, não sou filósofa. Faz de conta que não era. Pronto. — Respondo impaciente quando minha irmã pergunta pela décima vez se eu acho que ele já era gente.

Ela se mexe na cama, funga, fala com voz de menininha queixosa:

— Falar é fácil.

— Eu sei, mana, mas agora não adianta mais, né? Você tirou a criança porque achou que devia, pensou um tempão, falou mil vezes, e decidiu. Agora para com isso — meu tom não é muito amável. Me arrependo um pouco de ter dito “a criança”, porque ela estava há horas tentando se convencer de que com poucas semanas era só um pedacinho de carne, não uma vida. Ela insistia, ceceando por causa da anestesia:

— Mas agora na TV volta e meia eles mostram, filmam os fetinhos na barriga da mãe, poucas semanas e já são uma pessoinha. Tapam os olhos com a mão quando o médico bota uma luz forte lá dentro, mas eles nem podem ter olhos a essa altura. Ou têm? Quem se incomoda com luz ou se mexe com barulho é gente, não é? Está vivo...

— Anita, você sabia de tudo isso antes, há séculos a gente sabe disso, dessas filmagens, ecografias especiais, coisas. Você decidiu, achou certo, seu namorado não quer filho ainda. Acaba com isso porque não vai adiantar nada. — Acrescentei com uma dose de maldade sem sentido: — Além do mais, agora está feito.

Levantei da poltrona, fui até a janela, lá longe se viam o rio, os morros, o hospital fica num parque. O quarto é confortável, nem cheiro de hospital tem aqui, tudo limpíssimo, menos a alma de minha irmã, roída dessa culpa. Ela continua murmurando às minhas costas:

— Eu tinha de fazer... ele achou que eu estava me cuidando, mas aí...

Repetia a mesma história mais uma vez. Pensei, vagamente irritada, que coisa, com toda a modernidade, a liberdade, feminismo e o escambau, mulheres e meninotas engravidam sem querer. Seria sem querer? Anita, grávida de poucas semanas, esperou uma das viagens do namorado e tentou um aborto, escondido. Tiraram o bebê mas ela ficou sangrando e teve de me chamar. Então vim ao hospital com ela. Se o namorado ligar devo dizer que ela teve um sangramento besta, fez uma cauterização, coisa banal, hoje ainda no fim do dia a gente vai pra casa. Ele não quer ouvir falar em filho por enquanto. E ela não quer perder o namorado.

Anita ficou quieta. Volto para a poltrona e a meu lado caminha o fantasma de meu tio Antônio, tal como era nos últimos tempos: envelhecido e amalucado, mas com restos do antigo charme. Sinto um impossível odor de cachaça no quarto de hospital. Afasto o pobre espectro e vou andar um pouco no corredor enquanto Anita dorme.

Tio Antônio, meu encantamento adolescente, único irmão homem de minha mãe, que, viúva, contava muito com ele. Barbudo, simpático, vinha seguidamente em casa. Era divorciado e sem filhos. Brincava que nós éramos suas filhas. Mulherengo, dizia minha mãe. Aborteiro, diziam minhas tias. Não importava nada: eu, que mal tinha conhecido meu pai, adorava aquele tio. Beijava minha mão como se eu fosse uma dama, me chamava sua garota.

Saí de casa, casei, separei, e, sem filho, voltei para morar com minha mãe, que envelhecia. Tio Antônio praticamente se mudara para lá. A casa era pequena mas ele se instalou numa espécie de sótão, que minha mãe e ele transformaram num quartinho aconchegante. Tio Antônio não trabalhava mais. Com aquelas mãos trêmulas não podia operar, nem mesmo examinar direito uma mulher, e quem agora confiaria nele? Voltei para meu quarto de solteira, e à noite, quando eu estava lendo, ou estudando, meu tio batia na porta, entrava e dizia:

— Posso, garota? — e desabava na cadeira ao lado da minha cama. Então retomava o assunto que agora era sua obsessão, o mesmo que atormenta Anita: eram gente ou não eram gente?

— Quem, meu tio? — Eu sabia, mas fingia que era novidade.

— Os fetinhos que tirei das barrigas daquelas mulheres, você sabe, eu era o que suas tias chamam de aborteiro.

— Não fala assim, tio.

— Eu nunca me importei, pra mim eram pedacinhos de carne, às vezes grandes coágulos, não tinham nada de humano. Alguns eram grandinhos, é verdade, mas como minúsculos bonecos. Você já viu algum?

— Não de verdade, mas acho que sim, em livro, em televisão, eu vi.

— Pois é... nunca me importei, sempre achei idiota o romantismo em torno do assunto, mas agora que estou perto da morte, não consigo deixar de pensar neles.

— Tio Antônio, vamos mudar de assunto? Você está bebendo demais, por que não se trata, em vez de falar em morte? Vai cuidar da saúde, que tudo isso passa, vai viajar, você adorava viajar.

Outra noite ele me chamou lá de cima, do seu quarto, queria conversar. Meio entediada, subi. Era o mesmo assunto: os abortos, os fetinhos, eram gente ou não eram. Mas naquela vez acrescentou arregalando os olhos:

— E eles estão voltando, filha.

— Quem está voltando?

— Os bebês que não deixei viver.

Foi tão enfático que me arrepiei. Os olhos dele pareciam ver qualquer coisa atrás de mim. Fiz um esforço para não me virar, mas com o canto do olho será que percebi uma criancinha correndo atrás de mim? Outra noite eu não tinha escutado um choro de bebê ali em cima, mas depois achei que era a televisão? Sacudi a cabeça para espantar o sono e aquela maluquice, ele estava me contagiando.

— Tio, dorme, descansa, e para de beber, para com isso, você está se matando.

Ele continuou como se eu não estivesse mais ali, monologava:

— Estão voltando... é, sim... voltam de noite quando me deito... estendem uns tocos de braços, na ponta têm aquelas mãozinhas feito patas de rã... enchem meu quarto, querem se vingar. Ou querem que eu lhes devolva a vida, é isso, é isso...

Cobri meu tio com a manta. Ele estava quase dormindo. Desci outra vez a escada, deprimida. Falar com minha mãe não adiantaria nada, ela fingia não notar, enrolada lá com seus problemas, seus esquecimentos, suas amigas velhas e doentes. Gente demais morrendo, ela dizia. Fiquei lendo mais tempo do que de costume. De tão cansada, num entressono comecei a escutar ruídos estranhos: a folha da palmeira roçava a parede como unhas arranhando, havia ratos na casa e seu barulho era de miúdos passos no sótão. Fui deitar decidida a encontrar uma solução que fosse boa para ele, para todos nós. Mamãe tinha dito que agora o escutava falando sozinho.

— Seu tio está mal, muito mal mesmo — reconheceu finalmente. — Não posso ficar o dia inteiro subindo e descendo a escada para cuidar dele.

— Tem de chamar médico, mãe.

— Mas ele é médico — a lógica de minha mãe era imbatível.

— Médico não cuida de si mesmo, mamãe, e acho que a situação dele é grave. Quem sabe passa uns dias num hospital, faz uma desintoxicação, essas coisas?

Por fim acabei eu chamando um médico amigo dele. Não sei o que falaram, o que decidiram, mas, além de uns remédios que ele não tomava, meu tio continuou em casa, e eu o via cada vez menos. Por fim, cedinho certa manhã, minha mãe foi lhe levar o café, e me chamou aos gritos lá de cima. Enquanto eu ainda estava na escada ela gritava, vem ver, vem ver o que aconteceu com ele!

Subi os degraus imaginando o que tinha acontecido, e já me pesava a culpa por não ter atendido melhor aquele tio antes amado. Quando entrei, ele estava na cama, cobertores caídos no chão. Mas o horror não era a morte. O horror era o que tinham feito com ele: o rosto todo arranhado, como se na agonia tivesse querido arrancar a cara do crânio. Os arranhões eram fundos mas finos, muito finos, como de bisturi ou unhas afiadas. Ninguém teria unhas tão finas assim. Abaixada para ver melhor, apesar do sangue percebi na boca, escancarada como num grito, a gengiva afastada dos dentes.

Velaram tio Antônio num caixão fechado. Para todos os efeitos, ele se ferira na agonia da morte. Nem minha mãe nem minhas tias e minha irmã, que o viram assim, jamais comentaram nada. Foi um estranho pacto de silêncio que nunca rompemos.

Minha irmã geme no seu sono agitado. Olho o relógio, logo o médico chega para dar a alta. Vou ter de lhe fazer companhia até o namorado voltar. A vida real, com sua graça e suas trivialidades, e também com seu desatino, me tira do devaneio. Vou até a cama, preciso acordar Anita.

Enquanto me debruço sobre ela, recordo o que vi quando me inclinei sobre meu tio morto: os cortes fundos e fininhos, a gengiva arrancada. Cada vez que penso nele naquele estado, lembro suas mãos, belas mãos de cirurgião, grandes, fortes, com dedos largos e pontas quadradas.