Ales aconchega o cobertor de lã em volta do seu corpo, pois faz um pouco de frio, acha ela, na cadeira onde se encontra sentada a olhar para a janela quase totalmente coberta por cortinas brancas e finas, só uma nesga estreita em baixo deixa entrar a luz, ela vê sem olhar, por assim dizer, e então vê passar alguém do lado de fora da janela, mas ela não consegue ver quem é, no entanto alguém passou, isso viu ela, e é aqui que ela mora, numa pequena casa tão perto da rua quanto seria possível, acabou por ser nesta casa onde ela viria a viver toda a sua vida, pensa ela, e se não fossem as cortinas, todos poderiam ver onde ela estava sentada, e possivelmente até poderão vê-la ali sentada, mas não com nitidez, só conseguem perceber que está alguém ali sentado, pensa ela, mas então faz algum mal que alguém a veja ali sentada? não, nenhum, não faz mal nenhum, pensa ela, não, não deve fazer mal, pensa ela, tentando aconchegar ainda mais o cobertor de lã em volta do corpo e depois pensa, tu és a Ales, sim, és a velha Ales, porque agora também tu, Ales, envelheceste, pensa ela e agora estás aqui sentada na tua cadeira e tentas manter-te quente, pensa ela, e a seguir pensa que tem de tentar levantar-se e deitar mais lenha na salamandra, então põe-se de pé e aproxima-se da salamandra e abre a portinhola e deita um pouco de lenha lá dentro, antes de voltar para a sua cadeira, senta-se, enrola-se no cobertor de lã, aconchega-o mais em seu redor e fica ali sentada a olhar em frente, na direcção da janela da sua sala de estar sem ver, por assim dizer, e então vê Alida, a sua mãe, sentada na sala de estar lá em Vika, precisamente como Ales está agora aqui sentada na sua sala de estar, e vê que Alida se levanta, devagar e com rigidez, e caminha lentamente ao longo do soalho com passinhos cambaleantes, mas para onde vai ela? o que vai ela fazer? irá sair? irá até à salamandra que está no canto? e Ales levanta-se também e caminha com passinhos cambaleantes e rígidos ao longo do soalho e vê que Alida abre a porta da cozinha e então Ales abre a porta da sua cozinha, e Alida entra na sua cozinha e Ales entra na sua

Também eu envelheci, diz Ales

Os anos passaram tão depressa, diz ela

E eu nunca vi Alida depois de velha, ainda em vida, mas agora vejo-a muito frequentemente, diz ela

Não dá para entender, diz ela

Agora que fiquei velha, diz ela

Velha pois, diz ela

Não devo falar, diz ela

Muitas vezes entretenho-me aqui sozinha, mas de vez em quando eles vêm visitar-me, algum dos filhos, algum dos netos, talvez, diz ela

Tirando isso, ando por aqui às voltinhas com passinhos cambaleantes, ando para aqui a falar comigo mesma, diz ela

e Ales vê Alida sentar-se na cadeira junto da sua mesa de cozinha e Ales vai sentar-se na cadeira junto da sua mesa de cozinha, a sua bela cozinha, pensa Ales, aqui na cozinha é onde ela se sente melhor, pensa ela, e pensa sempre assim, pensa assim amiúde, sempre, pensa sempre que a cozinha é a divisão mais confortável de toda a casa, pensa Ales, a sua cozinha não é lá muito grande mas que é confortável, lá isso é, pensa ela, e tem mesa e cadeiras, e armários e fogão, precisamente como tinha a da sua mãe, em casa dela, a um canto, estava o fogão preto que ela acendia para ter calor e cozinhar, e Ales tem um fogão bastante parecido com o que a mãe tinha, e depois tem a mesa no meio do soalho e a bancada ao longo da parede, e lá havia ainda a sala de estar e a alcova ao fundo da sala, a alcova de que ela se recorda tão bem, onde elas dormiam, ela e a sua Irmã-mais-nova, mas isso, isso foi há muito tempo, é algo que já não existe, por assim dizer, é algo que nunca existiu apesar de ter existido e a Irmã-mais-nova jaz ali sem cor e sem vida e o seu rosto pálido, a boca aberta, os olhos semiabertos nunca irão desaparecer da sua mente, ela irá ver sempre essa imagem, pois a Irmã-mais-nova adoeceu e morreu, tudo se passou muito depressa, ela tinha bastante vivacidade e era alegre e de repente adoeceu e morreu, e além disso, o irmão mais velho, Sigvald, que era na realidade seu meio-irmão, também se foi embora quando ela ainda era uma rapariguinha e nunca mais regressou, e ninguém soube para onde ele tinha ido, mas ele tocava violino, e ela nunca ouvira ninguém tocar violino melhor do que o seu meio-irmão Sigvald, ele sim sabia tocar, e isso é praticamente a única coisa de que ela se lembra dele, o pai dele também tocava violino, aquele de quem se falava, o tal Asle, assim se chamava ele, e ao que parece foi enforcado em Bjørgvin, era incrível que enforcassem pessoas naquela época, em tempos idos, era incrível que fizessem essas coisas, que fossem assim, pensa ela e a mãe voltara a casar-se com o pai dela, Åsleik, sim, assim aconteceu, assim se dizia e assim se contava, e o pai chamava-se Åsleik mas era conhecido por Viken, por ser dono do complexo em Vika, a casa, o celeiro, o ancoradouro, o molhe, o barco, ele era dono de tudo aquilo, tinha adquirido tudo aquilo, era um tipo empreendedor, e depois Alida chegou lá como governanta e levava consigo o filho Sigvald, que ela tinha tido com Asle, aquele que era tocador de violino e foi enforcado, assim se passou, ela chegou lá depois de Asle ter sido enforcado, pelo menos era o que se dizia, mas a mãe por sua iniciativa nunca contara nada acerca disso, nunca quisera falar sobre Asle e sobre aquilo que aconteceu, pensa Ales, mas ela algumas vezes parecia tentar insinuar qualquer coisa, não fazia perguntas mas dava a entender, por assim dizer, e então a mãe ficava muito calada e afastava-se dela, que ela se lembrasse, nem uma única vez a mãe mencionara o nome de Asle, eram outras pessoas que lhe contavam coisas sobre ele e faziam-no sempre que tinham oportunidade, era como se todos fizessem questão de lhe contar com que espécie de indivíduo a mãe dela tinha privado, e o que era verdadeiro e não era verdadeiro naquilo que ela ouvia era difícil de saber, naturalmente, pois em Dylgja contava-se que Asle tinha sido tocador de violino, tal como o pai dele também tinha sido, e que ele tinha violentado a mãe Alida e a tinha engravidado, quando ela era ainda uma miúda, e que depois a tinha levado consigo, após ter matado previamente a mãe dela, ou seja, a sua avó materna, isso era o que se dizia, mas a ser verdade, bem, ninguém sabia, e era improvável que tivesse sido assim, isso deviam ser coisas que as pessoas inventavam e diziam, pensa Ales, e além disso, segundo se dizia, ele teria estrangulado um tipo da sua idade para lhe roubar o barco, diziam as más-línguas, isso teria acontecido junto do ancoradouro em Dylgja, onde o seu pai morara, e posteriormente, em Bjørgvin, ele teria estrangulado diversas outras pessoas, até ter sido preso e enforcado, assim se contava, mas verdade não podia ser, a sua mãe Alida nunca poderia ter convivido com uma pessoa dessas, um monstro desses, nunca na vida, não era possível, se ela bem conhecera a mãe Alida, esta jamais poderia ter convivido com um tal assassino, pensa Ales, e se havia pessoas dessa natureza, se havia assassinos, então justificava-se realmente que existissem forcas, dizia o povo, e forcas ainda deveria haver, pelo menos uma em cada beco, dizia-se, e o que era verdadeiro e não era verdadeiro acerca do que Asle teria ou não teria feito, bem, ela não sabia, mas ele não podia ter sido um assassino, ele era pai do seu irmão mais velho, do seu meio-irmão, Sigvald, pensa Ales, ele nunca poderia ter tirado a vida à sua avó materna, porque também se dizia que a tinham encontrado morta na cama pela manhã e que ela podia muito bem ter morrido como as pessoas morrem habitualmente, ela podia simplesmente ter adormecido para sempre, calma e pacificamente, podia ter tido uma morte tranquila e normal, natural, assim deve ter acontecido, pensa Ales e depois pensa que não deve limitar-se a ficar ali sentada, há sempre algo para fazer, uma coisa ou outra, pensa ela, e olhando para a janela da cozinha vê que Alida está ali de pé, no meio do soalho, parada diante da janela, e a imagem dela é tão nítida como se fosse possível pousar-lhe a mão no ombro, e deverá ela tentar fazê-lo, pensa Ales, não, não deve fazê-lo, ela não pode pousar a mão sobre o ombro da mãe, morta desde há muito, pensa Ales, não, parece-lhe que está a tornar-se uma velha louca, mentalmente insana, pensa ela, alguém com quem mal se pode dialogar, mas a velha Alida continua ali presente, e isso deixa-a tão enfurecida como perturbada, pensa Ales, e será que ela se atreve a dizer-lhe alguma coisa, pensou tantas vezes perguntar à mãe se era verdade, tal como se dizia, que ela se tinha atirado ao mar, ela não acredita nisso, no entanto dizem que ela o fez e que a encontraram com a maré baixa, dizem, mas será que ela agora pode ficar aqui sentada a falar com uma pessoa que já está morta há tanto tempo, não, não, tão louca assim ainda não está, independentemente do que possam pensar e dizer dela, e o que não hão-de pensar e dizer os filhos acerca dela, ela bem sabe o que eles dizem acerca dela uns aos outros, e talvez até a terceiros, que ela já está velha demais para viver sozinha, dizem eles, mas por outro lado também nenhum deles a quer ter a morar consigo em sua casa, seja como for, nenhum deles lhe disse que quer isso, e cada um deles já tem o suficiente com que se ocupar, mas não é que Alida ainda ali está, pensa ela, claro que têm, eles já têm bastante com que se ocupar, quanto mais terem de se incomodar com ela, e por que raio é que estará a mãe Alida ali parada diante da janela, ali diante da janela na cozinha dela, pensa Ales e se a mãe vai ficar ali na cozinha dela, então ela tem de voltar imediatamente para a sala de estar, pensa Ales, ela não pode permanecer na mesma sala com a mãe, morta desde há muito, pensa Ales e vê que Alida se vira e olha directamente para ela e Alida pensa que agora a sua filhinha, a sua boa menina, a sua querida e amada filha também envelheceu, como é possível que os anos também tenham passado por ela tão depressa, tão assustadoramente depressa, pensa Alida, mas Ales teve filhos, seis filhos, e todos eles cresceram e saíram-se todos bem na vida, não há dúvida, cada um deles, tanto as raparigas como os rapazes, portanto a vida sorriu à sua filha Ales, pensa Alida e vê a pequena Ales a subir os degraus da alcova ao fundo da sala lá em Vika e depois pára no último degrau e olha directamente para a mãe e diz-lhe que durma bem e Alida responde-lhe dorme bem, tu também, minha linda menina, tu és a melhor menina do mundo, diz Alida e depois Ales sobe e desaparece algures no interior escuro da alcova, debaixo do seu cobertor, no seu cantinho. E Alida permanece ali um instante. E depois Alida sai da sala e vai pôr-se à porta de casa, e vê Åsleik parado lá em baixo junto do barco, ele não é especialmente alto, nem forte, mas tem uma grande cabeleira, e a barba grande e ainda negra, se bem que tanto o cabelo como a barba já tenham partes grisalhas aqui e além, tal como aconteceu com o seu próprio cabelo negro, pensa Alida ao vê-lo ali parado, o Åsleik, a olhar para o seu barco, ele está ali parado a reflectir certamente sobre alguma coisa, pensa Alida, ele foi sempre bom para ela, o Åsleik, pensa ela, o que lhes teria acontecido a ela e ao pequeno Sigvald se não tivessem encontrado Åsleik, no sítio onde estavam sentados, exaustos e miseráveis, ali no Cais em Bjørgvin, ela com as costas encostadas a um ancoradouro, tão famintos e exaustos quanto era possível estar, estavam ali sentados, quando apareceu Åsleik, de repente, ele apareceu ali simplesmente e ficou parado de pé a olhar de cima para ela

Mas és tu, Alida, disse Åsleik

e Alida levantou os olhos

Não te lembras de mim, disse ele

e Alida tentava lembrar-se de quem poderia tratar-se

Åsleik, disse ele

Sou o Åsleik, o que vive em Vika, disse ele

Vika em Dylgja, disse ela

Sim, claro, disse ele

e depois deixou-se ficar ali apenas sem dizer nada

Pois, não nos temos encontrado com muita frequência, eu sou bastante mais velho do que tu, mas lembro-me de ti desde que eras uma rapariguinha, diz ele

Eu já era adulto e tu, uma rapariguinha, diz ele

Não te lembras de mim, diz ele

Sim, claro que sim, diz Alida

e de facto ela lembra-se bem de Åsleik, mas apenas como um dos homens adultos que paravam por ali e falavam uns com os outros, e ela lembra-se de que ele morava em Vika, ele e a mãe, mas não muito mais do que isso, pensa ela, pois ele era bem mais velho do que ela, talvez uns vinte e cinco anos mais velho, ou à volta disso, talvez mais, portanto ele fazia parte do grupo dos adultos, pensa ela

Mas porque estás aí sentada, diz Åsleik

Uma pessoa tem de sentar-se em qualquer lado, diz Alida

Não tens sítio onde morar, diz ele

Não, diz ela

Moras na rua, diz ele

Não tenho outro remédio, já que não tenho um tecto onde abrigar-me, diz Alida

Tu e o teu filho, diz ele

Não temos outra solução, diz ela

E estás tão magra, também não tens nada para comer, diz ele

Não, diz ela

Hoje ainda não comemos, diz ela

Ora levanta-te lá, vem, vem comigo, diz ele

e a seguir Åsleik segura-a por baixo de um braço e ajuda-a a pôr-se de pé e ali se encontra Alida com o pequeno Sigvald num dos braços e no chão, a seus pés, estão os dois fardos que ela carrega consigo e Åsleik pergunta-lhe se são as coisas dela e ela responde que sim e ele pega então nos fardos e diz-lhe que venha e depois afastam-se ambos caminhando ao longo do Cais em Bjørgvin, ele, Åsleik de Vika e ela, Alida com o pequeno Sigvald ao colo, caminham lado a lado ao longo do Cais em Bjørgvin e nenhum deles diz o que quer que seja e então Åsleik entra num beco e Alida segue atrás dele e vê as suas pernas curtas que caminham com passos compridos, e vê as abas do seu casaco negro a bater-lhe nas coxas e vê o seu boné negro puxado bem para baixo na nuca e nas mãos ele segura os dois fardos dela e nisto Åsleik pára, olha para ela e faz-lhe sinal com a cabeça na direcção de um outro beco e depois começa a dirigir-se para o outro beco e Alida segue-o, segurando junto ao peito o pequeno Sigvald que dorme o seu sono mais seguro e mais doce e então Åsleik abre uma porta e mantém-na aberta para ela passar e Alida entra e olha para baixo e depois olha para cima e vê um salão comprido e estreito com muitas mesas e sente um cheiro a carne fumada e presunto frito e o cheiro é tão apetitoso que ela sente que as pernas se lhe enfraquecem, mas aperta o pequeno Sigvald contra o peito e controla-se, sim controla-se, e fica ali firmemente de pé, mas um cheiro assim tão apetitoso a comida nunca ela deve ter sentido antes, pensa Alida, e afinal porque é que Åsleik a trouxe para aqui, como se ela tivesse dinheiro para comprar comida, ela não tem nem um cêntimo, pensa Alida, e vê que as pessoas estão sentadas a comer, e um aroma tão apetitoso a carne fumada e a presunto frito com ervilhas nunca ela sentiu antes, como também nunca sentiu tanta fome e tanto desejo de comer, pelo menos que ela se lembre, mas será que tem dinheiro para comprar algo para comer, não, nenhum, ela não tem nem um cêntimo, e vêm-lhe lágrimas aos olhos e começa a chorar ali onde se encontra, com o seu longo cabelo negro, e com o pequeno Sigvald contra o peito

Mas porque choras, diz Åsleik

e ela não responde

Por nada, diz ele

Vem, vamos sentar-nos, diz Åsleik

e levanta a mão e aponta para o banco junto da mesa mais próxima e Alida vai até lá e senta-se e também sente que o ambiente ali dentro está quente, quente e confortável, e depois aquele aroma incrivelmente apetitoso a carne fumada e a presunto frito com ervilhas, sim, porque também se sente um aroma a ervilhas cozidas, e se ela ao menos tivesse algum dinheiro para comprar comida, então teria comprado e teria comido e comido, pensa Alida e repara que Åsleik aproxima-se do balcão e olha para as costas dele, o longo casaco negro, o boné negro enterrado até à nuca, e lembra-se dele de Dylgja, se fizer um esforço lembra-se, mas lembra-se dele de uma forma vaga, ele é muito mais velho do que ela, um homem adulto, mas ela lembra-se dele lá, na companhia de outros homens, com as mãos sempre enfiadas nos bolsos das calças, é do que ela consegue lembrar-se, dele parado na conversa com outros homens, todos eles com bonés semelhantes e com as mãos enfiadas nos bolsos das calças, todos do mesmo modo, pensa Alida e vê que Åsleik se vira e caminha na sua direcção com dois pratos cheios de carne fumada e presunto frito com ervilhas e rutabaga e pastéis de batata, sim, porque no prato também há pastéis, vejam só isto, pensa Alida, quem poderia acreditar que ela viria a viver um dia como este, e ela vê que tanto a boca como os grandes olhos azuis de Åsleik sorriem largamente, todo ele é um enorme e franco sorriso, todo aquele homem sorri, e os pratos brilham e fumegam e todo o rosto de Åsleik como que se ilumina quando pousa um prato diante de Alida e pousa uma faca e um garfo ao lado do prato e depois diz que agora está na altura de ambos saborearem a comida, em todo o caso ele tem fome, e ela parece estar completamente esfomeada, diz Åsleik, e pousa o outro prato do outro lado da mesa e pousa a faca e o garfo ao lado do prato e Alida pousa o pequeno Sigvald nos joelhos

Agora vamos provar a carne fumada e o presunto frito, que vão saber tão bem, diz Åsleik

Ai vão sim senhor, diz ele

E os pastéis, diz ele

Há muito tempo que não me passavam pela boca, diz ele

Aqui na Casa de Pasto come-se a melhor comida do mundo, diz ele

Mas falta bebida para acompanhar, diz ele

Só a comida não é suficiente, diz ele

mas Alida nem pode esperar, de tão esfomeada que está, ela não consegue ficar sentada simplesmente a olhar para toda aquela boa comida ali à sua frente e corta um bom naco da carne fumada e mete-o na boca e, oh caramba, que sabor, até parece que os olhos lhe vão saltar das órbitas de tão bem que lhe sabe, e também tem de provar um pouco dos pastéis de batata, pensa Alida e corta um bocado de pastel e mergulha-o no molho de gordura e a seguir também espeta o garfo num pouco de presunto frito e leva-o à boca, deixando escorrer um pouco de gordura ao longo do queixo mas e o que tem isso, pensa Alida e enche o peito de ar, pois nunca antes provou comida tão boa como esta, disso ela tem a certeza, pensa Alida e mastiga e saboreia e depois corta mais um bom bocado de carne fumada e mete-o na boca com os dedos e mastiga e inspira e expira e vê que Åsleik está de volta e pousa à frente dela uma caneca cheia de cerveja espumante e pousa outra caneca ao lado do seu próprio prato e depois ergue a sua caneca na direcção dela e brinda e Alida ergue a sua caneca, que é bastante pesada e a ela faltam-lhe as forças de tal modo que mal a pode levantar, mas acaba por conseguir erguer então a caneca na direcção de Åsleik e brinda igualmente e depois vê Åsleik meter a caneca à boca e beber um valente trago e a espuma da cerveja espalha-se-lhe pela barba e Alida leva a sua caneca à boca e beberica ligeiramente a cerveja pois, para dizer a verdade, ela nunca achou que a cerveja tivesse um sabor especialmente apelativo, antes pelo contrário, achava-a amarga ou talvez azeda, mas esta cerveja era adocicada e clara e leve, simplesmente uma doçura, pensa Alida, provando novamente a cerveja e pensa que sim, esta cerveja, sim, é uma boa cerveja, pensa Alida e vê Åsleik sentar-se e cortar para si um belíssimo naco de carne fumada, depois mete-o na boca e fica ali sentado a mastigar

Excelente, diz Åsleik

Aqui na Casa de Pasto cozinham boa comida, diz ele

Sim, a carne estava bem fumada e boa de sal, diz ele

E tu o que achas, diz ele

A melhor que já comi, diz Alida

Quase que podia dizer o mesmo, diz Åsleik

E os pastéis também eram bons, diz ele

Pois eram, diz Alida

Sim, os melhores que alguma vez comi, diz ela

e vê que Åsleik se serve de um bom bocado de pastel de batata e o mete na boca e mastiga e mastiga e entre as mastigadelas vai dizendo excelentes, estes pastéis são excelentes, eles sabem cozinhar boa comida aqui na Casa de Pasto, diz ele, não é possível fazerem-se melhores pastéis de batata do que estes, melhores pastéis do que estes não se comem em parte alguma, diz ele enquanto Alida prova a rutabaga, sim, porque no prato também há rutabaga, e as ervilhas, e tudo aquilo tem um sabor igualmente ímpar, nunca algo que ela tivesse comido lhe soubera tão bem, excepto talvez as costeletas na casa da mãe Herdis na véspera de Natal, pensa Alida, mas não, nem mesmo isso lhe tinha sabido tão bem como esta carne fumada, estes pastéis de batata, tudo isto deve ser o melhor que ela já saboreou na sua vida, pensa Alida, e Åsleik diz que sim isto está muito apetitoso, enquanto esmaga um bocado de pastel no molho de gordura do presunto frito e mastiga o pastel embebido em gordura com bocadinhos de presunto frito

Bem, afinal eu estava com fome, diz ele

E a isto é o que eu chamo verdadeira comida, diz ele

e Alida come e suspira e sente que o pior da fome já está a passar, e agora trata apenas de saborear, ainda que já não lhe saiba tão bem como as primeiras dentadas, obviamente, mas ela não tem dinheiro para pagar, logo, como pode deixar-se estar simplesmente aqui sentada a saborear esta excelente comida, a melhor comida que há em Bjørgvin, se não tem dinheiro para pagá-la, mas afinal como pode ela comportar-se deste modo, pensa Alida, oh não, pensa ela, imagine-se eu a comportar-me deste modo, pensa Alida, não, ela não deve comer mais, não deve, a fome mais premente já está mitigada, mas ela já não comia há diversos dias, só bebia água, e comer como agora comeu, mal podia acreditar, pensa Alida, mas agora, agora só tem de escapar-se daqui de qualquer modo, sem que ninguém a veja, pensa ela, mas como irá consegui-lo, pensa Alida e Åsleik levanta o olhar para ela

A comida não era boa, diz ele

e olha para ela com os grandes olhos azuis, um pouco confuso e sem compreender

Sim, era, diz Alida

Mas, diz ela

Sim, diz Åsleik

e Alida não diz nada

O que se passa, pergunta ele

É que eu, diz ela

Sim, diz ele

Eu não tenho dinheiro para pagar, diz ela

e Åsleik levanta os braços de tal maneira que a gordura da comida salta do garfo e da faca e os grandes olhos azuis dele olham-na divertidos

Mas tenho eu, diz ele

e bate com o punho fechado no tampo da mesa, de tal modo que faz saltar ligeiramente os pratos e as canecas em cima da mesa, e todos os olhares se voltam para eles

Claro que tenho, diz Åsleik

e sorri francamente

É que este homem aqui tem dinheiro, diz ele

E sou eu que convido, naturalmente, e como pudeste pensar que fosse de outro modo, diz ele

O que iriam pensar se eu não convidasse para comer uma conterrânea com fome, ou, melhor dizendo, faminta, diz ele

Que espécie de homem seria eu, diz ele

Nem penses, eu pago, diz ele

e Alida diz obrigada, muito obrigada, mas isso é demasiado, diz ela

e Åsleik diz que não, não é demasiado, ele fez uma boa venda de peixe e tem o bolso cheio de notas, por isso, eles podem vir comer carne fumada e presunto frito e pastéis de batata e ervilhas cozidas e rutabaga e o que quer que seja na Casa de Pasto durante dias e meses, se assim o desejarem, diz Åsleik e levanta a sua caneca e bebe uma boa porção de cerveja e depois enxuga a boca e passa a mão pela barba e inspira profundamente e depois olha para Alida e pergunta-lhe por que razão ela chegou a esta situação tão desastrosa e ela diz pois e ficam de novo sentados em silêncio e depois recomeçam a comer e Alida também prova a cerveja e Åsleik diz-lhe que tem o barco atracado no Cais e que amanhã vai viajar para o Norte, diz ele, vai voltar para Dylgja, e que se ela quiser ir com ele e voltar para casa, então pode fazê-lo, e caso ela não tenha sítio onde dormir esta noite, então pode ficar a dormir na cabina do barco dele, diz Åsleik, pois lá há um beliche para se deitar e também um cobertor para se cobrir, diz ele e Alida olha para ele e não sabe o que pensar nem o que dizer mas também não sabe onde há-de passar a noite aqui em Bjørgvin, e será que ela sabe para onde há-de ir, se regressar a Dylgja, não, em absoluto, pois de qualquer modo o pai Aslak não deve estar lá e para casa da mãe ela não quer ir, ela nunca mais voltará a pôr os pés no Penhasco, ainda que a situação dela e do pequeno Sigvald possa ser má, isso jamais, jamais, pensa Alida, enquanto levanta a caneca e bebe mais um gole de cerveja

Pois, depois de uma comida tão salgada e apetitosa há que beber bem, diz Åsleik

e esvazia a sua caneca e diz que vai buscar outra, e que também pode trazer uma para ela, mas ela ainda tem tanta cerveja na caneca que certamente pode ficar para depois, diz ele

Mas, tal como disse, se quiseres dormir no meu barco, podes fazê-lo, diz ele

e ficam ambos sentados em silêncio

Foi pena o que aconteceu com a tua mãe, diz ele

Com a minha mãe, diz Alida

Sim, que ela tivesse morrido tão repentinamente, diz Åsleik

e isto deixa Alida preocupada, não muito, mas deixa-a preocupada, então a mãe morreu e ela não tinha conhecimento disso, se calhar tanto faz, pensa ela, mas não deixa de ser triste, pensa Alida, sentindo-se inundar de tristeza e vêm-lhe lágrimas aos olhos

Sim, eu estive no funeral dela, diz Åsleik

e Alida põe as mãos sobre os olhos e pensa que a mãe já morreu e se calhar tanto faz, mas ela não deve pensar assim, porque a mãe morreu e afinal de contas era mãe dela, não, isso é horrível, pensa Alida

O que se passa, pergunta Åsleik

Estás a pensar na tua mãe, diz ele

Sim, diz Alida

Pois, foi triste que ela tivesse partido tão repentinamente, diz ele

Ela ainda não era muito velha, diz ele

E também não era uma pessoa doente, diz ele

Não se compreende muito bem isso, diz ele

e ambos ficam ali sentados em silêncio um bom bocado e Alida pensa que agora, uma vez que a mãe morreu, bem pode regressar simplesmente a Dylgja, e talvez até possa voltar a morar no Penhasco, agora que a mãe partiu, pensa ela, pois tem de ir morar em algum sítio, para algum lado terão de ir ela e o pequeno Sigvald, pensa ela

Podes pensar no assunto, diz Åsleik

Sim, pensa se queres regressar a Dylgja comigo, diz ele

e Alida vê Åsleik levantar-se e é tal o desembaraço com que ele se levanta e atravessa a sala em direcção ao balcão e Alida pensa que em algum sítio terão de dormir ela e o pequeno Sigvald, pois ela está tão cansada, tão cansada, que poderia adormecer de imediato ali mesmo na cadeira onde está sentada, pensa ela, e agora que a mãe morreu ela bem pode regressar a casa, mas não deixa de ser horrível que a mãe tenha morrido, isso é demasiado triste e ela já estava tão cansada, tão cansada, pensa Alida, pois fartou-se de andar, primeiro desde Stranda até Bjørgvin e depois andou às voltas pelas ruas de Bjørgvin, fartou-se de palmilhar e quase não dormiu, e quanto tempo caminhou ela, quanto tempo passou desde o seu último sono, ela não sabe, palmilhou e andou à procura de Asle, foi isso que fez, mas Asle não aparece em nenhum lado e como é que ela vai agora arranjar-se sem ele, pensa Alida, talvez ele tenha viajado para Dylgja, é possível, mas não, ele nunca faria isso sem ela, pois Asle não é uma pessoa desse tipo, isso sabe ela, pensa Alida, mas onde se terá ele metido, ele só tinha de ir a Bjørgvin para tratar de alguns assuntos, dissera ele, mas quando ela o viu parado à entrada não é que teve o pressentimento de que nunca mais voltaria a vê-lo, teve sim, isso é certo, ela viu Asle parado à entrada e toda ela pressentiu que nunca mais voltaria a vê-lo, e nesse momento até lhe pediu que não fosse, sim pediu-lhe, porém ele disse que tinha mesmo de ir e o facto de ela lhe contar o seu mau presságio, de que nunca mais voltaria a vê-lo, não conseguiu demover Asle, isso não devia ter passado de um mero pressentimento seu, pensou ela posteriormente, repetidas vezes, mas Asle não regressou, passaram dias, passaram noites, e Asle não regressou e ela não podia simplesmente ficar ali sentada em casa, sem comida, sem nada de nada e por isso empacotou todos os seus haveres em dois fardos e pôs-se a caminho de Bjørgvin, e o trajecto a pé era longo, e o peso dos dois fardos que carregava mais o pequeno Sigvald era demasiado, e comida para o caminho não levava, mas água para beber encontrava nos ribeiros e nos rios, e andou e andou e desde que chegou a Bjørgvin deu voltas e mais voltas pelas ruas à procura de Asle e por vezes perguntava por ele e as pessoas limitavam-se a olhá-la, abanavam a cabeça e diziam algo do estilo, homens com esses sinais há-os aos montes em Bjørgvin, portanto é impossível saber a quem ela se refere, era o que lhe diziam, e por fim Alida ficou tão cansada e achou que já não conseguia dar nem mais um passo e os olhos fechavam-se-lhe uma vez e outra e então ela sentou-se no chão com as costas encostadas à parede de um ancoradouro ali no Cais em Bjørgvin e agora está aqui sentada e acabou de comer a comida mais deliciosa que deve haver no mundo e sente-se tão cansada, tão cansada, pensa Alida, e aqui há calor, e aqui sabe bem estar, pensa ela e os olhos fecham-se-lhe e então vê Asle parado à entrada da casa em Stranda, dizendo que não vai ficar ausente durante muito tempo, ele só tem um assunto a tratar em Bjørgvin, diz ele, e depois, assim que tiver resolvido esse assunto, voltará logo para junto dela, diz Asle, e ela diz que ele não deve ir, ela tem um pressentimento, ele não deve ir, porque então nunca mais voltará a vê-lo, é o que ela sente, diz Alida e Asle diz-lhe que hoje é o dia, hoje ele irá a Bjørgvin, mas voltará para junto dela tão depressa quanto possível, diz Asle e nisto ela ouve Åsleik dizer que a caneca já está cheia outra vez e ela abre os olhos e vê que Åsleik pousa a caneca de cerveja em cima da mesa, senta-se, olha-a de frente e diz bem, tal como ele disse, se ela não tem mais nenhum sítio para onde ir, então pode dormir no barco dele, tal como já tinha dito, diz ele e Alida olha para ele e assente com a cabeça e então ele levanta a caneca e diz que então vamos brindar a isso, diz Åsleik e Alida ergue também a sua caneca e eles brindam e dizem saúde e ambos bebem um pouco e ficam sentados em silêncio, ambos estão saciados e satisfeitos, e ambos estão cansados e quentes depois de toda aquela boa comida e da cerveja, e Åsleik diz que efectivamente já está a ficar com um pouco de sono, logo, não seria despropositado ir passar pelas brasas, diz ele e o barco, bem, felizmente está atracado no Cais muito perto daqui, não fica muito longe ir até lá, portanto talvez seja melhor irem para bordo descansar um pouco, pelo menos dormir uma sesta, diz Åsleik e Alida diz que também está muito cansada e que até poderia adormecer ali na cadeira onde está sentada, diz ela e Åsleik propõe que acabem de beber primeiro e depois podem ir dormir uma sesta, diz ele e Alida diz que está de acordo e bebe um pouco de cerveja e vê que Åsleik despeja a sua caneca com um par de grandes goles e Alida diz-lhe então que ele pode beber o resto da cerveja dela, se quiser, diz ela e assim Åsleik mete também a caneca dela à boca e bebe o resto da cerveja num só longo gole e depois levanta-se e Alida pega no pequeno Sigvald ao colo e Åsleik pega nos dois fardos e encaminha-se para a porta e Alida segue atrás dele, mas está tão cansada que mal consegue dar um passo e pensa que apenas tem de olhar para as costas de Åsleik e os olhos dela convergem e então vê Asle ali sentado na cadeira, eles estão numa boda e ele está a tocar, e a música dele eleva-se, e eleva-o, e eleva-a, e assim voam juntos com a música, voam no espaço vazio e estão juntos como um pássaro em que cada um deles é uma asa, e voam pelo céu azul como se fossem um só e tudo é azul e leve e azul e branco e Alida abre os olhos e vê as costas de Åsleik à sua frente e o gorro dele enterrado até à nuca e ele caminha ao longo do Cais e nisto Alida pára e ali, diante do pé dela, está caída uma pulseira, oh tão dourada e tão azul e tão bonita, uma pulseira tão bonita como esta nunca ela viu, não, em ouro amarelo do mais puro e com pérolas azuis do mais azul que há, pensa Alida, baixando-se e apanha-a, oh tão bonita, uma coisa assim tão bonita certamente nunca ela viu, tão dourada e tão azul, pensa ela, e imaginar, imaginar que a encontrou caída ali no Cais, mesmo diante do seu pé, e segura a pulseira diante dos olhos, mas porque estaria a pulseira ali caída, pensa ela, certamente alguém a teria perdido, pensa ela, mas agora pertence-lhe, de agora em diante aquela pulseira dourada e azul passará a pertencer-lhe definitivamente, pensa Alida e segura a pulseira na mão que tem livre e pensa que é inacreditável que alguém possa perder uma pulseira assim tão bonita, e que possa dar tão pouca importância ao facto de a ter perdido, pensa ela, mas agora, agora a pulseira é dela, e ela nunca irá perdê-la, pensa Alida, pois ela já sabe que se trata de um presente de Asle para ela, pensa ela, e como pode ela pensar deste modo, isso não é possível, então ela acha uma pulseira no meio do Cais em Bjørgvin e pensa logo que se trata de um presente de Asle, mas é que é mesmo, aquela pulseira é um presente de Asle para ela, ela tem a certeza disso, pensa Alida, e também tem a certeza de que nunca mais, nunca mais voltará a ver Asle, pensa ela, e tem a certeza disso, porém não deve saber como e por que razão pode ter a certeza destas coisas, apenas tem, pensa Alida e apercebe-se então de que Åsleik já avançou um bom bocado ao longo do Cais e vê-o parar e olhar para ela, enquanto ela fecha a pulseira dourada e azul, e imaginar, imaginar que está na posse de uma pulseira assim tão bonita, a pulseira mais bonita do mundo, pensa Alida, e vê que Åsleik parou e aponta e lhe pergunta vês além sobre aquele promontório, é a Forca, assim se chama, é além que enforcam pessoas, diz ele, e ainda não há muito tempo, apenas há um par de dias foi lá enforcado um homem de Dylgja, diz ele, mas isso sabes tu bem, diz ele, claro que sabes, diz Åsleik, porque o tal homem, sim, o Asle conhecias tu muito bem, diz ele e Alida não percebe o que ele quer dizer ao apontar para longe, além à frente, na Forca, foi enforcado o Asle, eu vi-o com os meus próprios olhos, eu estive lá e assisti quando ele foi enforcado, evidentemente estava lá, dado que já me encontrava em Bjørgvin nessa altura, diz Åsleik, evidentemente, diz ele, ora, mas isso sabes tu de certeza, se calhar também lá estavas, diz ele, pois não é ele o pai do teu miúdo, claro que deve ser assim, diz ele, pelo menos é isso que dizem, que deve ser ele, eu acho que é, diz Åsleik, e se não tentares afastar-te de Bjørgvin também tu poderás ser enforcada, diz ele, por isso agora vamos tratar de descer para o meu barco, diz ele, antes que venham prender-te também e enforcar-te, diz Åsleik e Alida ouve o que ele diz e não ouve e está tão cansada que não entende nada e Åsleik diz que foi horrível ver um indivíduo da sua aldeia ser enforcado e ficar ali pendurado com a corda à volta do pescoço, mas se era verdade aquilo que diziam, que ele teria tirado a vida a uma pessoa, pelo menos a uma pessoa, então terá sido justo, diz Åsleik, e a mãe dela, o que é que realmente lhe aconteceu, diz ele, para ter morrido tão repentinamente, e no dia seguinte já ela, Alida, e Asle tinham desaparecido, como era isso possível, e aquele que queria reaver o Ancoradouro do pai, e que pediu a Asle para se mudar de lá, pois é aquilo que deve ter acontecido, pelo menos era o que diziam, porque foi ele encontrado no mar já sem vida, afogado, como aconteceu isso afinal, diz ele, mas acerca de tudo isto ninguém sabia nada ao certo, mas o que aconteceu a uma velha parteira aqui de Bjørgvin foi com certeza algo muito diferente, acerca disso parecia não haver qualquer sombra de dúvida, ela foi morta, estrangulada, asfixiada, disso não havia dúvida, segundo se conta, diz Åsleik, e aquele que faz uma coisa destas, bem, não merece outra coisa se não ser enforcado diante dos olhos da multidão, tal como morreu Asle, diz ele, vejam só, fazer uma coisa destas, diz Åsleik e Alida não ouve o que ele diz, ela só vê Asle, que caminha à sua frente ao longo do Cais e carrega os dois fardos e lhe diz que agora têm de sair de Bjørgvin, simplesmente têm de pôr-se a andar, e depois têm de sentar-se e descansar um pouco, e a seguir têm de comer bem, ele conseguiu arranjar comida muito boa, diz ele e ela vê as costas de Åsleik que percorre o Cais e Alida pressiona os dedos em volta da pulseira dourada e azul, a mais bela pulseira que há no mundo, e vê que Asle pára e olha para ela e quando ela chega junto dele, ele diz que têm de tentar andar um pouco mais depressa até terem saído de Bjørgvin, e depois já poderão ir mais devagar, depois já terão todo o tempo do mundo, depois já poderão descansar e comer e viver calmamente, diz Asle, recomeçando a caminhada e Alida vê que Åsleik pára e lhe diz, ali está o meu barco, uma boa embarcação digo eu, diz Åsleik e Alida vê-o saltar para bordo por cima da amurada, depois Åsleik larga os fardos dela no convés e fica ali de pé e estende-lhe os braços e ela passa-lhe o pequeno Sigvald e continua a apertar a pulseira entre os dedos, a mais bela pulseira que há no mundo, tão dourada, tão azul, e Åsleik mete o pequeno Sigvald debaixo do braço e nisto ouve-se um grito de cólera e Alida não aceita a mão que Åsleik lhe estendeu e salta sozinha por cima da amurada para bordo do barco e fica parada e em segurança no convés e o pequeno Sigvald grita e berra e oferece tanta resistência quanto pode e Åsleik entrega-lho e Alida aperta-o contra o peito e embala-o dum lado para o outro e o pequeno Sigvald deixa de berrar e volta a respirar calmamente contra o peito dela

Pois esta é a minha embarcação, diz Åsleik

Com ela vou pescar, e levo o pescado para Bjørgvin, diz ele

E já ganhei bastante dinheiro, diz ele

e bate no bolso das calças e as pálpebras de Alida fecham-se e ela vê Asle sentado ali na popa, segurando a cana do leme e os olhares deles cruzam-se e é como se sentissem que os olhos dela são dele e os dele são dela e os olhos de ambos abrangem a extensão do mar, abrangem a extensão do firmamento e ela e ele e o barco são como um único movimento brilhante no firmamento brilhante

Não, não deves adormecer agora, diz Åsleik

e Alida abre os olhos e aquele movimento brilhante desvanece-se e transforma-se em nada e é tudo e ela sente a mão de Åsleik pousar sobre o seu ombro e ele diz que foi horrível o que aconteceu a Asle, mas que evidentemente não é culpa dela, o que pode ela fazer em relação a isso, diz ele, isso até ele pode perceber, mas talvez haja outros que pensam e crêem de modo diferente, por isso, se ela ficar aqui por Bjørgvin, bem pode vir a ser suspeita de ter tido alguma ligação com tudo aquilo, é mesmo muito provável, diz ele, portanto ele quer aconselhá-la a não permanecer por mais tempo em Bjørgvin, diz ele, mas na cabina do barco dele ela estará segura até mais ver, diz Åsleik e condu-la ao longo do pavimento do convés e diz-lhe que a latrina fica no armário com porta por detrás da cabina, depois de tudo o que comeram e beberam é natural que ela bem possa precisar de saber onde se encontra a latrina, diz ele, ele próprio talvez precisasse de usar a latrina agora mesmo, diz ele e abrindo a porta da cabina, diz-lhe aqui é a minha casota no mar, nada mal, se me é permitido dizer, diz Åsleik, que entra e acende uma lamparina, e na penumbra Alida mal consegue ver que há um banco e uma mesa, e Åsleik diz então que é abominável a situação para a qual a arrastou o tal Asle, diz ele, é incrível, mas agora ele já teve o seu castigo e essa é a vingança, diz ele, agora ele já pagou com a própria vida, diz Åsleik e Alida mal consegue ver que há um banco e uma mesa e também uma pequena salamandra e senta-se no banco e pousa o pequeno Sigvald contra a antepara, ele dorme agora em paz e sossego, e ela continua a apertar entre os dedos a bela pulseira dourada e azul, a mais bela pulseira que há no mundo, pensa Alida e vê que Åsleik trata de acender a salamandra

Temos de ter aqui um pouco de calor, diz ele

e Åsleik mete lascas de madeira e lenha na salamandra e depois acende o fogo que começa a crepitar imediatamente e a seguir diz que tem de fazer uma visita à latrina e sai e Alida tira a pulseira e segura-a diante de si, oh tão bonita, pensa ela, tão dourada e tão azul e tão bonita, deve ser de ouro puro e depois estas pérolas azuis, tal como estava o céu no momento em que ela e Asle eram o céu, tal como estava o mar no momento em que ela e Asle eram o mar, tão douradas e tão belas e tão azuis são as pedras, pensa Alida e a pulseira é um presente de Asle, disso ela tem a certeza, pensa Alida, ela simplesmente sabe que é assim, tão certo quanto é possível ter certezas, pensa ela e volta a prender a pulseira em volta do pulso, que é onde vai ficar a partir de agora e enquanto ela for viva, pensa Alida, olhando para a pulseira, oh tão bonita, tão bonita, pensa ela e vêm-lhe lágrimas aos olhos, ela está tão cansada, tão cansada e ouve Asle dizer-lhe que ela agora já pode dormir, agora vai descansar bem e por muito tempo, ela deve precisar disso, diz ele e a pulseira é um presente dele, diz ele, para que ela saiba, ainda que não a tivesse recebido directamente dele, o que seria impossível, aquela pulseira é um presente dele para ela, ele deslocou-se até Bjørgvin para comprar anéis para ambos, diz ele, mas entretanto viu aquela pulseira incrivelmente bela e não pôde deixar de comprá-la, e finalmente já lhe foi parar às mãos, se bem que ela a tivesse achado, a pulseira não deixa de ser dele, é um presente dele para ela, diz Asle e depois Alida deita-se no beliche e estica-se, enquanto acaricia a pulseira e ouve Asle perguntar-lhe se ela gosta da pulseira e ela responde que é bonita, é a pulseira mais bonita que ela já viu, ela nunca teria acreditado que pudesse existir uma pulseira assim tão bonita, e por isso ela quer agradecer-lhe, profunda e sentidamente, diz ela, ele é tão generoso, o seu bom rapaz, e agora ela está bem, diz Asle, e ela responde que acabou de deitar-se e vai dormir, e tem um tecto onde abrigar-se, e ali há calor, portanto tudo está bem para ela e para o pequeno Sigvald, diz ela, ele não precisa de preocupar-se, tudo está bem, tudo está tão bem quanto é possível estar, diz Alida e Asle diz-lhe que agora deve dormir bem e Alida diz-lhe que voltarão a falar-se amanhã e depois ela sente-se como que a afundar-se no seu próprio corpo cansado e não vê mais nada e tudo está escuro e um pouco húmido e Åsleik entra e olha para ela, pega num cobertor e estende-o por cima dela e deita um pouco mais de lenha na salamandra, a seguir senta-se na outra ponta do beliche de costas para a antepara, olha em frente e sorri, olha em frente e sorri e depois levanta-se e baixa o pavio da lamparina e faz-se escuro e ele deita-se, totalmente vestido, no pavimento do convés e tudo fica em silêncio e só se ouve o mar que bate levemente e marulha contra o casco do barco, o marulhar, o bater suave e o balouçar do barco juntam-se ao crepitar da lenha que já ardeu quase totalmente e Alida sente o braço de Asle à sua volta e ele sussurra-lhe minha querida, meu único amor, tu e só tu para sempre, diz Asle, apertando-a contra si, passa-lhe a mão pelos cabelos e ela diz-lhe meu amado para sempre, diz Alida e ouve a respiração tranquila do pequeno Sigvald e ouve Asle respirar calmamente e o calor dele transborda nela e respiram ambos muito calmamente e em redor está tudo calmo e depois percebem-se movimentos calmos e ela e Asle movem-se com os mesmos movimentos compassados e tudo está calmo e tudo é azul e é difícil de acreditar e Alida desperta e olha em redor e não sabe onde está e o balouçar é forte, mas o que é isto, onde está ela, pensa ela e senta-se no beliche e apercebe-se de que está num barco e que estão no meio do mar, sim, e na véspera ela foi com Åsleik para o barco dele, pois ela e o pequeno Sigvald tinham de arranjar um sítio onde dormir e foi aqui que ela dormiu e agora está acordada e o pequeno Sigvald está deitado sobre o banco a dormir e ela tinha ido a Bjørgvin para procurar Asle, mas não o encontrou, e então sentou-se algures, mas onde é que está agora, pensa Alida, para onde vai ela, pensa Alida e olha para a pulseira, oh como é bonita, e agora sim, agora já se lembra que achou a pulseira no meio do Cais, oh como é bonita, tão dourada, tão azul, e foi um presente de Asle, ela bem tinha pensado que era, mas na verdade não pode ser, deve apenas tratar-se de uma pulseira que alguém perdeu, mas que é bonita, lá isso é, e agora pertence-lhe, e depois ele, o Åsleik, disse que a mãe dela tinha morrido, e que Asle tinha morrido, que o tinham enforcado, e é claro, é claro que é assim, agora ela está a bordo do barco de Åsleik e vão a navegar em direcção a Dylgja, pois ela não podia simplesmente deixar-se ficar em Bjørgvin, sem um sítio onde morar, sem dinheiro, e então Åsleik disse-lhe que ela podia voltar para casa com ele, para Dylgja, e agora navegam certamente para lá, pensa Alida e dado que não encontrou Asle em Bjørgvin, talvez seja melhor assim, em algum sítio ela tem de ficar, em algum sítio o pequeno Sigvald tem de ficar, não podem ficar em parte nenhuma, e agora que a mãe morreu talvez ela possa voltar para casa e ficar lá, pensa Alida, mas algo a tortura, aquilo de Asle ter morrido, de ter sido enforcado, de ter sido pendurado na Forca, não, não pode ser, Asle está vivo, ele tem de estar vivo, ele está vivo, evidentemente que Asle está vivo, não pode ser de outro modo, pensa Alida, esticando-se e vê que o pequeno Sigvald continua ali deitado a dormir profundamente e em segurança, então abre a porta e sai para o convés, um vento fresco bate-lhe na face e levanta-lhe os cabelos e o forte cheiro a maresia é bom, depois ela volta-se e além, junto à cana do leme, vê o homem que se chama Åsleik, de pé, e que a saúda com um bom-dia, bom-dia não se pode dizer propriamente que é de manhã, pois o dia já vai bem avançado, exclama Åsleik e Alida olha em volta e do lado de fora só vê mar, o mar aberto, e do outro lado vê terra, ilhotas e escolhos, onde nada cresce, onde só se vêem pedras

Navegamos depressa, o vento está a favor, diz Åsleik

E desde Bjørgvin que o vento está de feição, diz ele

E já estamos próximo de Dylgja, diz ele

e nisto uma rajada forte apodera-se da vela e provoca um estrondo

É como ouves, diz ele

O vento está a favor, diz ele

Em breve chegaremos a Dylgja, diz ele

Estamos próximo de Dylgja, diz Alida

Sim, diz Åsleik

Mas então o que vou eu fazer lá, diz ela

Eu pensei, diz ele

Tu pensaste, diz ela

Bem, tu própria escolheste vir comigo, diz Åsleik

Sim, diz Alida

Bem, eu pensei que para ti seria melhor se viesses comigo para Dylgja, pois para onde haverias de ir lá em Bjørgvin, tu e a tua criança, diz ele

e Alida percorre o convés até à popa, e detém-se, e fica ali de pé com as pernas afastadas, ao lado de Åsleik

Mas eu também não tenho sítio para onde ir em Dylgja, diz ela

Tens lá a tua irmã, diz ele

Mas eu não quero ir ter com ela, diz Alida

Mas podes fazê-lo, diz ele

e depois ficam ambos ali de pé e em silêncio com o vento a enfunar as velas e a revolver-lhes o cabelo e de vez em quando o mar galga a proa e invade o convés

Eu não tenho nada a fazer em Dylgja, diz Alida

Não, se tu o dizes, diz Åsleik

Podes deixar-me em terra em qualquer outro sítio, diz ela

Mas então o que vais fazer nesse sítio, pergunta ele

E o que vou fazer em Dylgja, diz ela

e continuam ali de pé em silêncio

Pois, diz Åsleik

e depois não diz mais nada e Alida também não diz mais nada

Pois bem, a minha mãe morreu, bem podia arranjar alguém que cuidasse da casa por mim, diz então Åsleik

e Alida deixa-se ficar ali simplesmente, sem dizer nada

Não respondes, diz ele

É que eu ando à procura de Asle, diz ela

Mas ele, bem, eu contei-te o que lhe sucedeu, diz Åsleik

e Alida ouve o que ele diz mas não ouve, porque é claro que Asle tem de estar algures, outra coisa nem é de pensar, outra coisa não é possível

Sim, eu contei-te ontem o que lhe aconteceu, diz Åsleik

mas não é nada assim, pois isso é só o que ele diz, pensa Alida

Sim, foi o que lhe aconteceu, diz Åsleik

Eu próprio vi, diz ele

e ficam ali calados

Eu vi-o ser enforcado e vi-o lá pendurado, diz ele

e Alida acredita que ela e Asle ainda são um casal de namorados e estão juntos, ele com ela, ela com ele, ela nele, ele nela, pensa Alida e olha na direcção do mar e do céu, e vê Asle, vê que o céu é Asle, e sente o vento, e o vento é Asle, ele está ali, ele é o vento, mesmo que ele não exista, ainda continua ali presente, e então ela ouve Asle dizer-lhe que está ali e que ela o pode ver ali, se ela olhar para o mar então perceberá que ele é o céu que ela vê sobre o mar, diz Asle e Alida olha e vê claramente Asle, mas não vê só Asle, também se vê a si própria no céu e Asle diz-lhe que também está presente dentro dela e do pequeno Sigvald e Alida diz-lhe que sim, que ele está e estará sempre e Alida pensa que agora Asle está vivo somente nela e no pequeno Sigvald, agora é ela que dá vida a Asle, pensa Alida e então ouve Asle dizer que eu estou aí, estou contigo, estarei sempre contigo, portanto não tenhas medo, eu acompanho-te, diz Asle, e Alida olha na direcção do mar ao longe e vê o rosto dele no céu, vê-o como um sol invisível, e depois vê a mão dele erguer-se e acenar-lhe e Asle repete que ela não deve ter medo e diz-lhe que ela agora tem de tomar bem conta de si e do pequeno Sigvald, deve tomar conta de si e do pequeno Sigvald o melhor que conseguir, e que muito em breve se voltarão a encontrar, diz Asle e Alida sente o corpo dele junto do seu e sente que a mão dele lhe acaricia os cabelos e ela acaricia os cabelos dele

Bem, o que dizes, diz Åsleik

e Alida pergunta a Asle o que é que ele acha e ele diz-lhe que deve ser melhor ela acompanhar Åsleik, pois para onde mais pode ela ir, diz ele, para bem dela e do pequeno Sigvald essa é a melhor solução, diz ele

Tomar-te conta da casa, diz Alida

Sim, diz Åsleik

E como é natural, terás comida e alojamento para ti e para a criança, diz ele

Sim, diz Alida

E quanto a ordenado, também posso garantir-te mais do que recebem as outras governantas, sim, diz ele

e Alida ouve Asle dizer-lhe que deve ser o melhor, e ele estará sempre com ela, diz ele, ela não deve ter medo, diz Asle e diz-lhe que se falarão mais tarde e Alida diz-lhe que assim será

Então o que dizes, diz Åsleik

e Alida não responde

Eu moro em Vika como sabes, diz ele

Lá tenho casa e ancoradouro e celeiro, diz ele

E um porto bem seguro, com molhe e tudo, diz ele

E umas quantas ovelhas, e uma vaca, diz ele

E moro lá sozinho desde que morreu a minha mãe, diz ele

Então o que dizes, diz Åsleik

Podes comer carne e peixe, diz ele

E batatas, diz ele

e Alida pensa onde mais pode ela ir morar, portanto ser governanta em casa de Åsleik deve ser o melhor para ela

Sim, para onde mais posso eu ir, diz Alida

Então, dizes sim, diz Åsleik

Acho que sim, diz ela

Deve ser o melhor, diz Alida

Também creio, diz Åsleik

Diria mesmo que sim, diz ele

Não sei que outra coisa posso fazer, diz ela

Ora aí tens, diz Åsleik

Eu preciso de uma mulher em casa, e tu precisas de um sítio onde morar, tu e a criança, diz ele

E já não tarda muito para chegarmos, diz ele

E Vika é um sítio bonito, vais gostar de viver lá, diz ele

e Alida diz que tem de ir à casa de banho e Åsleik diz que fica ali, por detrás daquela porta, diz ele apontando, ali fica a latrina, dentro daquele armário, diz ele e Alida abre a porta, entra e empurra o ferrolho e senta-se, sabe bem poder sentar-se ali a fazer as suas necessidades e sobretudo evitar ter de fazê-las ao ar livre, pensa Alida, que já não compreende muito do que está a acontecer, pensa ela, ela pode tão bem ser governanta em casa de Åsleik como em casa de outro qualquer, ele não deve ser pior do que os outros, pensa ela, talvez ele até seja melhor, é possível, pensa ela, porque, de qualquer modo, para casa da irmã no Penhasco ela não quer ir, como podia ela sequer pensar nisso, porque de facto pensou nisso, lá pensar pensou, em ir a casa da irmã e perguntar-lhe se podia morar em casa dela, como pôde sequer pensar nisso quando era muito melhor ser governanta em casa de Åsleik, antes isso, de longe, pensa Alida, então será governanta em casa de Åsleik, pensa Alida, pois para onde mais há-de ir, agora que Asle morreu, morreu mas continua a estar com ela e ela não compreende nada, pensa Alida e nisto ouve Åsleik começar a cantar, eu sou um marinheiro da vida, canta ele, e o meu barco é o meu mundo, navego sob as estrelas, e estou bem perto do céu, e a mocinha é o meu amor, e o mar é o meu sonho, navego sob as estrelas, tenho a lua como casulo, canta ele, e embora não tenha uma voz canora por aí além, pensa Alida, a voz dele soa alegre e feliz e é agradável ouvi-lo cantar, pensa Alida, e o que é que ele disse, casulo, lua como casulo, parece que foi o que ele disse, seja o significado qual for, pensa Alida e ela terminou de fazer as suas necessidades, mas permanece sentada na latrina, casulo, e o que raio é isso, pensa ela e então ouve Åsleik gritar-lhe adormeceste aí dentro? e ela responde que não e ele diz que ainda bem e depois pergunta-lhe se ela já se decidiu, sim, se quer ser governanta em casa dele e ela não responde e ele diz que muito em breve ela terá de decidir, diz ele, pois acaba de avistar o Grande Farol além à frente no promontório, e isso significa que a viagem de barco até chegarem a Vika já não é longa, diz ele e Alida levanta-se e fica ali de pé, então ouve Asle dizer-lhe que o melhor é mesmo ela aceitar o trabalho como governanta em casa de Åsleik e Alida diz que provavelmente assim é, pois para onde mais há-de ela ir, diz ela e Asle diz que se falarão mais tarde, agora ela deve ir com Åsleik para casa, pois essa deverá ser a melhor solução, diz ele e Alida responde que então assim fará e depois abre o ferrolho da porta, sai para o vento fresco e fecha a porta atrás de si e corre o ferrolho do lado de fora, depois fica ali de pé com as pernas afastadas e os seus longos cabelos negros a esvoaçar ao vento e Åsleik olha para ela e pergunta-lhe o que decidiu

Sim, diz Alida

O que queres dizer, diz Åsleik

Que sim, que aceito o trabalho em tua casa, diz ela

Queres então ser governanta em minha casa, diz ele

Sim, diz Alida

e Åsleik levanta a mão, aponta e diz-lhe olha, olha para além, além no promontório fica o Grande Farol, diz ele e Alida vê um farol largo e alto, de pedras empilhadas umas sobre as outras, erecto em cima de uma elevação sobre um longo promontório e Åsleik diz-lhe que quando avista o Grande Farol, sente-se sempre inundar de alegria, porque isso quer dizer que está de novo muito próximo de casa, diz ele, agora irão contornar o promontório e depois navegarão mais para o interior ao longo da costa e então chegarão a Vika, diz ele, e quando tiverem navegado mais para o interior, aí ela poderá avistar a casa onde vai morar, diz Åsleik, e o ancoradouro, e o molhe, e verá rochedos e colinas e poderá então admirar todo aquele magnífico postal ilustrado, diz ele, e uma vez que agora são dois a bordo seria bom se ela pudesse ajudá-lo a dirigir o barco enquanto ele recolhe as velas, para que possam encostar da melhor maneira e Alida diz que pode tentar, embora nunca tenha dirigido um barco, diz ela e Åsleik pede-lhe que venha junto dele, para que possa mostrar-lhe, diz ele e Alida posiciona-se ao lado de Åsleik e ele diz-lhe como há-de pegar na cana do leme, é assim que Alida deve pegar na cana do leme e tentar mudar a direcção do barco ligeiramente para bombordo e ela olha para ele e ele esclarece que bombordo significa para a esquerda, então Alida move ligeiramente a cana do leme e Åsleik diz-lhe que para mudar a direcção ela terá de imprimir muito mais força e Alida assim faz e a embarcação desliza na direcção do mar e Åsleik diz-lhe que agora ela pode mover a cana do leme para estibordo, que é para a direita, diz ele e Alida assim faz e então a embarcação desliza novamente mais para terra e Åsleik diz-lhe que agora ela deve corrigir e Alida pergunta-lhe o que ele quer dizer com isso e Åsleik diz-lhe que agora deve manter o barco a direito e depois voltar a dirigir a cerca de dez metros do promontório onde fica o Grande Farol e Alida compreende que tem de dirigir a embarcação para aquele lugar, então puxa um pouco para trás a cana do leme e a embarcação desloca-se a direito e Åsleik diz-lhe que ela se saiu verdadeiramente bem e que quando tiverem contornado o promontório ela tomará conta do barco, diz ele, e ele encarregar-se-á das velas, de baixá-las e recolhê-las, e então ela terá de fazer exactamente como ele diz, se ele disser um pouco para bombordo, então ela deve empurrar a cana do leme para longe de si, mas não muito, e se ele disser muito para bombordo, então ela terá de empurrar energicamente a cana do leme para longe de si, diz ele e Alida diz-lhe que assim fará, ela fará exactamente como ele disser e o melhor que ela puder, diz ela e Åsleik vem tomar conta do barco e vê a pulseira dela

Que bonita pulseira, diz ele

Como é possível que tenhas uma pulseira tão bonita, diz ele

e Alida olha para a pulseira, de que se tinha esquecido totalmente, mas como pôde isso acontecer, tão bonita como é, algo mais bonito nunca ela viu, pensa ela

Sim, diz Alida

e ficam ambos em silêncio

É curioso, diz ele então

O quê, diz Alida

Ontem, antes de eu te ter encontrado ali sentada no Cais, cruzei-me com uma mulher que me perguntou se eu tinha visto uma pulseira, diz ele

Ora, lá em Bjørgvin pode-se encontrar pessoas de todo o tipo, diz ele

Pois, diz Alida

Bem, tu entendes, era uma mulher de um certo tipo, diz Åsleik

Isso foi precisamente antes de eu te ter encontrado no Cais um pouco mais à frente, diz ele

Bem, deves calcular o que ela pretendia, diz ele

Mas eu, ora eu, diz ele

Bem, tu entendes, diz ele

Sim, diz ela

Eu julguei que ela tinha perguntado se eu tinha visto a pulseira só para meter conversa, diz ele

E então, depois de eu ter dito, bem, tu entendes, então ela disse que tinha perdido uma pulseira, uma pulseira muito bonita, em ouro amarelo do mais puro e com pérolas muito azuis, diz ele

E depois perguntou-me se eu a tinha visto, diz ele

É uma pulseira que deve ser parecida com essa que trazes, diz ele

Será, diz Alida

Sim, deve ser parecida, diz ele

e Alida pensa que não, que não deve tratar-se da mesma pulseira, pois esta pulseira recebeu-a ela de Asle, Åsleik pode dizer o que quiser, mas esta pulseira é um presente de Asle para ela, porque o próprio Asle lho disse, pensa Alida, e ouve Asle dizer-lhe que a pulseira é um presente meu para ti, diz ele, e essa de quem o Åsleik está a falar, essa roubou-ma, diz Asle, e depois veio a perdê-la e tu, Alida, achaste-a, é assim que é, assim deveria ser, assim queria ele que tivesse sido, diz Asle e Alida diz-lhe que sabe que foi assim, e agora a pulseira repousa no braço dela, e ela vai cuidar dela muito bem, diz ela, não vai perder a pulseira, diz ela, nunca, diz ela, e jamais vai poder agradecer-lhe o suficiente por lhe ter oferecido uma pulseira assim tão bonita, diz Alida

Olha, ali fica Vika, diz Åsleik

e Alida vê um molhe, e um ancoradouro, e depois uma pequena casa e um pequeno celeiro, a casa fica mais acima, um pouco mais abaixo e a um lado fica o celeiro

Sim, aqui fica Vika, diz Åsleik

Aqui é o meu reino, diz ele

E não é bonito, diz ele

Eu acho que este é o lugar mais bonito da Terra, diz ele

Sempre que vejo as casas do meu povoado sinto-me a transbordar de alegria, diz ele

Sim, finalmente cheguei de novo a casa, diz ele

Não é grande e espectacular, mas é o meu lar, diz ele

Aqui em Vika nasci eu e aqui fui criado e aqui hei-de morrer, diz ele

Foi o meu avô paterno que aqui chegou em primeiro lugar, diz ele

Remou até aqui e aqui construiu a sua casa, diz ele

Veio de uma das ilhas dos mares ocidentais, diz ele

E depois adquiriu este pedaço de terra, diz ele

E aqui ficou a morar, diz ele

E chamava-se Åsleik, tal como eu, diz ele

E mais tarde casou-se com uma mulher de Dylgja, diz ele

E tiveram muitos filhos, e um deles, o mais velho, era o meu pai, diz ele

E também ele se casou com uma mulher de Dylgja, e depois nasci eu, e a seguir as minhas três irmãs, que agora são casadas todas elas, e têm casa cada uma delas em sua ilha nos mares ocidentais, diz Åsleik

e depois diz que ele e a mãe moraram sozinhos em Vika, até que a mãe morreu no Inverno passado e ele ficou sozinho e só então percebeu o muito que a mãe tinha feito e quão difícil tinha sido viver sem ela, sem todo o esforço dela, diz ele, só quando alguém nos falta é que nos apercebemos do que tivemos, diz ele, sim, a mãe tinha sempre sido boa para ele, diz ele, mas tinha envelhecido, estava doente e depois acabou por morrer, diz ele

Ora, ora, diz ele

Bem, diz ele

e ficam ambos em silêncio

Ele precisa de auxílio, diz ele

De facto, diz ele

e diz a Alida que quer agradecer-lhe por ela ter aceitado ser governanta em casa dele, quer agradecer-lhe muito por isso, diz ele, mas agora, agora está na altura de ela tomar conta do barco, pois agora há que baixar e recolher as velas e Alida tem de pegar na cana do leme, e então ela vê que Åsleik agarra numa das escotas com grande rapidez e solta-a e a seguir agarra na outra e puxa-a e a vela esvoaça

Um pouco para bombordo, exclama ele

e ele encontra-se do outro lado do barco e puxa uma das escotas e a vela esvoaça ainda mais e depois descai e uma parte da vela encontra-se agora caída no convés

Ainda mais para bombordo, grita Åsleik

e a vela fica pendurada a pique de um dos lados e, em grande velocidade, Åsleik já se encontra do outro lado a puxar as cordas e a praguejar, diabos do inferno, agora ficou pendurada, e ele puxa e resiste e pragueja e grita e a vela solta-se e fica totalmente caída no convés

Puxa ainda mais para bombordo, em direcção ao molhe, não vês onde fica, diz ele

e já se encontra junto da outra vela a desfazer os nós e a puxar e corre de um lado para o outro e recolhe a vela que já está quase em baixo

Puxa ainda mais para bombordo, grita ele

Mais ainda, grita ele

e Alida nota que há ira na voz dele quando ele aparece a correr pelo convés

Endireita, c’os diabos, grita ele

e agarra na cana do leme e endireita o barco

Mantém a direcção, c’os diabos, grita ele

e Åsleik aparece novamente a correr pelo convés e recolhe totalmente a vela

Um pouco para bombordo, não muito, só um bocadinho, grita ele

e a embarcação desliza em direcção ao molhe

Um pouco para estibordo, grita ele

e a embarcação desliza de maneira uniforme ao longo do molhe e Åsleik posiciona-se quase à frente na proa com uma corda na mão, depois lança o laço da amarra em volta de um poste de amarração no molhe, puxa a corda e prende-a ao barco, depois pega numa outra corda e apesar da grande distância entre a amurada e o bordo do molhe, ele trepa à amurada e num salto atinge o molhe, ata a corda a um outro poste e a seguir Åsleik puxa o barco para terra e volta para bordo

Foste eficiente, foste uma moça hábil, e isto correu bem, diz ele

O vento ajudou como se esperava, e tu foste hábil, diz ele

Eu não me teria desenrascado sozinho, não, diz ele

e Alida pergunta-lhe como é que ele teria então conseguido levar o barco para terra

Para terra, é como quem diz, diz ele

Teria tido que rebocá-lo, responde ele

Teria tido que remar o bote até ao molhe, diz ele

Como assim, pergunta Alida

Tê-lo-ia rebocado com o bote e remado o bote para terra, diz Åsleik

e então ela ouve o pequeno Sigvald a chorar convulsivamente, e talvez ele tenha chorado durante muito tempo, e ela simplesmente não o tenha ouvido chorar, com todos aqueles ruídos das velas e das escotas ou lá como se chamam, e talvez todos os gritos de Åsleik tenham feito com que ela não tenha ouvido o choro dele, pensa Alida, e entra dentro da cabina e ali no beliche está deitado o pequeno Sigvald, está deitado a chorar convulsivamente e abana a cabeça de um lado para o outro

Já aqui estou, vá, não chores mais, diz Alida

Meu lindo menino, diz ela

Lindo menino, diz ela

e levanta o pequeno Sigvald e aconchega-o junto do peito e diz consegues ouvir-me Asle, estás a ouvir-me Asle, diz ela e depois ouve Asle responder que a ouve bem, que está sempre com dela, diz ele e Alida senta-se e descobre um dos seios e dá de mamar ao pequeno Sigvald que chupa e chupa e Alida ouve Asle dizer que claro, o pequeno já estava com fome, diz ele, agora o pequeno Sigvald já está bem, diz ele e Alida diz que agora, agora também ela está bem, diz ela, e que agora ele devia estar aqui, diz ela e Asle responde que está ali, ele está sempre ali com ela e sempre irá estar ali com ela, diz ele e Alida vê que Åsleik está de pé à porta

Pois, ele tem de ser alimentado, diz ele

Pois claro, diz Alida

Eu entendo, diz ele

Vou começar a levar as coisas para casa, diz ele

Comprei muitas coisas em Bjørgvin, diz ele

Sal e açúcar e tostas, diz ele

E café, e outras coisas que não vou mencionar, diz ele

e Alida ouve Asle dizer que agora que lhe aconteceu o que aconteceu, o melhor é que ela fique como governanta em Vika, pois assim terão, ela e o pequeno Sigvald, comida e alojamento, diz ele e Alida responde que se ele acha que é melhor assim, então será assim, diz ela e o pequeno Sigvald deixa de mamar e fica ali deitado simplesmente e Alida levanta-se e sai para o convés e vê Åsleik a subir a ladeira em direcção a casa, com uma caixa em cada ombro, e ela vê que no convés há diversas caixas semelhantes, e alguns sacos, e pensa que vai passar a morar aqui em Vika, em Dylgja, ela e o pequeno Sigvald irão ficar em Vika, e por quanto tempo, bem, certamente não há ninguém que possa dizer algo acerca disso, talvez ela acabe por ficar em Vika até ao fim dos seus dias, pensa ela, e depois pensa que por certo assim será, que será aqui em Vika que ela irá viver a sua vida. E contentar-se-á com isso, pensa ela. Mesmo aqui poderá viver a vida, pensa ela. E Alida salta por cima da amurada e desce para o molhe e repara que há uma vereda que conduz à cabana e vê que Åsleik abre a porta que fica ao meio da casa e entra e Alida começa a subir a vereda e Åsleik sai e diz que foi bom ter voltado a casa, foi bom voltar a ver a sua cabana, ainda que ela seja pequena, diz ele e começa a descer a vereda e diz que há sempre muito que carregar para dentro de casa, quando ele vai a Bjørgvin, aí ele costuma comprar aprovisionamentos para um período longo, diz ele e Alida sobe até à casa e entra e vê que num canto há uma salamandra, uma mesa com algumas cadeiras, um divã junto da parede, e depois há a alcova, com uma escada e depois vê uma porta que deve dar para a cozinha, pensa Alida e vai deitar no divã o pequeno Sigvald, que agora dorme profundamente, e depois vai até uma das janelas e vê Åsleik subir a vereda com um saco ao ombro e diz a Asle se ele tem alguma coisa a dizer, ao que ele diz que tudo está tão bem quanto pode estar, e Alida sente-se tão cansada, tão cansada e vai até ao divã e vê o pequeno Sigvald ali deitado junto à parede e sente-se tão cansada, tão cansada, infinitamente cansada, e porque ficou ela tão cansada de repente, deve ser por tudo junto, pensa ela, ter ido a Bjørgvin e ter calcorreado as ruas de Bjørgvin, a viagem de barco até aqui, tudo isto, em conjunto, pensa ela, e o facto de Asle ter desaparecido mas continuar por perto, tudo isto, em conjunto, pensa Alida, deitando-se no divã e fecha os olhos e está tão cansada, tão cansada, e vê Asle que pára no meio do caminho à sua frente, e ela está tão cansada, tão cansada, que quase adormece, e Asle continua ali parado, eles caminharam muito, devem ter decorrido várias horas desde que passaram por uma casa, e agora Asle parou

Além está uma casa, vamos até lá, diz ele

Agora temos de descansar, diz ele

Sim, estou tão cansada e tenho tanta fome, diz Alida

Tu podes esperar aqui, diz ele

e Asle pousa os fardos e vai até à casa e Alida vê que ele pára diante da porta e bate, e depois espera, e a seguir bate outra vez

Ninguém atende, diz Alida

Não, provavelmente não está ninguém em casa, diz Asle

e roda a maçaneta da porta, mas a porta está fechada e Alida vê que Asle recua para tomar balanço e depois investe com o ombro contra a porta e ouve-se um forte estalido e a porta abre-se um pouco e Alida vê que Asle se aproxima de uma árvore, puxa da faca e corta um ramo e a seguir vai introduzi-lo na greta da porta, depois força a porta e a porta abre-se ainda mais, a seguir ele recua de novo para tomar balanço e investe contra a porta que se abre então e Asle cai no interior transpondo a porta e depois Alida vê-o outra vez de pé à porta

Anda, vem, diz ele

e Alida está tão cansada, tão cansada mas pensa que eles não podem simplesmente invadir uma casa qualquer e vê Asle entrar dentro de casa e ela limita-se a ficar ali e depois vê Asle sair novamente

Aqui não mora ninguém e já há muito tempo que não vem cá ninguém, diz ele

Aqui podemos ficar, diz ele

Anda, vem, diz ele

e Alida começa a subir em direcção à casa

Agora tivemos sorte, diz Asle

e Alida como que desperta e abre os olhos e vê que agora já está quase totalmente escuro dentro da casa onde está deitada e vê Åsleik de pé no meio do soalho como uma sombra negra e vê que ele está a despir a roupa e fecha os olhos e ouve os passos de Åsleik a aproximarem-se, ele estende um cobertor sobre ela e deita-se na cama debaixo do cobertor e põe os braços à volta dela e aperta-a contra si e Alida pensa que será assim que deve ser, pois claro, pensa ela e pensa que é Asle que está a abraçá-la, e não quer pensar mais, pensa ela, e fica deitada totalmente imóvel e isto é bastante bonito aqui em Vika, a casa não é muito grande, mas fica bem situada sobre a encosta de uma colina, e há colinas verdes em redor da casa, e o celeiro fica um pouco mais abaixo junto da água, onde fica o ancoradouro, e onde fica o molhe, e atracado no molhe está o barco de Åsleik, isto aqui não está nada mal e as ovelhas já andam a pastar lá fora e a vaca está no estábulo, e Åsleik esteve a mungi-la, há leite junto da salamandra, diz ele e pergunta-lhe se ela sabe mungir, sim, naturalmente que sabe, e tudo o que ela não sabe e precise de saber, ele pode ensinar-lhe, tudo o que ela não sabe e ele sabe e que possa ser útil, ele ensinar-lhe-á, diz ele, e aqui ela vai viver bem, diz ele, pois ele vai trabalhar e lutar tanto quanto possa no que lhe compete, diz ele, vai trabalhar sim, pois se há algo que ele sabe fazer é trabalhar, enquanto ele tiver vida e saúde ela e a criança irão viver bem e a ele não lhe custa fazê-lo, diz ele, e isto aqui até é bonito e lá fora há o mar e as ondas e o oceano e o vento e as gaivotas que gritam e tudo irá recompor-se, diz ele e as gaivotas gritam e ela não quer ouvir mais as gaivotas a gritarem nem o que ele diz e os dias passam e seguem-se iguais e as ovelhas e a vaca e o peixe e nasce Ales, ela é uma mocinha tão linda e cresce-lhe o cabelo e nascem-lhe os dentes e ela aprende a sorrir e a rir e o pequeno Sigvald cresce e fica um rapaz grande, que se parece tanto com o pai dela, tal como ela se lembra dele, como ela se lembra da voz dele quando ele cantava, e Åsleik que pesca e navega com o pescado até Bjørgvin e depois regressa a casa com açúcar e sal e café e roupa e calçado e aguardente e cerveja e carne salgada e ela cozinha pastéis de batata e eles fumam e secam a carne e o peixe e os anos passam e nasce a Irmã-mais-nova, que tem o cabelo muito fino e loiro, e os dias seguem-se iguais e as manhãs são frias mas a salamandra espalha um calor acolhedor, e chega a Primavera com a sua luz e o seu calor, e depois o Verão com o seu sol escaldante, e o Inverno escuro com a sua neve, e a sua chuva, e depois neve e novamente chuva e Ales vê Alida ali parada, ela está de facto ali parada, parada ali no meio do soalho da sua cozinha, diante da janela, a velha Alida está ali parada, e não pode estar, não é possível, ela não pode simplesmente estar ali, pois já está morta desde há muito, e traz aquela pulseira, em ouro e com pérolas azuis, que ela usava sempre, não, isto não é possível, pensa Ales e levanta-se e abre a porta da cozinha e entra no quarto e fecha a porta atrás de si e senta-se na sua cadeira, enrola-se no cobertor, puxa-o mais para si, fica a olhar para a porta da cozinha e vê que a porta se abre e Alida entra e fecha a porta da cozinha atrás de si e fica ali de pé no meio do soalho, diante da janela do quarto, ela está ali e a mãe não pode estar ali, pensa Ales e fecha os olhos e vê Alida que vai ao quintal lá em Vika, e ela faz companhia à mãe, segura-lhe na mão, e o irmão Sigvald também sai juntamente com elas, e ficam os três no exterior da casa e Ales vê o pai Åsleik a subir a vereda desde o molhe, na mão traz um estojo de violino, e vê o irmão Sigvald ir a correr ao encontro de Åsleik

Toma, miúdo, aqui tens o violino, diz Åsleik

e estende o estojo do violino a Sigvald, que o recebe e fica de pé totalmente quieto, com o estojo do violino na mão

Bem te fartaste de o pedinchar, diz Åsleik

Pois, é incrível o que ele se fartou de pedinchar um violino, diz Alida para Ales

Sim, desde que ouviu tocar aquele tocador de violino, aquele que vinha de uma das ilhas dos mares ocidentais, diz Ales

Incrível, diz Alida

E desde então tem ido ter com ele sempre que é possível, diz Ales

Sim, diz Alida

Sim, ele é um bom tocador de violino, diz Alida

Acho que é, diz Ales

Ele toca bem, diz Alida

Mas, diz Ales

Bem, o pai de Sigvald era tocador de violino, diz Alida

e quase a interrompe

E o avô paterno, diz Ales

Sim, sim, diz Alida

e a voz dela soa quase brusca, depois vêem Åsleik dar meia-volta e descer de novo até ao barco e Sigvald vem ao encontro delas com o estojo do violino, pousa-o no chão, abre o estojo, tira para fora o violino e segura o instrumento diante de si e depois em frente delas, e Åsleik regressa do barco, contra a luz do Sol, em direcção a eles, carregando uma caixa, e pára junto deles

Fiz bastantes compras em Bjørgvin, diz ele

E além disso, ainda consegui arranjar o violino, diz ele

E parece que se trata de um excelente violino, diz ele

Comprei-o a um tocador de violino que precisava mais de outras coisas do que de um violino, diz ele

Mas paguei-lhe bem, mais do que ele me pediu, diz ele

Acho que nunca tinha visto um tipo tremer tanto, diz ele

e Alida pergunta se pode ver o violino, e Sigvald estende-lhe o violino, e ela repara que a cabeça do dragão de afinação não tem nariz

Consigo ver que se trata de um bom violino, diz Alida

e estende o violino a Sigvald, e este volta a metê-lo dentro do estojo e coloca-se ao lado deles, e fica ali com o estojo do violino na mão e Ales pensa que Sigvald, o querido irmão Sigvald se tornou tocador de violino, e não muito mais do que isso, mas teve uma filha fora do casamento, e essa filha parece que teve um filho, que pelos vistos se chama Jon e parece que é, também ele, tocador de violino e que conseguiu até publicar um livro de poemas, bem as pessoas fazem tantas coisas, pensa Ales, e o irmão Sigvald, que desapareceu simplesmente, agora já deve ser tão velho que, possivelmente, já deverá ter morrido, ele apenas desapareceu e manteve-se ausente sem nunca mais ter dado sinal de si, pensa Ales e por que razão continua Alida ali de pé, ali parada no quarto dela, diante da janela, ela não deve estar ali, não poderia simplesmente ir-se embora, já que ela não quer ir-se dali então irá ela, pensa Ales e vê que Alida continua ali parada no meio do soalho, e ela não pode deixar a mãe ficar ali simplesmente, pois aquele é o quarto dela, e porque é que a mãe não se vai embora, porque é que a mãe não desaparece, porque é que continua ali parada, porque é que não se mexe, pensa Ales e Alida não pode continuar ali parada, pois ela está morta desde há muito, pensa Ales e será que ela se atreve a tocar na mãe, para sentir se ela de facto está ali, pensa ela, mas na realidade ela não pode estar ali, já passaram tantos anos desde que a mãe morreu, desde que ela se atirou ao mar, como se dizia, mas ela não deve saber o que aconteceu, e dizem-se tantas coisas e ela não pôde ausentar-se para vir ao funeral da mãe em Dylgja, ela pensava muitas vezes nisso, que não tinha vindo ao funeral da mãe, mas a viagem era longa, e ela tinha diversos filhos pequenos, e o marido andava fora na pesca, portanto como poderia ela viajar, e talvez fosse por isso, por ela não ter podido vir ao funeral da mãe que esta está agora ali e não quer deixá-la, mas ela não lhe deve poder dizer nada, ela própria se interrogou muitas vezes se a mãe realmente se atirou ao mar, por isso não pode perguntar-lhe o mesmo, mas conta-se que a mãe foi encontrada na maré baixa, ela não deve perguntar-lho, porque não está assim tão mal da cabeça a ponto de ficar aqui sentada a falar com uma pessoa que morreu há tanto tempo, nem mesmo tratando-se da própria mãe, não, de modo algum, isso não é possível, pensa Ales e Alida olha para Ales e pensa que ela sente a sua presença ali, naturalmente que sim, e talvez ela esteja a torturar a filha com a sua presença, e isso ela não quer, porque haveria ela de querer torturar a própria filha, ela não quer de modo algum torturar a sua menina, a sua querida filha, a filha mais velha, e a única das suas duas queridas filhas que pôde crescer e que teve filhos e netos e Ales levanta-se e caminha com passos lentos e incertos para a porta do vestíbulo, abre a porta e sai para o vestíbulo e Alida vai atrás dela com passos lentos e incertos e sai também para o vestíbulo e Ales abre a porta da rua e sai e Alida sai atrás dela e depois Ales caminha ao longo da estrada, pois se Alida não quer sair de casa dela então sairá ela, pensa Ales, não há nada mais a fazer, pensa Ales, descendo em direcção ao mar e Alida caminha com passos lentos e incertos na escuridão, debaixo de chuva, desce da casa lá em Vika, pára e volta-se e olha para a casa e tudo o que ela consegue ver é uma mancha mais escura na escuridão, depois volta-se e continua a descer, passo a passo, e detém-se na orla da praia, ouve o marulhar das ondas e sente a chuva a fustigar-lhe os cabelos, e o rosto, e faz-se às ondas e o frio tornou-se calor, o mar inteiro é Asle e ela avança mais e mais e Asle está à volta dela, tal como estava na noite em que ambos se conheceram, quando ele tocava no baile em Dylgja pela primeira vez, e tudo é somente Asle e Alida e as ondas engolem Alida e Ales faz-se às ondas e continua a avançar, continua a caminhar mar adentro e corta as ondas até que uma onda vem cobrir-lhe a cabeleira grisalha