Asle e Alida vagueavam pelas ruas de Bjørgvin, Asle carregava sobre os ombros dois fardos com tudo o que possuíam e na mão segurava o estojo com o violino que herdara do pai Sigvald, e Alida carregava dois sacos de rede com comida, e agora percorriam as ruas de Bjørgvin há já várias horas na tentativa de encontrar alojamento algures, mas era impossível alugar o que quer que fosse em algum lugar, não, diziam-lhes, lamentamos mas não temos nada para alugar, não, diziam-lhes, tudo o que tínhamos para alugar já foi alugado, era o que lhes diziam, e então Asle e Alida tinham de continuar a calcorrear as ruas e a bater às portas e a perguntar se podiam alugar um quarto em qualquer casa, mas não havia quartos para alugar em nenhuma casa, portanto para onde poderiam ir, onde poderiam encontrar abrigo do frio e da escuridão agora, no fim do Outono, certamente vão poder alugar um quarto algures, e, pelo menos, uma coisa positiva é que não estava a chover, mas também poderia começar a chover a qualquer momento, e eles não podiam continuar assim a andar às voltas, e porque é que ninguém lhes dava alojamento, talvez fosse porque todos podiam ver que Alida estava prestes a dar à luz, o que podia acontecer por um destes dias, a julgar pelo aspecto dela, ou seria pelo facto de eles não serem casados e portanto não serem realmente marido e mulher e não poderem ser considerados gente decente, mas com certeza ninguém poderia aperceber-se disso, não, não era possível, ou talvez até fosse possível, porque essa tinha de ser a razão por que ninguém queria alugar-lhes um quarto, e não era pelo facto de Asle e Alida não se quererem casar que não tinham tido a bênção da igreja, como poderiam eles ter tido tempo e meios para fazê-lo se ambos tinham apenas dezassete anos e portanto não tinham obviamente os requisitos necessários para se casarem, mas assim que os tivessem, tratariam de se casar devidamente, com padre e mestre-de-cerimónias e festa de casamento e tocador de violino e tudo o mais que faz parte da boda, mas por agora isso teria de esperar, por agora as coisas teriam de ficar como estavam e estavam bastante bem, na verdade, mas porque é que ninguém queria dispensar-lhes um tecto onde abrigar-se, o que é que havia de errado neles, se eles próprios se considerassem um casal verdadeiro e decente talvez ajudasse, porque se eles próprios pensassem assim seria mais difícil os outros acharem que eles passeavam pela vida como pecadores, e agora já tinham batido a muitas portas e das pessoas a quem tinham perguntado ninguém queria dar-lhes alojamento e eles não podiam continuar a caminhar assim, a noite está a chegar, estamos no fim do Outono, está escuro, está frio e em breve também poderá começar a chover
Estou tão cansada, diz Alida
e eles param e Asle olha para Alida e não sabe o que dizer para a confortar, pois já se confortaram muitas vezes a falar do bebé que estava para vir, se seria rapariga ou rapaz, falavam disso, e Alida achava que com as meninas era mais fácil lidar, e ele achava o contrário, que era mais fácil conviver com os rapazes, mas se seria rapaz ou rapariga era indiferente, eles ficavam felizes e gratos pela criança de quem em breve iriam ser pais, diziam eles e confortavam-se pensando antecipadamente na criança que estava prestes a nascer. Asle e Alida vagueavam pelas ruas de Bjørgvin. E até agora não se tinham preocupado verdadeiramente com ninguém lhes querer dar guarida, por fim tudo se iria resolver, em breve iria aparecer alguém que tivesse um pequeno quarto para alugar, onde eles pudessem ficar algum tempo, isso tinha de resolver-se, pois existiam muitas casas em Bjørgvin, casas pequenas e grandes, não era como em Dylgja, onde apenas havia umas escassas quintas e poucas casitas junto ao mar, ela, Alida, era filha de Herdis do Penhasco, dizia-se, e era oriunda de uma pequena quinta em Dylgja, onde cresceu com a mãe Herdis e a irmã Oline, depois de o pai Aslak ter desaparecido e nunca mais ter regressado, quando Alida tinha três anos e a sua irmã Oline cinco, e Alida não tinha pois a mais pequena recordação do pai, somente da sua voz, porque ainda conseguia ouvir a sua voz dentro de si, o grande sentimento que havia na sua voz, o timbre nítido e o registo amplo, mas isso era tudo o que ela conservava do pai Aslak, pois não conseguia lembrar-se da sua aparência e também não conseguia lembrar-se de mais nada, apenas da sua voz quando cantava, era tudo o que ela conservava do pai Aslak. E ele, Asle, cresceu num Ancoradouro em Dylgja que fora equipado como um pequeno barracão, ali cresceu com a mãe Silja e o pai Sigvald, até que o pai Sigvald um dia desapareceu no mar quando as tempestades de Outono chegaram de repente, ele andava a pescar ao largo das ilhas nos mares ocidentais e o barco afundou-se para lá das ilhas, ao largo de Storesteinen. Então a mãe Silja e Asle ficaram sozinhos no Ancoradouro. Mas não muito depois de o pai Sigvald ter desaparecido, a mãe Silja adoeceu e ficou cada vez mais magra, ficou tão magra que quase se podia ver através do seu rosto os próprios ossos, os seus grandes olhos azuis foram ficando cada vez maiores até que por fim lhe cobriam quase todo o rosto, a Asle parecia-lhe que era assim, e o seu longo cabelo castanho foi ficando cada vez mais fino e mais ralo do que antes, e então, uma manhã em que ela não se levantou, Asle foi encontrá-la morta no leito. A mãe Silja estava deitada com os seus grandes olhos azuis abertos a olhar para o lado onde devia estar deitado o pai Sigvald. O seu longo e fino cabelo castanho cobria-lhe quase toda a cara. A mãe Silja jazia ali morta. Isto foi há pouco mais de um ano, quando Asle tinha cerca de dezasseis anos. E assim tudo o que ele tinha na vida era ele próprio e os escassos objectos do Ancoradouro, e ainda o violino do pai Sigvald. Asle estava só, completamente só, se não fosse Alida. A única coisa em que ele pensou, quando viu a mãe Silja jazendo ali inelutavelmente morta, foi em Alida. No seu longo cabelo negro, nos seus olhos negros. Em tudo o que a ela dizia respeito. Ele tinha Alida. Agora tudo o que lhe restava era Alida. E foi a única coisa em que ele pensou. Asle pôs a mão sobre o rosto branco e frio da mãe Silja e afagou-lhe a face. Agora tudo o que lhe restava era Alida. Foi nisso que ele pensou. E depois tinha o seu violino. Também pensou nisso. Porque o pai Sigvald não só tinha sido pescador, como também tinha sido um exímio tocador de violino e era ele quem tocava em todas as bodas por todo o Sygna e arredores, e assim foi durante muitos anos, e se houvesse um bailarico numa noite de Verão, era o pai Sigvald que lá iria tocar. Na sua juventude, chegara a Dylgja vindo de leste para tocar na boda do fazendeiro de Leitet e foi assim que ele e a mãe de Asle, a mãe Silja, se conheceram, ela era governanta lá e servia na boda, e o pai Sigvald tocava. Assim se conheceram o pai Sigvald e a mãe Silja. E a mãe Silja engravidou. E deu à luz o Asle. E a fim de sustentar a família, o pai Sigvald alistou-se para trabalhar no barco de um pescador no alto-mar, ao largo das ilhas, o pescador vivia em Storesteinen e, como parte do salário, ele e Silja podiam viver no ancoradouro que o pescador possuía ali, em Dylgja. Foi assim que o tocador de violino, o pai Sigvald, se tornou também pescador e foi viver no Ancoradouro em Dylgja. E assim foi. E assim se passou. E agora tanto o pai Sigvald como a mãe Silja tinham partido. Partido para sempre. E agora Asle e Alida percorriam as ruas de Bjørgvin, e tudo o que eles possuíam carregava Asle em dois fardos sobre os ombros, e trazia ainda consigo o estojo do violino com o violino do pai Sigvald. Estava escuro e estava frio. E agora Alida e Asle já tinham batido a muitas portas a pedir guarida e as únicas respostas tinham sido que não era possível, que não havia quartos para alugar, que o quarto que tinham para alugar já estava alugado, que não alugavam quartos, que não precisavam de alugar, este era o tipo de resposta que recebiam, e Asle e Alida caminham, param, olham para uma casa, talvez ali encontrem alojamento, mas será que eles se atrevem a bater também àquela porta, apenas voltarão a receber um não como resposta, com certeza, mas também não podem continuar a vaguear pelas ruas assim, portanto tinham de encher-se de coragem para bater à porta e perguntar se tinham um quarto para alugar naturalmente, mas nem Asle nem Alida tinham coragem de apresentar uma vez mais o seu pedido e uma vez mais ouvir que não, que não era possível, que já estava demasiado cheio, e coisas deste género, e talvez tivessem cometido um erro em terem trazido consigo tudo o que possuíam e terem navegado até Bjørgvin, mas que outra coisa poderiam ter feito, deveriam ter ficado na casa de Herdis do Penhasco, se bem que ela não quisesse que eles lá ficassem a viver, porque isso não teria tido qualquer futuro, se ao menos eles tivessem podido ficar a viver no Ancoradouro, teriam ficado lá, mas um dia Asle viu que alguém aproximadamente da sua idade navegava em direcção ao Ancoradouro e baixou a vela e atracou o barco na praia abaixo do Ancoradouro e depois começou a subir até ao Ancoradouro e passado um bocado ouviram bater à portinhola e quando Asle abriu e o homem entrou e pigarreou para aclarar a voz disse que agora era ele o dono do Ancoradouro, já que o seu pai tinha desaparecido no mar juntamente com o pai de Asle, e que agora precisava do Ancoradouro para si próprio, e portanto Asle e Alida não podiam naturalmente ficar a morar ali, sendo assim, tinham de empacotar os pertences e encontrar outro sítio onde viver, e é assim que terá de ser, disse ele e depois foi sentar-se na cama junto de Alida, que ali estava sentada com o seu enorme ventre, e ela levantou-se e foi para junto de Asle e depois o homem deitou-se na cama e esticou-se e disse que estava cansado e que agora queria descansar um pouco, disse ele e Asle olhou para Alida e foram ambos até à portinhola e abriram-na. E depois desceram os degraus e saíram e pararam defronte do Ancoradouro. Alida com o seu enorme ventre e Asle
Agora não temos sítio onde morar, disse Alida
e Asle não respondeu
Mas o ancoradouro pertence-lhe, portanto acho que não se pode fazer nada quanto a isso, disse Asle
Não temos sítio onde morar, disse Alida
Estamos no fim do Outono, está escuro e frio, e temos de ter algum sítio onde morar, disse ela
e depois ficaram ali parados em silêncio
E estou prestes a dar à luz, poderei dar à luz qualquer um destes dias, diz ela
É verdade, diz Asle
E não temos sítio para onde ir, diz ela
e depois senta-se no banco junto à parede do Ancoradouro, que o pai Sigvald construíra
Devia tê-lo matado, diz Asle
Não digas essas coisas, diz Alida
e a seguir Asle vai sentar-se no banco junto de Alida
Eu dou cabo dele, diz Asle
Não, não, diz Alida
As coisas são como são, há pessoas que possuem coisas e outras que não possuem, diz ela
E aqueles que possuem decidem sobre os que não possuem, nós, diz ela
Acho que as coisas são mesmo assim, diz Asle
E é assim que deve ser, diz Alida
Acho que sim, diz Asle
e Alida e Asle permanecem sentados ali no banco sem dizerem nada e passado um bocado sai o homem que é dono do Ancoradouro e diz-lhes que têm de empacotar todos os pertences, porque agora é ele que vive no Ancoradouro, diz ele e não os quer por ali, sobretudo não quer o Asle, diz ele, mas Alida, em contrapartida, pode ficar a morar ali, pelo estado em que se encontra, diz ele, ele regressará dentro de umas horas, e então eles, pelo menos o Asle, terão de ter saído e desaparecido, diz ele e depois desce até ao seu barco e enquanto está a soltar as amarras diz que vai rapidamente passar pelo merceeiro e que quando regressar o Ancoradouro tem de estar vazio e preparado, ele irá dormir ali já esta noite, e claro, talvez Alida se ela quiser, diz ele e empurra o barco e iça a vela e depois o seu barco desliza em direcção ao Norte ao longo da costa
Eu posso empacotar, diz Asle
Eu posso ajudar-te, diz Alida
Não, vai para a casa no Penhasco, vai para casa da mãe Herdis, diz Asle
Talvez possamos dormir lá esta noite, diz ele
Talvez, diz Alida
e ela levanta-se e Asle vê-a caminhar ao longo da praia, as suas pernas muito curtas, as ancas redondas, o seu longo cabelo negro e farto ondulando-lhe pelas costas abaixo, e Asle fica ali sentado a olhar para Alida e ela volta-se e olha para ele e em seguida levanta o braço e acena-lhe e depois começa a subir o Penhasco e Asle depois entra no Ancoradouro e empacota tudo o que lá há em dois fardos e em seguida sai e põe-se a caminhar ao longo da praia com os dois fardos sobre os ombros e o estojo do violino na mão e lá ao longe, no mar, vê o homem que é dono do Ancoradouro vir a navegar no seu barco e Asle sobe o Penhasco e carrega tudo o que possui em dois fardos sobre os ombros, além do violino dentro do estojo, que segura numa das mãos, e passado um bocado avista Alida, que caminha ao encontro dele e lhe diz que não podem ficar a morar com a mãe Herdis, porque acha que Herdis nunca gostou dela, a sua própria filha, acha que a mãe não gostava muito dela, que sempre tinha gostado mais da irmã Oline e ela nunca compreendera a razão por que assim era, por isso não quer ir lá para casa, ainda mais agora que o ventre lhe cresceu tanto e por tudo o mais, diz ela e Asle diz que é tarde, e que em breve ficará escuro, e que faz frio de noite agora no fim do Outono, e que talvez até vá começar a chover, portanto vão ter de conformar-se e perguntar se podem ficar algum tempo na casa de Herdis do Penhasco, diz ele e Alida diz que se é o que eles têm de fazer, então terá de ser ele a perguntar, ela não o fará, ela prefere dormir onde quer que seja, diz ela e Asle diz que se tem de ser ele a perguntar que ele o fará, e quando estão parados no corredor Asle conta a verdade, que o homem que agora é dono do Ancoradouro quer viver lá sozinho, portanto eles não têm sítio para onde ir, mas se lhes fosse possível ficar aqui por algum tempo, em casa de Herdis, diz Asle e Herdis responde que pois bem, se é assim, então está bem, não pode fazer mais nada do que deixá-los ficar, mas só por algum tempo, diz ela e diz-lhes então que venham e Herdis sobe as escadas e Asle e Alida sobem atrás dela e a seguir a mãe Herdis entra no sótão e diz-lhes que podem ficar ali por algum tempo, mas não por muito tempo e depois vira-lhes as costas e volta a descer e Asle põe no chão os fardos com tudo o que eles possuem e pousa o estojo do violino a um canto, e Alida diz que acha que a mãe Herdis nunca gostou dela, não, nunca gostou e ela nunca compreendeu bem porque é que Herdis não gostava dela e Herdis possivelmente também não gostava muito de Asle, verdade seja dita, antipatizava com ele, pura e simplesmente, as coisas eram como eram, e dado que Alida ficou grávida, e ela e Asle não eram casados, então Herdis não conseguia provavelmente viver com a desonra debaixo do mesmo tecto, era possivelmente o que ela pensava, a mãe Herdis, ainda que não o dissesse, disse Alida, portanto apenas podiam ficar aqui esta noite, apenas uma noite, disse Alida e Asle disse que então, se as coisas eram assim, ele não via outra solução se não terem de pôr-se a caminho de Bjørgvin já no dia seguinte de manhã, porque lá tinham de conseguir encontrar alojamento, ele tinha lá estado uma vez, em Bjørgvin, disse ele, tinha lá estado com o pai Sigvald e lembrava-se muito bem de como era tudo, as ruas, as casas, as pessoas, os sons e os cheiros, as lojas, as coisas dentro das lojas, ele lembrava-se de tudo aquilo muito nitidamente, disse ele, e quando Alida perguntou como é que iriam para Bjørgvin, então Asle disse que teriam de arranjar um barco e navegar até lá
Arranjar um barco, disse Alida
Sim, disse Asle
Mas que barco, diz Alida
Está um barco amarrado em frente do Ancoradouro, disse Asle
Mas esse barco, disse Alida
e depois viu Asle levantar-se e sair e Alida deitou-se ali na cama do sótão e esticou-se e fechou os olhos e está tão cansada tão cansada e vê o pai Sigvald ali sentado com o seu violino e este pega numa garrafa e bebe um valente trago e depois vê Asle ali parado, com os seus olhos negros, o seu cabelo negro, e ela tem um choque, porque ele estava ali, o rapaz dela estava ali, e depois vê o pai Sigvald acenar a Asle e este vai ter com o pai e ela vê que Asle se senta junto dele e coloca o violino debaixo do queixo e começa a tocar e, de repente, algo se mexe dentro dela e ela é levantada e ergue-se mais e mais e na música que ele toca ela ouve o pai Aslak a cantar e ouve narrar a sua própria vida e o seu próprio futuro e ela sabe o que sabe e deste modo ela está ali presente no seu próprio futuro e tudo está em aberto e tudo é difícil menos a canção, essa está ali e deve ser a canção a que chamam amor, e assim ela só está presente na música que está a ser tocada e não quer existir em nenhum outro lugar e em seguida aparece a mãe Herdis e pergunta-lhe o que está ela a fazer, não devia ter ido dar água às vacas há muito tempo, não devia ter varrido a neve, o que é que ela julgava, achava que a mãe Herdis tinha de fazer tudo, cuidar da casa, tomar conta dos animais, cozinhar, não lhes era já suficientemente difícil fazer o que tinha de ser feito se ela não estivesse sempre, constantemente, a escapar-se aos seus deveres, não, aquilo assim não podia continuar, ela tinha de se esforçar, devia olhar bem para a sua irmã Oline, ver que ela estava sempre a ajudar e a fazer o seu melhor, como podiam duas irmãs ser tão diferentes, tanto no aspecto como em tudo o resto, como podia isto acontecer, que uma se parecesse com o pai e a outra com a mãe, uma loura como a mãe, a outra morena como o pai, mas assim era e não havia maneira de fugir a isso e seria sempre assim, disse a mãe Herdis, e porque haveria ela de ajudar em alguma coisa se a mãe Herdis estava sempre a falar mal dela e a gritar-lhe, ela era a má e a irmã Oline era a boazinha, ela era a ovelha negra e a irmã era a ovelhinha mansa, e Alida estira-se na cama, e o que irá acontecer agora, para onde irão eles, ela pode dar à luz a qualquer momento, o Ancoradouro não era o melhor lugar, mas era um sítio onde poderiam viver e agora já nem sequer lhes era permitido ficar lá e agora não tinham sítio para onde ir, nem dinheiro, não, quase não tinham dinheiro, ela tinha umas quantas notas e Asle também teria algumas, mas não era muito, pouco mais do que nada, mas eles tinham de se arranjar, disso ela tinha a certeza, eles iriam conseguir arranjar-se, mas se ao menos Asle regressasse em breve, pois aquela coisa do barco, não, ela não deve pensar nisso, seja como for, e Alida ouve a mãe Herdis dizer que afinal ela é tão morena e tão feia como o pai, e tão preguiçosa como ele, sempre a escapar-se aos seus deveres, diz a mãe Herdis, como irá ela sair-se na vida, ainda bem que é a irmã Oline quem irá tomar conta da quinta, porque Alida teria sido uma inútil, isto teria sido uma confusão, ouve a mãe dizer e em seguida ouve a irmã Oline dizer que ainda bem que é ela quem tomará conta da quinta, a bela quinta que elas têm aqui no Penhasco, diz a irmã Oline, e Alida ouve a mãe dizer o que irá acontecer a Alida, bem, ela não faz a mínima ideia e Alida diz-lhe só que não se preocupe, ela própria tão pouco se importa com isso, e depois Alida sai e vai até à Colina onde ela e Asle se encontravam habitualmente e quando se aproxima, vê Asle ali sentado e ele parece-lhe pálido e abatido e ela apercebe-se de que os olhos negros dele estão húmidos e sabe que algo aconteceu e então Asle olha para ela e diz-lhe que a mãe Silja morreu e que agora Alida é a única pessoa que lhe resta e ele deita-se de costas e Alida vai-se deitar ao lado dele e ele põe os braços à volta dela e aperta-a contra si e depois diz-lhe que encontrou a mãe morta esta manhã, ela estava deitada na cama e os seus grandes olhos azuis cobriam-lhe todo o rosto, diz ele e mantém Alida apertada contra si e depois fundem-se um no outro e só se ouve o suave murmúrio do vento nas árvores e eles permanecem ausentes e sentem vergonha e matam e falam e já não pensam e depois ficam ali deitados na Colina e sentem vergonha e sentam-se e ficam ali sentados na Colina a olhar para o mar
Imagine-se fazermos uma coisa destas no dia em que morreu a mãe Silja, diz Asle
Pois, diz Alida
e Asle e Alida levantam-se e ficam ali de pé a compor a roupa e depois ficam parados a olhar para as ilhas no mar a ocidente, para Storesteinen
Estás a pensar no pai Sigvald, diz Alida
Sim, diz Asle
e levanta a mão no ar e fica parado com a mão contra o vento
Mas tens-me a mim, diz Alida
E tu tens-me a mim, diz Asle
e em seguida Asle começa a agitar a mão para trás e para diante num aceno
Estás a acenar aos teus pais, diz Alida
Sim, diz Asle
Também consegues senti-los, diz ele
Sim, sinto que estão aqui, diz ele
Ambos estão aqui agora, diz ele
e depois Asle baixa a mão e move-a na direcção de Alida e afaga-lhe a face e depois segura a mão dela na sua e ficam ali parados
Mas imagina, diz Alida
Sim, diz Asle
Imagina que, diz Alida
e põe a outra mão sobre o ventre
Sim, imagina que, diz Asle
e depois sorriem um para o outro e começam a descer o Penhasco de mão dada e Alida vê que Asle está ali de pé no soalho do sótão e tem o cabelo molhado e há dor no seu rosto e ele tem um aspecto cansado e abatido
Onde estiveste, diz Alida
Não, em parte nenhuma, diz Asle
Mas estás todo molhado e frio, diz ela
e depois diz a Asle que venha deitar-se agora, mas ele continua ali de pé
Mas não fiques aí de pé, diz ela
e ele continua ali parado, de pé
O que se passa, diz ela
e ele diz-lhe que têm de partir agora, o barco está pronto
Mas não queres dormir um pouco, diz Alida
Devíamos ir, diz ele
Só um pouco, tens de descansar um pouco, diz ela
Não muito, só um pouquinho, diz ela
Estás cansada, diz Asle
Sim, diz Alida
Estiveste a dormir, diz ele
Acho que sim, diz ela
e ele continua ali de pé no soalho, debaixo do tecto inclinado
Mas então vem, diz ela
e estende os braços para ele
Temos de partir em breve, diz ele
Mas para onde, diz ela
Para Bjørgvin, diz ele
Mas como, diz ela
Navegamos, diz ele
Então precisamos de um barco, diz ela
Eu arranjei um barco, diz Asle
Vamos descansar um pouco primeiro, diz ela
Então só um pouquinho, diz ele
Assim também a roupa pode secar um pouco, diz ele
e depois Asle despe-se e espalha a roupa no soalho e Alida levanta o cobertor de lã e Asle mete-se na cama com ela e deita-se juntinho dela e ela sente como ele está frio e molhado e pergunta-lhe se correu tudo bem e ele diz que sim, que correu tudo bem, sim, e pergunta-lhe se ela esteve a dormir e ela diz-lhe que acha que sim e ele diz que podem descansar um pouco agora e depois têm de levar alguma comida, tanta quanta lhes seja possível, e talvez algum dinheiro também, se conseguirem encontrar algumas notas nalgum sítio, e depois têm de meter-se no barco e pôr-se ao largo antes do alvorecer e da manhã e ela diz que sim, que farão aquilo que ele achar melhor, diz ela e depois ficam ali deitados e ela vê Asle ali sentado com o seu violino e ela está de pé a escutá-lo e ouve a canção vinda do seu próprio passado, e ouve a canção vinda do seu próprio futuro, e ouve o pai Aslak a cantar, e sabe que tudo está predestinado e que tem de ser assim e ao pousar a mão sobre o ventre sente a criança mexer-se e pega na mão de Asle e coloca-a sobre o ventre e a criança volta a mexer-se e então ouve Asle dizer que deviam partir imediatamente enquanto ainda está escuro, que é o melhor, diz ele, mas está tão cansado, diz ele, que se adormecer agora pode dormir profundamente durante muito tempo e por isso não pode fazê-lo, eles têm de alcançar o barco, diz Asle e senta-se na cama
Não podemos ficar deitados só mais um bocadinho, diz Alida
Fica tu deitada mais um bocadinho, diz Asle
e põe-se de pé no soalho e Alida pergunta-lhe se quer que acenda a luz e ele diz que não é preciso e começa a vestir-se e Alida pergunta-lhe se a roupa dele está seca, não, diz ele, seca não está, mas também já não está muito molhada, diz ele e continua a vestir-se e Alida senta-se na cama
Agora vamos para Bjørgvin, diz ele
Vamos viver em Bjørgvin, diz Alida
Sim, vamos sim, diz Asle
e Alida levanta-se e acende a luz, só agora pode ver quão transtornado e agitado Asle parece e então começa a vestir-se
Mas onde vamos viver, diz ela
Temos de encontrar alojamento algures, diz ele
Tem de ser possível, diz ele
Há tantas casas em Bjørgvin, lá há tanto de tudo, portanto isto deve resolver-se, diz ele
Se não houver um quarto para nós em nenhuma de todas aquelas casas em Bjørgvin, então não sei o que fazer, diz Asle
e depois apanha ambos os fardos e coloca-os sobre os ombros e pega no estojo do violino e Alida pega no candeeiro e abre a porta e sai à frente dele e ela desce devagar e silenciosamente a escada e ele desce devagar e silenciosamente a escada atrás dela
Vou buscar alguma comida, diz Alida
Óptimo, diz Asle
Eu espero por ti no quintal, diz ele
e Asle sai para o corredor e Alida vai à despensa e encontra dois sacos de rede onde mete charcutarias, pão ázimo e manteiga e depois sai para o corredor e ao abrir a porta vê Asle parado no meio do quintal e estende-lhe os sacos e ele vem recebê-los
Mas o que vai dizer a tua mãe, diz ele
Ela que diga o que lhe apetecer, diz Alida
Sim, mas, diz ele
e Alida entra novamente no corredor e vai até à cozinha e ela sabe onde a mãe costuma esconder o dinheiro, no cimo do aparador, dentro de um pequeno baú, e Alida vai buscar um banco e encosta-o ao armário e depois trepa para cima do banco e abre o armário e ali, bem no fundo, deita a mão ao baú e solta-o com esforço e abre o baú e pega nas notas que lá estão e empurra de novo o baú para o fundo do armário, fecha a porta do armário e fica em pé em cima do banco com as notas na mão e nisto abre-se a porta da sala e ela vê a cara da mãe iluminada pela luz do candeeiro que ela segura à sua frente
O que estás a fazer, diz a mãe Herdis
e Alida, que ficou parada, desce do banco
O que tens na mão, diz a mãe Herdis
Nem penses, diz ela
Não, tu és incrível, diz ela
Já chegaste ao cúmulo de roubar, diz ela
Vou-te dar uma surra, diz ela
Roubar a tua própria mãe, diz ela
Como é possível, diz ela
És exactamente como o teu pai, és, diz ela
Ralé como ele, diz ela
E és uma vadia, diz ela
Olha para ti, diz ela
Dá-me o dinheiro, diz ela
Dá-me o dinheiro imediatamente, diz ela
Sua puta, diz a mãe Herdis
e nisto agarra a mão de Alida
Solta-me, diz Alida
Larga, diz a mãe Herdis
Larga, sua puta, diz a mãe Herdis
Não largo, não, diz Alida
Roubar a tua própria mãe, diz a mãe Herdis
e Alida bate na mãe Herdis com a mão que tem livre
Estás a bater na tua própria mãe, diz a mãe Herdis
Não, tu ainda és pior do que o teu pai, diz ela
Não deixo que ninguém me bata, diz ela
e Herdis agarra e puxa o cabelo de Alida e Alida grita e a seguir agarra e puxa o cabelo da mãe Herdis e então aparece Asle e ele agarra na mão de Herdis e afrouxa o aperto e depois fica ali a segurá-la com força
Sai, diz Asle
Vou lá para fora, diz Alida
Sim, vai, diz ele
Leva o dinheiro e vai para o quintal e espera lá, diz Asle
e Alida segura no dinheiro e sai para o quintal e fica lá junto dos fardos e dos sacos de rede e está frio e ela consegue ver as estrelas e a Lua a brilhar, mas não consegue ouvir nada e então vê Asle a sair de casa e ele vem ao seu encontro e ela dá-lhe as notas e ele aceita-as, dobra-as e depois mete-as no bolso, a seguir Alida pega nos sacos de rede, um em cada mão, e Asle levanta os fardos com tudo o que eles possuem e coloca-os sobre os ombros e leva o estojo do violino na mão e depois diz que deviam ir-se embora já e então começam a descer o Penhasco e nenhum dos dois diz nada e está uma noite de céu limpo com estrelas brilhantes e uma Lua cintilante e eles descem o Penhasco e em baixo fica o Ancoradouro onde se encontra o barco atracado
Podemos simplesmente levar o barco, diz Alida
Sim, podemos, diz Asle
Mas, diz Alida
Podemos levar o barco com segurança, diz Asle
Podemos levar o barco e podemos navegar até Bjørgvin, diz ele
Tu não precisas de ter medo, diz ele
e Alida e Asle descem até ao barco, ele puxa-o para terra, mete lá dentro os fardos e os sacos de rede e o estojo do violino, e Alida entra e a seguir Asle desamarra o barco e rema para o largo e diz que está bom tempo, a Lua brilha, as estrelas cintilam, está frio e o céu está limpo, e sopra um vento favorável para navegar em direcção ao Sul, diz ele, finalmente eles vão poder navegar até Bjørgvin e sem problemas, diz ele e Alida não quer perguntar-lhe se ele sabe o caminho e Asle diz que se lembra da vez em que ele e o pai Sigvald navegaram até Bjørgvin, ele sabe para onde tem de navegar, diz ele e Alida vai sentada no banco central e vê Asle recolher os remos e içar a vela e depois vê-o sentar-se ao leme e o barco desliza para o largo, para longe de Dylgja e Alida volta-se e vê, tanto quanto permite a claridade desta noite de fim de Outono, a casa no Penhasco, a casa parece-lhe decadente, e vê a Colina onde ela e Asle se encontravam habitualmente, e onde ela engravidou, onde foi concebida a criança que ela está prestes a dar à luz, aquele é o lugar dela, é lá que ela se sente em casa e Alida vê o Ancoradouro onde ela e Asle moraram durante alguns meses e depois o barco navega para lá do promontório e ela só vê montanhas e ilhotas e recifes e o barco continua a avançar devagar
Talvez possas deitar-te e dormir, diz Asle
Posso, diz Alida
Evidentemente, diz Asle
Embrulha-te bem nos cobertores de lã e depois deita-te na proa do barco, diz ele
e Alida abre um dos fardos e tira os quatro cobertores que eles trouxeram, faz uma cama na proa do barco e embrulha-se bem num dos cobertores e depois deita-se ali e vai ouvindo o mar que embate contra o barco e deixa-se cair naquele suave embalar e tem uma sensação de bem-estar e calor, mesmo ali deitada ao relento nesta noite fria, e olha para as estrelas claras e para o disco brilhante da Lua, lá em cima
A vida começa agora, diz ela
Agora vamos a navegar no mar da vida, diz ele
Acho que não consigo adormecer, diz ela
Mas podes ficar aí deitada a descansar, diz ele
É bom estar aqui deitada, diz ela
É bom que te sintas bem, diz ele
Sim, nós estamos bem, diz ela
e escuta o vaivém do mar e a Lua brilha e a noite é como um dia estranho e o barco desliza e desliza em frente, em direcção ao Sul, ao longo da costa
Não estás cansado, diz ela
Não, estou bem desperto, diz ele
e então ela vê à sua frente a mãe Herdis a chamar-lhe de puta e a seguir vê a mãe Herdis numa véspera de Natal, a entrar na sala de estar com a travessa das costeletas, alegre e bela e bondosa, sem aquela dor profunda em que mergulhava frequentemente, e Alida simplesmente fora-se embora sem dizer adeus à mãe Herdis nem à irmã Oline, ela pegou em toda a comida que conseguiu encontrar e meteu-a nos dois sacos de rede e pegou em todo o dinheiro que havia em casa e depois simplesmente foi-se embora e de certeza que nunca mais, nunca mais irá voltar a ver a mãe Herdis, ela sabe disso, e a casa no Penhasco acabou ela de ver pela última vez, disso tem a certeza, e nunca mais irá voltar a ver Dylgja, se ao menos não tivesse partido, então poderia ter ido ter com a mãe e ter-lhe-ia dito que nunca mais a viria atormentar, nem agora nem mais tarde na vida, ela estava de partida, já que tinham cortado relações uma com a outra, ela ter-lhe-ia dito que nunca mais se voltariam a atormentar uma à outra e que ela nunca mais voltaria a vê-la, tal como nunca mais voltou a ver o pai Aslak depois de ele ter desaparecido, agora ela estava de partida e nunca mais regressaria e quando a mãe Herdis lhe perguntasse para onde iam, Alida dir-lhe-ia que não devia preocupar-se com isso e a mãe Herdis diria que, em todo o caso, queria dar-lhes um pouco de comida para a viagem e teria preparado um farnel para eles e em seguida a mãe Herdis teria ido buscar o baú do dinheiro e ter-lhe-ia dado algumas notas e dito que não queria mandar embora a filha para o grande mundo sem um tostão no bolso, e agora talvez ela nunca mais volte a ver a mãe, e Alida abre os olhos e vê que as estrelas entretanto desapareceram e que já não é de noite e ela senta-se e vê Asle sentado junto do leme
Já acordaste, diz ele
Ainda bem, diz ele
Um bom dia para ti, diz ele
E um bom dia para ti também, diz ela
Ainda bem que já acordaste porque em breve vamos entrar no Vågen, em Bjørgvin, diz ele
e Alida levanta-se e vai sentar-se no banco central e olha para sul
Em breve chegaremos lá, diz Asle
Olha, além à frente, diz ele
Atravessamos este fiorde e dobramos um promontório e a seguir entramos no fiorde Byfjorden, diz ele
E depois, quando tivermos entrado no Byfjorden, de lá é caminho directo para Vågen, diz ele
e Alida vê apenas paredes de montanhas de ambos os lados do fiorde, nem uma só casa à vista e eles vão a navegar em direcção a Bjørgvin e o vento está a amainar, e eles permanecem deitados à deriva, comem carne curada e pão ázimo e bebem água para acompanhar, apanham um pouco de vento e o vento que apanham é favorável e assim navegam até entrarem a deslizar no Vågen na tarde desse dia e encostaram e amarraram o barco no Cais e a seguir Asle desembarcou e em terra perguntou se alguém lhe queria comprar o barco, primeiro o interesse não foi grande, mas como ele ia descendo o preço, acabou por conseguir vender o barco por algum dinheiro. E deste modo juntaram também esse dinheiro. Depois Asle e Alida ficaram ali parados no Cais com os dois fardos, e com os dois sacos de rede, e com o estojo do violino e o violino do pai Sigvald, e com algum dinheiro que também tinham. Depois começaram a caminhar e para onde iam era pouco importante, disse Asle, deveriam simplesmente dar uma volta e uma olhadela em redor, pois ainda que ele tivesse estado antes em Bjørgvin, não podia dizer que conhecia a cidade assim tão bem, disse ele, mas que era grande, sim, a cidade de Bjørgvin era grande, era uma das maiores, talvez até a maior cidade da Noruega, disse ele e Alida disse que ela, bem, ela nunca antes tinha ido além de Torsvik, e isso já era uma grande coisa para ela, por isso agora, aqui, aqui nesta grande cidade de Bjørgvin, cheia de casas e de pessoas por todo o lado, não, ela não conseguiria orientar-se nesta imensidão, levaria anos até se sentir em casa aqui, disse Alida, mas que era emocionante estar aqui, lá isso era, com tanta coisa para ver, com tanta coisa a acontecer a todo o instante, disse ela e Asle e Alida caminharam ao longo do Cais, bordejado do lado superior por todos aqueles prédios altos, e depois todos aqueles barcos ancorados do lado oposto, por baixo das casas, barcos de todos os tipos, barcos de quatro remos e pequenos barcos de carga e qualquer outro tipo de barco que se possa imaginar
E além ao fundo fica a Praça do Mercado, disse Asle
A Praça do Mercado, disse Alida
Nunca ouviste falar da Praça do Mercado em Bjørgvin, disse ele
Sim, talvez tenha ouvido, agora que penso nisso, disse Alida
É onde as pessoas da região, como eu e tu, vendem os seus produtos, disse Asle
Sim, disse Alida
Chegam com os seus barcos e trazem peixe e carne e legumes e o que quer que tenham para vender, e vendem-nos além, na Praça do Mercado, disse Asle
Mas além não vem ninguém de Dylgja, ou vem, diz Alida
Eu diria que por vezes vem, diz Asle
e aponta, é além, por trás do sítio onde os barcos estão ancorados, que fica a Praça do Mercado, além, onde vês toda aquela gente e todas as bancas, é além que fica, diz ele e Alida diz que eles não precisam de passar por lá, porque é que eles não atravessam para o outro lado da rua, onde há menos gente e é mais fácil para eles caminharem ali, diz ela e então eles atravessam a rua e na encosta por trás deles vêem que há muitas casas, por isso acham que deviam passar por todas aquelas casas e perguntar se havia alojamento, diz Asle, há além tantas casas que, certamente, vão poder alugar alguma coisa, diz ele
E depois, diz Asle
Sim, diz Alida
Depois tenho de voltar a sair e procurar trabalho, porque algum rendimento temos de ter, diz ele
Queres ir procurar trabalho, diz Alida
Sim, diz Asle
Onde, diz Alida
Acho que vou ter de descer à Praça do Mercado, ou ir ao Cais e procurar lá, diz Asle
E talvez haja também alguma taberna onde eu possa tocar, diz ele
e Alida não diz nada e eles entram na rua que fica entre as casas mais próximas e Alida diz que não podem simplesmente ir bater à porta da primeira casa que encontrarem pela frente e Asle diz que podem sim e eles param e Asle bate à porta e uma velha mulher vem abrir, olha para eles e diz o que desejam e Asle pergunta se ela tem na sua casa um quarto para alugar e a velha mulher repete quarto para alugar e a seguir diz-lhes que eles têm de ir procurar quarto para alugar no sítio de onde vieram e não aqui em Bjørgvin, aqui não precisam de mais gente, diz ela e em seguida fecha-lhes a porta na cara e eles ouvem-na repetir quarto para alugar quarto para alugar enquanto volta a entrar em casa a coxear quarto para alugar quarto para alugar e eles olham um para o outro e sorriem e depois atravessam para o outro lado da rua e vão bater à porta da casa em frente e passado um instante vem abrir uma rapariga, que olha para eles, um pouco incrédula, e quando Asle lhe pergunta se têm um quarto para alugar, ela sorri e diz que para ele poderão sempre arranjar-lhe um quarto mas para aquela ali é mais difícil, diz ela, se ela tivesse vindo há uns meses teriam podido arranjar um quarto para ela também, mas agora, no estado em que se encontra, é bem mais difícil, diz a Rapariga e fica ali de pé encostada ao umbral da porta e depois olha para Asle
Queres entrar ou não, diz a Rapariga
Não posso ficar aqui parada, diz ela
Então, responde-me, diz ela
e Alida olha para Asle e segura-o pela manga
Vem, vamos embora, diz Alida
Sim, diz Asle
Sim, então vão, diz a Rapariga
Vem, diz Alida
e puxa suavemente por Asle e então a Rapariga solta uma gargalhada e vai para dentro e fecha a porta e eles ouvem-na dizer, não, como é possível um rapaz tão bem parecido com uma vadiazeca destas, diz ela e então alguém responde que é quase sempre assim, que é o costume, diz alguém, e outra pessoa diz que é sempre, sempre assim, e depois Alida e Asle continuam a percorrer a rua e caminham um bom bocado pelo meio do aglomerado de casas
Aquela tipa era horrível, diz Alida
Sim, diz Asle
e continuam a andar e param em frente da porta de outra casa, batem e quem vem abrir não importa, um quarto para alugar ninguém tem, não têm espaço, não alugam quartos, a dona da casa não se encontra, ou é uma coisa ou é outra, mas uma coisa é sempre a mesma, não têm nenhum quarto para lhes alugar, e Asle e Alida continuam a caminhar pelo meio de todas as casas, na sua maioria são casas pequenas, muito juntas umas às outras, e pelo meio delas esgueira-se uma rua estreita e nalguns sítios há uma rua ligeiramente mais larga entre as casas, e onde estão ou para onde vão, isso não sabe Asle nem Alida, nem que seria tão difícil conseguir um tecto onde abrigar-se, encontrar um refúgio onde proteger-se do frio e da escuridão ali em Bjørgvin, não, isso nunca eles teriam podido imaginar, pois Asle e Alida continuaram a calcorrear as ruas de Bjørgvin durante toda a tarde e até ao anoitecer e batiam às portas, uma após outra, e perguntavam às pessoas, uma após outra, e as respostas que recebiam eram respostas muito diferentes, mas o que ouviam mais frequentemente era que não, que não tinham quartos para alugar, que o quarto já estava alugado, assim lhes diziam e agora já Alida e Asle tinham calcorreado as ruas de Bjørgvin durante muito muito tempo e agora detêm-se e ficam parados imóveis e Asle olha para Alida, para os seus longos cabelos, negros e fartos e ondulantes, para os seus olhos negros e tristes
Estou tão cansada, diz Alida
e Asle apercebe-se de que a sua querida, a sua amada rapariga tem um aspecto tão cansado e não deve fazer bem a uma mulher grávida que em breve vai dar à luz estar tão cansada como Alida provavelmente está agora, não, isso não deve fazer bem
Não podíamos em breve sentar-nos um pouco, diz Alida
Sim, acho que podemos, diz Asle
e continuam a palmilhar e nisto começa a chover e eles continuam a caminhar e a caminhar debaixo de chuva e ficam encharcados, e sentem que o frio se lhes entranha no corpo, agora está escuro, agora está frio, estamos no fim do Outono e eles não têm onde se abrigar da chuva e do frio e do escuro, se ao menos tivessem um sítio onde pudessem sentar-se, num quarto quente, sim, se ao menos tivessem isso
É que estou cansada, diz Alida
Agora também começou a chover, diz ela
Pelo menos precisamos de encontrar um lugar onde possamos ficar debaixo de um tecto, diz Asle
Não podemos andar por aí à chuva encharcados, diz ele
Não, diz Alida
e pega nos seus sacos e continua a caminhar à chuva
Tens frio, diz Asle
Sim, estou encharcada e tenho frio, diz Alida
e param de novo, ficam ali parados à chuva, no meio da rua, e depois vão encostar-se a uma parede, debaixo de um beiral, e ficam ali de pé encostados à parede
O que vamos fazer, diz Alida
Temos de encontrar um abrigo para passar a noite, diz ela
Sim, diz Asle
Devemos ter batido a umas vinte portas, pelo menos, para perguntar por um quarto, diz Alida
Mais do que isso, diz Asle
Mas ninguém nos quer na sua casa, diz ela
Não, diz ele
Já faz demasiado frio para dormir na rua e nós estamos encharcados, diz ela
Pois, diz ele
e eles ficam ali de pé durante um bom bocado sem dizer nada e continua a chover e está frio e está escuro e agora já não se vê ninguém nas ruas, hoje durante o dia via-se muita gente nas ruas, gente de todo o tipo, jovens, idosos, mas agora parece que estão todos recolhidos no interior das suas casas, com luz e calor, porque agora a chuva cai do céu com maior intensidade e acumula-se em poças à frente deles e Alida pousa os sacos de rede no chão, e ela agacha-se e o queixo descai-lhe sobre o peito e as pálpebras descaem-lhe sobre os olhos e Alida fica assim agachada e adormece e Asle também está tão cansado, tão cansado, já passou tanto tempo desde que eles se deitaram sem terem podido dormir em casa da mãe Herdis no Penhasco e depois se levantaram e se meteram no barco e começaram a navegar em direcção ao Sul até Bjørgvin, a longa travessia para Bjørgvin, mas que até correu bem, pois apanharam vento favorável a maior parte da noite, o vento só amainou ao fim da manhã e eles continuaram deitados no barco que deslizava e agora Asle está tão cansado que podia dormir de pé ali mesmo onde se encontra, mas não pode fazê-lo, não, não pode dormir agora, mas acaba por fechar os olhos e vê que o fiorde hoje está calmo e azul cintilante, e o mar ao largo é azul cintilante, e o barco está a oscilar levemente na enseada, e as montanhas em redor do Ancoradouro são verdes, e ele está sentado no banco e segura o violino na mão, depois apoia o violino no ombro e começa a tocar e lá ao longe, no Penhasco, vê Alida a correr ao seu encontro e é como se o tocar dele e os movimentos dela se misturassem com o dia luminoso e verde e uma enorme felicidade faz com que o tocar dele se funda com tudo o que cresce e respira e ele sente que o seu amor por Alida corre e corre dentro dele e transborda para a música que ele toca e transborda para tudo o que cresce e respira, e Alida chega junto dele e senta-se no banco ao seu lado e ele continua a tocar e Alida põe-lhe uma mão na coxa e ele toca, toca sempre e o tocar dele é tão alto como o firmamento e tão profundo como o firmamento, porque Alida e Asle conheceram-se ontem e combinaram que ela viria cá abaixo ter com ele, mas eles ainda mal se tinham falado antes, ontem foi a primeira vez que se falaram, embora já se tivessem visto, e tinham-se sentido atraídos um pelo outro desde que eram adultos e tinham atingido a idade em que os rapazes reparam nas raparigas e as raparigas reparam nos rapazes, logo da primeira vez que se encontraram viram o íntimo um do outro, ambos sabiam isso, sem que nada fosse dito, e ontem à noite conversaram pela primeira vez e começaram a conhecer-se, pois ontem à noite Asle acompanhou o pai Sigvald quando este foi tocar na boda na quinta de Leitet, onde o pai Sigvald também fora tocar no serão e na noite em que conheceu a mãe Silja, quando se casara o fazendeiro de Leitet, e ontem à noite foi a filha deste que se casou, e quando Asle ouviu dizer que o pai Sigvald ia tocar na boda, perguntou-lhe se podia acompanhá-lo
Sim, acho que podes, disse o pai Sigvald
Creio que só posso dizer que sim, disse ele
Não há maneira de evitá-lo, claro, também tu vais ser tocador de violino, disse ele
e o pai Sigvald disse que se tinha de ser assim, então seria assim mesmo, ele era tocador de violino e o filho viria a ser tocador de violino, porque até já se tinha tornado um bom tocador de violino, no que respeitava a arte de tocar, o filho era já um exímio tocador de violino, e quando se é tocador de violino, então é-se mesmo, pouco ou nada há a fazer em relação a isso, ele era tocador de violino e o filho também seria, o que não era de surpreender, pois tanto o seu pai, o velho Asle, como o seu avô paterno, o velho Sigvald, tinham sido ambos tocadores de violino, ser tocador de violino parecia ser o destino da família, ainda que ser tocador de violino fosse muitas vezes considerado uma fatalidade, bem, talvez fosse assim, dizia o pai Sigvald, mas quando se é tocador de violino, pois então é-se mesmo, e se era este o caso, não havia nada a fazer, bem, pelo menos na sua opinião, dizia o pai Sigvald, e quando lhe perguntavam de onde vinha aquela sua inclinação, ele respondia que provavelmente vinha da dor, de algum lamento, ou simplesmente da dor em si, já que ao tocar podia aliviar a dor e evadir-se, e a evasão podia transformar-se em alegria e felicidade, por isso havia que tocar, por isso ele tinha de tocar, ao que parece, muitas pessoas guardariam dentro de si alguma desta dor e por isso muita gente gostava de ouvir tocar, talvez assim fosse porque a música elevava a vida deles e lhes dava estatura, quer estivessem numa festa fúnebre ou a celebrar uma boda ou as pessoas se encontrassem simplesmente para dançar e festejar, mas então porque eram eles os únicos a que tinham de carregar o destino de tocadores de violino, bem, bem, ele não sabia dizer porquê, claro que não, nunca tivera sequer muitos conhecimentos ou sabedoria, mas era um bom tocador de violino desde rapazinho, da idade do Asle, do mesmo modo que Asle também era agora um bom tocador de violino, eram parecidos em tantas coisas, ele e Asle, dizia o pai Sigvald, e tal como ele acompanhara seu pai, quando era da idade do Asle, e sempre que o avô de Asle ia tocar em bodas, do mesmo modo também Asle ia agora acompanhar o pai e adquirir treino, e mais tarde, no Verão, também ele acompanharia o pai quando este fosse tocar em bailaricos e acompanharia o pai quando este fosse tocar em festas fúnebres, do mesmo modo que ele próprio tinha acompanhado o seu pai em bodas, em festas fúnebres, em bailes, mas será que ele gostava, será que ele gostaria que o filho também viesse a ser tocador de violino, bem, essa era uma questão totalmente diferente, mas também ninguém lhe iria fazer essa pergunta, sobre o destino de um tocador de violino ninguém faz perguntas, o destino de um tocador de violino é apenas isso, o destino, pois aquele que nada possui tem de se arranjar da melhor maneira que pode com as dádivas que Deus lhe concedeu, assim era, assim era a vida
Esta noite vais estrear-te como tocador de violino, disse o pai Sigvald
e acrescentou que podiam ir juntos para a boda e depois de ele ter tocado um bocado, então Asle pegaria no violino e tocaria uma ou duas melodias, disse ele
Eu toco até o baile já estar bem encaminhado e a seguir pegas tu no violino, disse ele
e depois o pai Sigvald e Asle vestiram o seu melhor traje, e a mãe Silja deu-lhes boa comida e aconselhou-os a portarem-se bem e a não beberem em demasia nem a meterem-se em confusões, disse ela, e assim lá foram o pai Sigvald com o estojo do violino numa das mãos e a seu lado Asle e quando tinham percorrido um bom bocado do caminho e estavam perto da quinta de Leitet, o pai sentou-se e sacou do violino, afinou-o e tocou alguns acordes, e a seguir tirou uma garrafa de dentro do estojo e bebeu um bom trago e depois tocou um pouco mais, cuidadosamente, como se estivesse à procura de um caminho, e depois o pai Sigvald passou a garrafa a Asle e disse-lhe que bebesse um trago e Asle bebeu e em seguida passou-lhe o violino e disse-lhe que aquecesse um pouco o violino e que aquecesse também os dedos, tocava-se sempre melhor seguindo este ritual, em que uma pessoa ia tocando devagar e cada vez melhor, quase desde o nada e sempre para melhor, desde o nada e até algo grandioso, disse ele e então Asle sentou-se e tentou exceder-se a si próprio a tocar quase desde o nada, começou a tocar quase cá no fundo e depois, lentamente e tão baixo quanto podia, foi tocando cada vez melhor
Sim, é isso mesmo, disse o pai Sigvald
Já és um tocador-mestre, disse ele
Estás a exceder-te a ti próprio a tocar, como se nunca tivesses feito outra coisa, disse ele
e depois o pai Sigvald bebeu outro trago da garrafa e Asle passou-lhe o violino e o pai Sigvald passou a garrafa a Asle e este bebeu outro trago e depois ficaram ambos ali sentados sem dizer nada
O destino de um tocador de violino é uma fatalidade, disse então o pai Sigvald
Sempre ausente, sempre a viajar, disse ele
Sim, disse Asle
Sim, sempre ausente dos seus entes queridos e de si próprio, disse o pai Sigvald
Sempre a entregar-se aos outros, disse ele
Sempre, disse ele
Nunca se é inteiramente dono de si próprio, disse ele
Sempre a tentar completar os outros, disse ele
e depois o pai Sigvald disse que para ele o seu amor pela mãe Silja e por Asle era tudo na vida e que não queria andar sempre em viagem a tocar, mas que outra coisa poderia fazer, o que possuía ele, nada, nem uma única coisa, a não ser o violino e ele próprio e o seu malfadado destino de tocador de violino, disse o pai Sigvald, em seguida pôs-se de pé e disse que era melhor seguirem para a quinta de Leitet para fazerem aquilo que era suposto fazerem e pelo que eram pagos e depois disse a Asle que podia ficar ali pelo pátio e fazer o que lhe apetecesse, e quando a noite avançasse e o baile já estivesse encaminhado, ele podia entrar e pôr-se num lugar onde o pai pudesse vê-lo e acenar-lhe-ia para fazer uma pausa, e então pegaria Asle no violino
Depois tocas uma ou duas melodias, disse o pai Sigvald
E com isto também tu terás iniciado a tua carreira de tocador de violino, disse ele
Foi assim que o teu avô, de quem recebeste o nome, se iniciou como tocador de violino, diz ele
E agora também tu te vais iniciar da mesma maneira, diz ele
E foi assim que eu me iniciei quando era jovem, diz ele
e Asle apercebe-se de algo turvo na voz do pai Sigvald, olha para ele e vê-o ali de pé com lágrimas nos olhos e Asle vê as lágrimas começarem a correr-lhe pela cara abaixo e as faces dele endurecem e depois ele leva as costas da mão aos olhos e enxuga as lágrimas
Agora vamos embora, disse o pai Sigvald
e Asle via à sua frente as costas do pai Sigvald, à medida que ele caminhava e constatou que o seu longo cabelo, preso na nuca com um pedaço de cordel, o cabelo que fora negro, tão negro como o cabelo de Asle, se tornara bastante grisalho, e também ficara muito ralo e o pai Sigvald caminhava um pouco pesadamente, e já não era muito jovem nem era muito velho, e Asle ouve uma voz que diz que eles não podem ficar ali e abre os olhos e à sua frente vê um chapéu negro e alto sobre um rosto coberto de barba e um homem parado com um longo bastão numa das mãos e uma candeia na outra, que segura mesmo em frente da cara de Asle e ele está a olhar fixamente para Asle
Não podes ficar a dormir aqui encostado, diz o Homem
Vocês não podem dormir aqui, repete o Homem
e Asle repara que o Homem traz vestido um longo sobretudo negro
Vocês têm de se ir embora, diz o Homem
Sim, diz Asle
Mas nós não sabemos para onde ir, diz ele
Não têm nenhum sítio onde ficar, diz o Homem
Não, diz Asle
Então devia levá-los comigo e metê-los no calabouço, diz o Homem
Fizemos alguma coisa de mal, diz Asle
Por enquanto não, diz o Homem
e em seguida dá uma gargalhada e baixa a candeia
Já não estamos no Verão, diz o Homem
Estamos no fim do Outono, escuro, frio e húmido, diz ele
Mas onde podemos encontrar alojamento, diz Asle
Estás a perguntar-me, diz o Homem
Sim, diz Asle
Há muitas hospedarias e albergues em Bjørgvin, diz o Homem
Só aqui na rua Inste há várias, diz ele
Hospedarias e albergues, diz Asle
Sim, diz o Homem
E podemos arranjar lá alojamento, diz Asle
Claro que sim, diz o Homem
Mas onde, diz Asle
Há uma além, um pouco mais adiante, do outro lado da rua, diz o Homem
e olha e aponta
Na parede está escrito Albergue, diz ele
Mas terão de pagar a vossa estadia, claro está, diz ele
Vão lá, diz ele
e depois o Homem afasta-se e Asle vê Alida agachada ali ao lado, a dormir com o queixo enterrado no peito, e como é natural eles não podem ficar aqui, neste frio, nesta escuridão, nesta chuva, agora no fim do Outono, mas só um pouco mais, deverão poder descansar só um pouco mais, isso far-lhes-á bem e Asle está tão cansado, sente-se tão cansado que podia deitar-se ali e adormecer e ficar ali deitado a dormir durante uma semana e depois também ele se agacha e põe a mão no cabelo de Alida e o cabelo dela está encharcado e ele passa-lhe a mão pelo cabelo e mete-lhe os dedos entre os cabelos e fecha os olhos e sente-se tão pesado e tão cansado, então vê o pai Sigvald sentado a tocar na sala de estar em Leitet, e o seu longo cabelo, negro e grisalho, está preso na nuca com um pedaço de cordel e o pai Sigvald levanta o arco e os acordes ecoam no ar e em seguida ele levanta-se e bebe um trago da garrafa e bebe um trago da caneca, em seguida o pai Sigvald olha em volta, avista Asle e acena-lhe de longe e depois passa-lhe o violino
Agora é a tua vez, Asle, diz o pai Sigvald
Pois, assim é que é, diz ele
E também tens de beber um pequeno gole, diz ele
e estende a garrafa a Asle e este bebe um valente trago e a seguir bebe outro trago e estende a garrafa ao pai Sigvald e este passa a caneca a Asle
Também deves beber um gole de cerveja, diz ele
Um tocador de violino tem de tomar algo para lhe dar forças, diz o pai Sigvald
e Asle toma um gole de cerveja e passa novamente a caneca ao pai Sigvald e depois senta-se no banco e coloca o violino no colo e dedilha as cordas para afinar o violino, em seguida põe o violino ao ombro e começa a tocar e não soa nada mal e ele continua a tocar e as pessoas começam a dançar e ele continua a tocar e esmera-se e não quer desistir, ele só tem de continuar, ele tem de expelir a dor que o martela, tem de conseguir atenuar a dor, atenuá-la e aliviá-la até que esta se evada e suba na sua leveza, ele conseguirá que isso aconteça e continua a tocar e a tocar e encontra o ponto em que a música se eleva e ecoa e fica a pairar, sim, sim, a pairar, sim, e então ele já não precisa de continuar, e então a música fica a pairar e espalha-se só por si própria e forma o seu próprio mundo e todos os que conseguem ouvir ouvem isso, e Asle levanta o olhar e vê-a ali parada, ela está ali, ele vê Alida ali parada, ela está ali de pé com o seu longo cabelo negro e ondulante e os seus olhos negros e tristes. E também ela consegue ouvir. Ela ouve o eco a pairar e fica a pairar também. Ela está calmamente parada e a pairar. E depois pairam ambos juntos, agora pairam juntos, ela e ele. Alida e Asle. E ele vê o rosto do pai Sigvald e sorri, nota-se felicidade no rosto dele e o pai Sigvald leva a garrafa à boca e bebe mais um valente trago. E Asle deixa a música tocar. E Alida está com ele. Nos olhos dela ele percebe que ela está com ele. E Asle deixa pairar o eco. E precisamente quando o eco está a esmorecer ele levanta o arco e deixa de novo o eco a pairar no vazio. E Asle levanta-se e estende o violino ao pai Sigvald e este envolve Asle num abraço e aperta-o contra si. E depois o pai Sigvald faz um trejeito com a cabeça, ajeita o violino no ombro, marca o tempo com os pés e começa a tocar. E Asle vai ter com Alida, onde ela se encontra com o seu longo cabelo negro e os seus grandes olhos negros e tristes. E Alida vai ter com ele, e Asle coloca a mão no ombro dela e saem ambos e nenhum deles diz uma palavra até se encontrarem cá fora no pátio e ali permanecem e Asle retira a mão
Tu és o Asle, diz Alida
E tu és a Alida, diz Asle
e ali permanecem ambos sem dizer nada
Nunca falámos um com o outro antes, diz Asle
Não, diz Alida
e ali permanecem ambos e não dizem nada
Mas eu já te tinha visto antes, diz Alida
Também eu a ti, diz Asle
e ali permanecem ambos sem dizer nada
Tocaste tão bem, diz Alida
Muito obrigado, diz Asle
Eu sou governanta aqui na quinta de Leitet, diz Alida
E hoje estive a servir na boda, mas agora que o baile começou já estou livre, diz ela
A minha mãe também foi governanta aqui, diz Asle
Vamos dar um passeio, diz ele
Com prazer, diz Alida
E ali à frente, ali está a Colina de onde se pode avistar o mar, diz ela
Vamos até lá, diz ela
Sim, com prazer, diz Asle
e afastam-se ambos a caminhar lado a lado e Alida aponta e diz que além à frente fica a Colina de onde se pode avistar o mar, quando se está na Colina não se pode ver a quinta de Leitet nem as suas casas, e ainda bem que é assim, diz ela
Não tens irmãos, diz Alida
Não, diz Asle
Eu tenho uma irmã que se chama Oline, diz Alida
Mas eu não gosto da minha irmã Oline, diz ela
E tu, tens mãe e pai, diz ela
Sim, diz Asle
Eu tinha mãe e pai, mas o meu pai partiu já há muitos anos e não voltou mais, diz Alida
Ninguém sabe o que lhe aconteceu, diz ela
Sim, diz Asle
Desapareceu simplesmente, diz Alida
e sobem a Colina e sentam-se sobre uma grande pedra plana que existe ali
Deixa-me dizer-te uma coisa, diz Alida
Sim, diz Asle
Quando estavas a tocar, diz ela
Sim, diz Asle
Quando estavas a tocar, ouvi o meu pai a cantar, diz Alida
Quando era pequena, ele cantava sempre para mim, diz ela
E é a única coisa de que me lembro sobre o meu pai Aslak, diz ela
Lembro-me da voz dele, diz ela
E a voz dele parecia-se com a música que tu tocas, diz ela
e em seguida senta-se mais perto de Asle e ficam sentados sem dizer nada
Então tu és a Alida, diz ele
Sim, eu sou a Alida e o que tem isso, diz ela
e a seguir solta uma gargalhada e diz que tinha apenas três anos quando o pai Aslak desapareceu para nunca mais voltar e que a recordação do canto dele é a única recordação que ela conserva do pai e que, sem compreender porquê, diz ela, quando ouviu Asle a tocar, ouviu a voz do pai Aslak na música dele, diz ela e encosta a cabeça no ombro de Asle e começa a chorar e depois põe os braços à sua volta e aperta-se contra ele e Alida fica ali sentada a chorar junto de Asle e ele não sabe bem o que dizer, o que fazer, o que fazer com as mãos, o que fazer consigo mesmo e então põe os braços à volta de Alida e mantém-na apertada contra si e depois ficam sentados a sentir-se mutuamente e sentem que ouvem a mesma coisa e sentem que agora pairam juntos e que estão juntos a pairar e no seu âmago Asle sente que se preocupa muito mais com Alida do que consigo próprio e que deseja para ela tudo o que de bom existe neste mundo
Amanhã hás-de descer até ao Ancoradouro, diz Asle
E lá posso tocar mais para ti, diz ele
Podemos sentar-nos no banco no exterior do Ancoradouro e eu posso tocar para ti, diz ele
e Alida diz que sim, que irá lá
E depois podemos subir novamente até aqui, até à nossa Colina, diz ela
e Asle e Alida levantam-se e ficam ali parados de olhos baixos e mal olham um para o outro e depois pegam na mão um do outro e deixam-se ficar ali simplesmente
E além ao longe vê-se o mar, diz Alida
É belo olhar para o mar, diz Asle
e depois não dizem mais nada pois já está tudo combinado e não há nada mais que tenha ou precise de ser dito, de certo modo foi tudo dito e foi tudo combinado
Tu tocas e o meu pai canta, diz Alida
e Asle estremece e desperta e olha para Alida
O que disseste, diz Asle
e Alida desperta e olha para Asle
Eu disse alguma coisa, diz ela
Não, talvez não tenhas dito nada, diz Asle
Que eu saiba não, diz Alida
Tens frio, diz Asle
Um pouco, diz Alida
Não, acho que não disse nada, diz Alida
Ouvi-te dizer algo sobre o teu pai, mas talvez tenha sido apenas algo que eu sonhei, diz Asle
Algo sobre o meu pai, diz Alida
Pois, devo ter sonhado, diz ela
Tu sonhaste, diz Asle
Sim, diz Alida
e Asle põe a mão no ombro dela
Era Verão, diz ela
Estava calor, diz ela
E eu ouvi-te tocar, estavas sentado no banco em frente do Ancoradouro a tocar e era tão lindo de se ouvir, e depois chegou o meu pai caminhando e começou a cantar e tu tocavas, diz ela
Temos de nos levantar e ir embora daqui, diz Asle
Não podemos ficar aqui sentados a dormir, diz ele
Também dormiste, diz ela
Sim, parece que passei um pouco pelas brasas, diz ele
e Asle levanta-se
Temos de encontrar alojamento, diz ele
e a seguir Alida também se levanta e estão ambos ali parados e depois Asle levanta os seus fardos e põe-nos sobre os ombros
Temos de continuar, diz ele
Mas para onde, diz ela
Parece que há um sítio a que chamam albergue aqui nesta rua, do outro lado da rua, e parece que podemos conseguir um quarto lá, diz Asle
E parece que esta rua se chama rua Inste, diz ele
e Alida levanta os seus sacos de rede e fica ali parada, Alida, com o longo cabelo negro encharcado e colado ao longo do peito e com os olhos negros que brilham no escuro e com o seu ventre enorme, fica ali parada e olha calmamente para Asle, e ele baixa-se e pega no estojo do violino e depois começam a percorrer a rua devagar na escuridão, ao frio, à chuva, agora no fim do Outono, e atravessam a rua
Além, por cima daquela porta, está escrito Albergue, diz Asle
Sim, tu é que sabes, diz Alida
e Asle avança e abre a porta e olha para Alida
Anda, vem, diz ele
e Alida avança devagar e passa por Asle e entra na casa e Asle entra atrás dela e lá dentro no escuro ele avista um homem, que está sentado a uma mesa e sobre a mesa brilha uma vela
Bem-vindos, diz o Homem
e olha para eles
Tem um quarto para nós, diz Asle
Talvez seja possível, diz o Homem,
e olha para eles e o olhar dele pousa no enorme ventre de Alida
Muito obrigado, diz Asle
e o Homem continua a olhar para o enorme ventre de Alida
Bem, talvez seja possível, diz o Homem
Muito obrigado, muito obrigado, diz Asle
e o Homem continua a olhar para o ventre de Alida
Vamos lá ver, diz o Homem
e Alida olha para Asle
Por quanto tempo, diz o Homem
Não sabemos, diz Asle
Podem ser alguns dias, diz o Homem
Sim, diz Asle
Acabaram de chegar a Bjørgvin, diz o Homem,
e ele olha para Alida
Sim, diz ela
E de onde vêm, diz o Homem
De Dylgja, diz Asle
De Dylgja, bem, diz o Homem
Então podem alugar um quarto, diz ele
Porque vocês parecem estar muito molhados e frios, e não podem andar rua acima rua abaixo no frio da noite, à chuva, e no fim do Outono, diz ele
Obrigado, diz Asle
e o Homem debruça-se no livro que está em cima da mesa à sua frente e Alida olha para Asle e pega-lhe no braço, olha para Asle em modo suplicante e este não percebe nada, por isso ela puxava por ele à medida que se encaminhava para a saída e Asle deixa-se ir e o Homem levanta os olhos do livro e pergunta se afinal eles não vão ficar ali, mas se acharem que precisam de um sítio para ficar, então podem simplesmente voltar, diz ele e Alida abre a porta e Asle segura a porta e depois eles saem e ficam ali na rua e Alida diz que ali naquele albergue eles não podiam ficar, será que ele não reparou em nada, será que ele não reparou no olhar do homem que estava ali sentado, será que ele não percebeu o que aquele olhar queria dizer, será que ele não vê nada, não repara em nada, será que é só ela que consegue ver, diz Alida e Asle não percebe o que ela quer dizer
Mas tu estás tão cansada e estás tão molhada e tão fria, e eu tenho de encontrar alojamento para ti, diz Asle
Sim, diz Alida
e Asle e Alida começam a descer devagar a rua Inste debaixo da chuva e chegam a um largo aberto e continuam a avançar, passo a passo, e depois de terem contornado um aglomerado de casas conseguem ver o Vågen pela abertura ao fundo da rua e à medida que avançam já conseguem ver o Cais, e à frente deles caminha agora uma velha mulher, e Asle não a tinha visto, mas agora vê-a caminhar à frente deles, ela protege-se do vento e do frio e da chuva, e ela continua a caminhar, mas de onde é que ela saiu, pois parece ter aparecido ali de repente, deve ter saído de alguma transversal algures à frente deles e ele não deu pela sua chegada, assim deve ter acontecido
Aquela ali à nossa frente, de onde saiu ela, diz Alida
Eu ia a pensar na mesma coisa, diz Asle
Apareceu ali de repente, diz ele
Sim, de repente vi-a a caminhar ali à nossa frente na rua, diz Alida
Estás muito cansada, muito cansada, diz Asle
Sim, diz Alida
e a velha mulher que caminha à frente deles pára e saca de uma grande chave e introdu-la numa fechadura e abre a porta de uma casinha que se encontra despercebida na escuridão e franqueia a porta de entrada e Asle diz que aquela parece ser a primeira casa a que eles se dirigiram à procura de alojamento, diz ele e Alida diz que sim, que lhe parece ser essa a casa e Asle apressa-se a deitar a mão ao puxador da porta e abre a porta
Tem um quarto para nós, diz ele
e a Mulher volta-se lentamente para Asle e a água escorre do seu lenço e cai-lhe pela cara abaixo e ela segura uma candeia em frente de Asle
Ah és tu outra vez, diz a Mulher
Tu já hoje perguntaste isso, diz ela
E não te lembras do que eu disse, diz ela
Tens má memória, diz ela
Quarto para vocês, diz ela
Sim, precisamos de alojamento para esta noite, diz Asle
Não tenho alojamento para vocês, diz a Mulher
Quantas vezes tenho de repeti-lo, diz ela
e Asle segura a porta e faz sinal a Alida com a cabeça e ela vem colocar-se na entrada
Então são vocês os dois que necessitam de alojamento, diz a Mulher
Compreendo bem, diz ela
Deviam ter pensado nisso antes, diz ela
Antes de se terem metido nesta situação, diz ela
Não podemos andar na rua de um lado para o outro toda a noite, diz Asle
Não, mas quem é que o pode fazer debaixo desta chuva no fim do Outono, diz a Mulher
Agora não, debaixo desta chuva e com este frio não se pode, diz ela
Agora no fim do Outono em Bjørgvin não, diz ela
E não temos para onde ir, diz Alida
Deviam ter pensado nisso antes, diz a Mulher
Mas na altura não pensaste duas vezes, diz ela
e olha para Alida
Na altura tinhas outra coisa em mente, diz ela
Ao longo da vida já vi muitas outras como tu, diz ela
Vêm-me parar aqui a casa constantemente, diz ela
E querem vocês que eu lhes dê alojamento, diz ela
A ti e ao bastardo que vais parir, diz ela
O que é que pensam de mim, diz ela
Que espécie de pessoa pensam que eu sou, diz ela
Não, ponham-se já a andar, diz ela
e em seguida a Mulher levanta no ar o braço que tem livre e espanta-os dali
Mas, diz Asle
Não há mas nem meio mas, diz a Mulher
e olha para Alida
Já tive muitas outras como tu aqui em casa, diz a Mulher
Outras como tu, diz ela
Tipas como tu não merecem mais nada do que ficar ao relento e ao frio, não há outra hipótese, diz ela
Vejam bem, meter-se numa situação destas, diz ela
Vejam bem, e não pensou duas vezes, diz ela
e Asle põe um braço à volta dos ombros de Alida e guia-a até ao vestíbulo e a seguir fecha a porta atrás dela
Não, sabes que mais, diz a Mulher
Oh não, quem diria que eu também teria de passar por isto, Jesus me valha!, diz ela
e Asle pousa os fardos e o estojo do violino ali no vestíbulo e depois avança até junto da Mulher, agarra na candeia e puxa-a da mão da Mulher e depois detém-se e segura a luz diante de Alida
Isto vai custar-te caro, diz a Mulher
Deixa-me passar, diz ela
e Asle barra-lhe o caminho
Entra lá, diz ele
e Asle abre uma das portas que dão para o vestíbulo e introduz a luz dentro da sala
Entra para a cozinha, diz ele
e Alida fica parada
Entra lá, entra para a cozinha, diz Asle
e Alida transpõe a porta que ele abriu e repara que há uma vela apagada sobre uma mesa junto da janela e então ela aproxima-se da mesa, pousa os sacos de rede sobre a mesa e depois acende a vela e senta-se num banco junto da mesa a olhar para a porta aberta e vê que Asle permanece no vestíbulo e tapa a boca da Mulher com a mão, e então Asle fecha a porta e Alida estica as pernas debaixo da mesa e respira pesadamente algumas vezes e depois põe as mãos em volta da chama da vela e aquece-se, o calor é tão agradável que uma súbita sensação de bem-estar espalha-se pelos seus braços e pernas, e vêm-lhe lágrimas aos olhos e ali sentada olha para a chama e sente-se tão cansada, tão cansada, e tem tanto frio, tanto frio, e depois Alida levanta-se devagar e leva consigo a vela e vai até junto da salamandra e repara que há uma caixa com lenha junto da salamandra, põe lenha dentro do fogão e acende-o e fica ali de pé junto da salamandra, mas está tão cansada que mal sabe onde se encontra e sente fome, mas comida têm eles, muita comida, em breve poderá comer qualquer coisa e a salamandra começava a aquecer aos poucos e ela mantém os braços por cima da salamandra e volta a respirar pesadamente e depois repara que há um divã encostado à parede e aproxima-se do divã e repara que há um casaco e um cobertor sobre o divã e ela cobre a cabeça com o casaco e embrulha-se no cobertor e deita-se e fecha os olhos e ouve a chuva a cair na rua, depois apaga a vela e ouve um silvo, como que provocado por uma roda, e parece-lhe um som de rodas a raspar contra as pedras da calçada e ela vê o nevoeiro a dissipar-se e o Sol a assomar-se e o mar estende-se calmo e cintilante à sua frente e ela vê Asle, que caminha pela rua e arrasta atrás de si uma carroça sobre a qual leva alguns barris e Alida pousa a mão sobre a farta cabeleira negra da criança que tem a seu lado e faz-lhe festas nos cabelos e chama-lhe meu querido pequeno Sigvald, e depois canta uma canção ao menino, ao pequeno Sigvald, é uma das canções que o pai Aslak cantava para ela, e que ela canta agora para o pequeno Sigvald, para o seu menino, e ele olha para ela com os seus grandes olhos negros e no ponto em que o fiorde se abre para o mar ela avista um barco com um mastro alto e comprido que baloiça à deriva no mar calmo e cintilante, pois no ar não bule um sopro de vento, e depois ela transforma-se numa estrela brilhante que mergulha no escuro e desaparece e fica ausente e depois ela ouve uma voz e abre os olhos e vê Asle ali parado
Estavas a dormir, diz ele
Sim, parece-me que adormeci, diz Alida
e vê que Asle está ali ao lado do divã com uma vela na mão e à luz da chama ela apenas vê os olhos negros dele, e nos olhos dele ela vê a voz do pai Aslak quando este cantava para ela, quando ela era ainda pequenina, antes de ele ter desaparecido para sempre
Vamos comer qualquer coisa, diz Asle
Eu tenho fome, diz ele
Eu também tenho alguma fome, diz Alida
e levanta-se e senta-se na borda do divã, agora já se sente calor na cozinha, calor e conforto, e o cobertor descai quando ela se senta e os seios caem-lhe pesados sobre o enorme ventre redondo e a seguir ela vê Asle despir-se e sentar-se ao seu lado e ele põe-lhe o braço em volta dos ombros e depois deitam-se juntinhos um ao lado do outro, tapados com o cobertor
Vamos só descansar um pouco primeiro, diz Asle
Tu não tens dormido quase nada já nem sei há quanto tempo, diz Alida
Não, diz ele
Deves estar muito cansado, diz ela
Sim, diz Asle
E esfomeado, também deves ter fome, diz Alida
Sim, tenho muita fome, diz ele
Primeiro descansamos um pouco, depois comemos, diz ele
e Asle e Alida estão ali deitados ao lado um do outro, abraçados um ao outro e Asle vê o barco a sulcar as águas, a avançar firmemente, e além ao longe, além vê-se a cidade de Bjørgvin, vêem-se as casas da cidade de Bjørgvin, já estão quase a chegar, agora chegaram finalmente, e ele vê Alida sentada na proa e o barco a deslizar e agora está tudo bem, e eles conseguiram, conseguiram chegar a Bjørgvin e agora a vida deles vai começar e ele vê Alida levantar-se e a sua enorme figura domina a proa, e Asle sente que ele, com a sua compleição, não tem assim tanta importância, o importante é que pairam juntos nas nuvens, isso aprendeu ele a tocar violino, faz parte do destino de um tocador de violino saber estas coisas e, para ele, pairar nas nuvens tem o nome de Alida