9 | O fruto do meu ventre
Vou dizer o que meu pai me ensinou: É só um pesadelo, é só um pesadelo, vou acordar agora mesmo, e sair dessa situação. Pois nada de realmente mau pode acontecer a quem cumpre as tarefas e faz tudo direitinho.
Minha vida não foi nem fácil nem difícil. Fui a feiosa das irmãs, a burra da sala de aula, a atrapalhada, a que nunca teve corpo de mulher, sempre meio menina meio rapaz, seio quase nada, bunda quase nada, e até um pouco de buço para tristeza de minha mãe, “as outras filhas tão lindas, e essa aí nem se parece com elas...”, dizia mesmo na minha frente.
Mas não fui infeliz. Eu era boa em muitas coisas, e todo mundo gostava de mim. Acho que nasci para ajudar os outros, e nisso caprichei. Sempre fui útil e atenciosa. Cuidei de todos os sobrinhos pequenos, fiz dezenas de enxovais de bebê para eles e para filhos de amigas, cuidei dos parentes velhos e dos amigos doentes, fiquei com meus pais nesta casa até os dois morrerem na paz de Deus.
Nunca namorei de verdade. Alguém já me disse que não conheci a paixão, e que é uma pena... mas eu acho ótimo assim. Que tranquilidade. Paixão, pra quê? Vi gente se matando por causa disso, perdendo tempo, saúde, vida. Fora as coisas vergonhosas, em que não quero nem pensar. Peguei uma vez nos peitinhos de uma prima quando éramos adolescentes, ela quis mostrar e eu achei lindos aqueles biquinhos saltados. Senti uma tontura esquisita, tive vontade de beijar ali, mas ela não quis. Outra vez um primo encostou a coisa dele em mim, e mesmo pela roupa senti que estava enorme. Mas não gostei. Fiquei com medo e nojo. Ninguém quis me namorar e eu não teria jeito. Ninguém ia entrar em mim, mexer em mim. Parir, Deus me livre. Assim me senti sempre bem contente da vida.
Às vezes uma das irmãs ou primas perguntava se eu não tinha vontade de namorar, casar, ter minha família, minha casa, e eu respondia, sinceramente, que não, nada disso. Agora, tenho tido esses pesadelos e nem sempre consigo fazer com que acabem com o truque que meu pai me ensinou. Às vezes funcionava, e me vinguei dos fantasmas, como na minha infância, saltando em pé sobre a cama, armando as caretas mais horríveis de que era capaz, xingando e ameaçando. As caras sinistras desapareciam, os olhos vigilantes se fechavam, as mãos se recolhiam embaixo da cama, e todas as assombrações iam embora farfalhando seus vestidos. Eu me deitava outra vez, e dormia como quando era pequena, até escutar vozes e passos na casa, sentir o aroma do café, e ter certeza de que tudo estava no seu lugar.
Quando morreu minha mãe, maior golpe de minha vida, me habituei a dormir de veneziana aberta: pois virar-me na cama mil vezes, naquela dor e solidão, enxergar lá fora as luzes das casas, e as cores do céu quando amanhecia, me dava um conforto que nenhuma presença humana podia me dar. Mas hoje, nesta noite solitária em minha solitária casa, onde teimei em ficar depois que todos foram embora ou morreram, vivo o pesadelo maior. Ou será realidade?
Ultimamente, minha vida tranquila e correta mudou como eu nunca imaginei. Foi como quando um verme grande, escuro e gosmento, apareceu no ralo da pia enquanto eu lavava louça, e gritei horrorizada. Pois nesses dias, sempre que olhei no espelho do banheiro, meu corpo estava um pouco mudado: os peitos, pequenos e murchos, estavam mais levantados, a barriga maior. Achei que era doença, tumor, vi casos assim, mortes dolorosas. Mas de repente uma coisa começou a se mexer dentro de mim, e tive certeza: eu estava grávida. De quem, quando, como? Nunca homem algum me tocou, entrou em mim, nada poderia ter causado aquilo. Em poucos dias minha barriga estava igual a qualquer outra em plena gravidez. Eu não saía de casa, não recebia ninguém, dizia que estava com uma gripe muito forte, precisava descansar.
Mas esta noite sinto que está vindo isso que se instalou em mim sem eu saber: a minha hora chegou. Sem entendimento nem explicação, estou por parir. Peguei muitas toalhas, deixei o telefone fora do gancho, e me deitei na velha cama que range a qualquer movimento: pernas erguidas e abertas, nua como quando nasci e nunca fiquei a não ser na hora do banho rápido todas as manhãs, estou à espera. É o único jeito que encontrei de liquidar com meu espectro. No começo nada aconteceu. A criatura parou de se mexer, quem sabe morreu e vai sair, como um bebê morto e já decomposto que uma de minhas irmãs perdeu, eu assisti a tudo, ainda menina, na casa dela.
Agora a coisa se move outra vez. Impulsiona o corpo para fora, quer sair. A dor é pavorosa, e eu grito, sozinha na casa posso gritar feito um animal esquartejado em vida. Sozinha, sem companhia e sem ajuda, eu grito e minha voz reboa pela casa grande, velha e vazia como num despenhadeiro ou num deserto.
Aos poucos ele vem. Eu me contraio toda, faço força como sei que se deve fazer nessa hora, e berro, e choro e me desespero, meus dentes batem e rangem de pura agonia. Quero fechar as pernas e voltar no tempo, e apagar esse horror, mas não consigo. Esse horror é concreto, não vai se assustar com meu pensamento nem fugir com minhas caretas. Só quando o medonho parto tiver terminado, vou poder matar a criatura, espantar o mal que me ataca, e acordar, e estar para sempre livre de volta à minha vida.
Ele forceja para sair, parece arrancar pedaços de mim. Abro mais as pernas, às vezes as encolho, vejo meus próprios pés no ar, pés desesperados que se agitam como mãos aflitas. Sinto escorrer de mim água, sangue, visgo e pavor sobre as toalhas com que forrei a cama. Finalmente, num último esforço, ele sai, o filho das trevas e do inferno. Que inenarrável alívio. Respiro fundo, muitas vezes, estou livre disso que agora jaz sobre a cama entre minhas pernas estendidas.
Depois de alguns momentos de descanso, controlando a respiração e enxugando o rosto, levanto um pouco a cabeça, porque estou curiosa: não escuto choro nem rumor algum, nem sinto mais qualquer movimento. Na penumbra das minhas lágrimas vejo uma forma clara, longa e arredondada. Com esforço estico as mãos, agora batendo os dentes de nojo, e sinto sua pele um pouco enrugada. É mole, é consistente, ele existe, esse filho de todos os meus pavores está aí.
Quando deito de novo no travesseiro, a cabeça zonza e o cabelo molhado de suor, sinto que ele se move. Vem para mais perto de mim. Sobe pelo meu corpo. Devagarinho rasteja subindo entre minhas pernas esticadas mas abertas, e não tenho mais coragem de olhar. Mas com a mesma fúria de pavor extremo com que assustava meus demônios de menina, resolvo abrir os olhos. Ele realmente rasteja pelo meu corpo acima, arrasta-se, informe, sobre minha barriga. Depois para e, erguendo a ponta onde deve ficar o rosto, abre na pele esbranquiçada, úmida dos meus líquidos, um par de olhos pretos e redondos que me fitam.
Eis o fruto do meu ventre. Criatura noturna, do fundo de um poço de águas podres, ele me olha. O que quer de mim?
Agora é hora do grande grito, de agarrar com as duas mãos essa coisa nojenta e a rasgar ao meio e jogar os pedaços longe, e acordar, e voltar à minha vida de mulher simples, casta, discreta, que atende sua família, cuida de sua casa, cumpre seus deveres, e nunca, nunca, nunca se maculou. Quem sempre fez tudo direito, como eu, não merece desgraça nem horror.
Mas quando vou fazer isso, ele abre abaixo dos olhos uma boquinha também negra, sem dentes, que se abre e fecha como se tivesse sede, ou fome. Então compreendo: o filho do meu pesadelo quer me devorar. Vai começar pelo rosto, arrancando minha carne dos ossos da face, esvaziando meus olhos, sugando minha língua, e por fim me engolindo toda, para que eu para sempre desapareça no inferno das suas entranhas.
Então eu, berro, urro, para que ele se assuste e desapareça em poeira de carne e pele e gosma, como aqueles fantasmas. E eu possa acordar e me ver vestida com minha camisola modesta e recatada, debaixo das cobertas gastas, em minha velha cama, minha velha casa, meu velho corpo, a simples e sólida realidade onde me sinto bem.
Pois, como me ensinaram desde pequena, se a gente faz tudo certo e cumpre as tarefas todas, nada de verdadeiramente mau pode nos acontecer. O bem sempre vence, o céu é mais poderoso do que os infernos.
Deus é bom.