CAPÍTULO OITO

O 20 DE JULHO

A bomba explodiu às 12h42. Hitler inclinara-se sobre a pesada mesa de madeira de carvalho, a olhar para o mapa onde se encontravam assinaladas as posições do Exército do Norte na frente oriental. Depois de um ruído ensurdecedor, o impacto da explosão atirou ao chão os vinte e quatro oficiais presentes, incluindo generais, entre os quais estava Wilhelm Keitel, chefe do Alto Comando da Wehrmacht. Uma parte do teto caiu. Quatro homens morreram e quase todos os restantes ficaram feridos. Hitler sofreu apenas ferimentos ligeiros. A perna direita das calças ficou rasgada e o braço direito ficou imobilizado. Foi atingido por destroços do teto nas costas e, descobriu-se, mais tarde, que ficou com os tímpanos perfurados devido à força da detonação. Também começou, depois, a sentir dores fortes na perna direita, porém, sobreviveu.

Nessa mesma tarde, foi receber pessoalmente Mussolini na estação ferroviária de Rastenburg, não muito longe do seu quartel-general do momento, a Toca do Lobo.

Nesse dia quente, de 20 de julho de 1944, também esteve presente o coronel e conde Claus von Stauffenberg, chefe do estado-maior da Reserva do Exército, que recebera ordens para informar pessoalmente o Führer das medidas já tomadas para travar o avanço do Exército Vermelho.

Mas Stauffenberg não levava só os planos de batalha na sua pasta. No interior, tinha uma bomba, escondida entre relatórios e notas diversas. Era composta por um quilo de material altamente explosivo e por um mecanismo de relógio. A bomba ficara coberta por uma camisa, em cujas dobras se ocultavam as pinças de um alicate, necessárias para a detonar. Era o único meio pelo qual podia fazer explodir a bomba, devido aos graves ferimentos de guerra sofridos pelo seu portador, que perdera o olho direito, a mão direita e dois dedos da mão esquerda. Stauffenberg ensaiara várias vezes o movimento com que iria acionar a bomba. Que iria servir para matar Hitler.

O atentado fora preparado durante muito tempo, tendo sido adiado várias vezes. O grupo de conspiradores era constituído por diversos oficiais e oficiais-generais que haviam apoiado Hitler durante muito tempo, até ao momento em que haviam percebido que já não podiam ganhar a guerra e que o Reich acabaria por ficar reduzido a escombros. Foi nessa altura que começaram a conspirar. Stauffenberg fora um dos principais dinamizadores do grupo e coubera-lhe planear e preparar o atentado.

Tencionara, primeiro, e por uma questão de segurança, fazer-se explodir com Hitler, mas os seus camaradas eram da opinião de que Stauffenberg era insubstituível para a organização do golpe de Estado que lançariam a seguir. Depois do atentado, com o nome de código «Valquíria», dissolveriam todos os centros de poder nacional-socialistas, entre os quais os departamentos mais importantes do Partido, da administração do Estado e da Polícia, além da Gestapo e da SS. Mas não foi o que aconteceu. A fita do tempo do atentado de 20 de julho mostra como é que tudo falhou.

*

Na véspera: os trinta oficiais que fazem parte do círculo de conspiradores — entre os quais Stauffenberg, o marechal de campo Erwin von Witzleben, o coronel-general Erich Hoepner e o comandante da Wehrmacht de Berlim, Paul von Hase — reúnem-se para uma última troca de impressões. São todos informados de que a bomba explodirá no dia seguinte. Stauffenberg vai para casa depois da reunião.

Pouco depois das seis horas: Stauffenberg sai de casa, acompanhado com o seu irmão Berthold, e o motorista leva-os ao centro da cidade. O tenente-coronel Werner Karl von Haeften junta-se a eles e viajam juntos para o aeródromo de Rangsdorf.

7h00: Um Heinkel He 111 parte com Stauffenberg e Haeften a bordo. O destino é Rastenburg. Os conspiradores levam consigo uma pasta com uma bomba no interior, contendo detonadores químicos.

O irmão de Stauffenberg, Berthold, segue do aeródromo de Rangsdorf para a Bendlerstraße, onde ficam o Ministério da Defesa do Reich e a sede do Estado-Maior.

10h14: Stauffenberg e Haeften aterram em Rastenburg. Espera-os um automóvel para os levar à Toca do Lobo, o quartel-general do Führer. Entram, e von Stauffenberg toma o pequeno-almoço na messe dos oficiais, encontrando-se depois com o general Erich Fellgiebel, chefe do Serviço de Informações da Wehrmacht, que está ao corrente do atentado. A sua missão é contactar com os conspiradores reunidos na Bendlerstraße e informá-los do êxito do atentado e, imediatamente, cortar as comunicações do quartel-general do Führer.

Por volta das 11h30: Stauffenberg encontra-se com o marechal de campo e general Wilhelm Keitel, chefe do Alto Comando da Wehrmacht. Keitel diz-lhe que a reunião de ponto de situação se fará às 12h30, meia hora antes do previsto e que, por causa do muito calor que está, se realizará na «cabana dos mapas».

Pouco antes das 12h30: Keitel dá início à reunião e Stauffenberg pergunta-lhe onde é que pode mudar de camisa rapidamente. O seu impedido, Ernst John von Freyend, acompanha-o a um dormitório, onde Stauffenberg liga o detonador de uma das bombas. Já não tem tempo para preparar a segunda, porque Freyend abre de repente a porta, mesmo antes de Stauffenberg esconder na pasta a primeira, e diz-lhe para se apressar. Stauffenberg dirige-se rapidamente à cabana.

Pouco depois das 12h30: Keitel e Stauffenberg entram na cabana, onde a reunião já começou. Além de Hitler, estão presentes vinte e três pessoas. Reúnem-se à volta de uma mesa de madeira de carvalho, de tampo grosso e pernas maciças, a estudar os mapas aí abertos. Stauffenberg opta por um lugar à direita de Hitler. Durante a discussão sobre a situação da frente oriental, Stauffenberg empurra a pasta com as bombas para o mais perto possível de Hitler, por baixo da mesa.

Por volta das 12h37: Cinco minutos antes de a bomba explodir, Stauffenberg sai discretamente da sala. Entretanto, um dos participantes na reunião afasta a mala porque o impedia de ver os mapas, distanciando-a de Hitler.

A bomba explode por volta das 12h42. Ao fim da tarde do mesmo dia, o golpe termina com um final sangrento. Na Bendlerstraße, em Berlim, onde Stauffenberg e o tenente-coronel Haeften se reuniram pouco tempo depois do atentado, irrompe às onze horas da noite um grupo de oficiais da confiança de Hitler. É aí que se encontram Stauffenberg, o seu irmão Berthold, von Haeften, Beck, o conde Peter Yorck von Wartenburg, Eugen Gerstenmaier e Albrecht Mertz von Quirnheim.

Os homens de Hitler desarmam-nos e dão-lhes voz de prisão. O coronel-general reformado, Beck, pede que o deixem suicidar-se. Dispara por duas vezes contra as têmporas, mas nenhum dos tiros é mortal. Um sargento dá-lhe o tiro de misericórdia.

O coronel-general Friedrich Fromm, na qualidade de presidente de um conselho de guerra improvisado, diz aos conspiradores que, sem demora, escrevam uma nota aos seus familiares. De seguida, dirige-se ao seu gabinete e regressa, cinco minutos mais tarde, para comunicar o seguinte:

São condenados à morte o coronel Metz, do Estado-Maior, o general Olbricht [e aponta para Stauffenberg], o coronel cujo nome não quero voltar a pronunciar — e o tenente-coronel von Haeften.

Por volta da meia-noite: os quatro condenados são levados para o pátio do edifício da Bendlerstraße, que está iluminado pelos faróis de veículos militares. É aí que se realiza a execução. Olbricht, Haeften, Stauffenberg e, por fim, Mertz caem abatidos a tiros diante de um monte de areia. A insurreição dos oficiais terminara.

Mas o que não havia terminado era a vingança de Hitler. Se, no momento imediato após o atentado, reagira de maneira inesperadamente tranquila, indo receber Mussolini à estação e guiando-o pela cabana destruída pela explosão, mais tarde foi dominado por uma fúria tremenda. Fora de si, ameaçou todos os conspiradores e as suas famílias com uma vingança terrível. Na noite de 21 de julho, já a sua voz ribombava por todas as emissoras de rádio:

Compatriotas alemães!

Se hoje me dirijo a vós, faço-o especialmente por dois motivos: em primeiro lugar, para que ouçam a minha voz e saibam que estou ileso e bem; e, em segundo lugar, para que saibam, em primeira mão, que houve um atentado sem precedentes na Alemanha.

Uma clique minúscula de oficiais ambiciosas, sem consciência e, ao mesmo tempo, criminosos e estúpidos, organizaram uma conspiração para me eliminar e, comigo, todo o estado-maior da Wehrmacht. […]

O círculo que estes usurpadores ocupam é um pouco mais pequeno do que se poderia pensar. É um círculo que nada tem que ver com a Wehrmacht e, muito menos, com o povo alemão. É um grupo de elementos criminosos, que agora será exterminado […] E, desta vez, ajustaremos contas tal como nós, nacional-socialistas, estamos habituados a fazer.

E o ajuste de contas começou com uma verdadeira vaga de detenções, seguidas de torturas brutais.

Ao povo alemão não havia que esconder como é que se procedia com os conspiradores, os opositores e os traidores. Ou seja, com todos os criminosos infames.

A grande maioria andava ainda entusiasmada com as palavras de ordem enérgicas e os êxitos da «Grande Alemanha» e, apesar das consequências manifestas e percetíveis da guerra, a propaganda coordenada dos meios de comunicação encarregava-se de manter inquebrantável a fé no Reich, no partido e no Führer. Poucos foram os compatriotas que tiveram problemas de consciência, até porque a oposição ao regime era uma minoria em vias de extinção. Ninguém queria ou podia reconhecer até que ponto é que a direção nacional-socialista havia atraiçoado e profanado os seus ideais, sacrificando tantas vidas numa impiedosa guerra total. Milhões de alemães continuavam a marchar atrás da bandeira da cruz suástica. Ainda havia milhões de pessoas a saudar o Führer, a acreditar numa «vitória final» iminente. E a respirar fundo ao saber que Hitler havia sobrevivido.

No dia 21 de julho de 1944, apenas um dia depois do atentado falhado, Kaltenbrunner, chefe do Serviço de Segurança do Reich e major-general da SS, teceu algumas considerações num documento confidencial dirigido à chancelaria do Partido em Munique, sobre «as primeiras repercussões psicológicas do atentado contra o Führer». E enviou a seguinte informação «ao digníssimo camarada Bormann»:

De acordo com a variedade de comunicados recebidos, provenientes das mais distintas regiões do Reich, a primeira notícia emitida pela emissora da Grande Alemanha foi ouvida só por uma pequena parte da população. Mas a notícia espalhou-se de pessoa em pessoa como um incêndio descontrolado, acabando por chegar mesmo a desconhecidos nas ruas e nas lojas […]

Em todos os relatos é unanimemente afirmado que a comunicação do atentado provocou no conjunto da população reações de choque e de grande perturbação, consternação, agitação e indignação. Em várias cidades (Königsberg e Berlim), segundo foi relatado, as mulheres desfaziam-se em lágrimas nas lojas e nas ruas, e pareciam quase paralisadas. A alegria pelo desfecho feliz do atentado foi extraordinariamente grande. E, por todo o lado, se fez ouvir o seu júbilo, com um suspiro de alívio: «Deus seja louvado, que o Führer está vivo.»

Em parte, um certo abatimento ofuscou a alegria da salvação do Führer. De repente, os nossos compatriotas tomaram consciência de como a situação é grave e perigosa. Em geral, depois do susto e do consolo iniciais, tendo sabido que nada acontecera ao Führer, caíram num estado de reflexão profunda. […]

Toda a gente ficou a pensar, na hipótese de o atentado ter sido bem-sucedido, no que poderia vir a acontecer. Os nossos compatriotas expressaram pensamentos bem sombrios sobre o mal impensável que se poderia abater sobre o nosso povo. Na sua opinião, a morte do Führer teria significado, na situação atual, o fim do Reich. «Era só o que nos faltava. Seria o fim» é uma opinião que se repete constantemente […]

Muitos dos nossos compatriotas tiveram, desde o início, a perceção de que o ataque teria de provir de círculos muito próximos do Führer, em que — como aconteceu a Mussolini — uma oposição suspeita e uma clique de generais reacionários se andava a organizar com o propósito de tomar o poder. Tratar-se-ia de um grupo de generais que, nos últimos tempos, o Führer teria afastado e que, na opinião da população, seriam os responsáveis pela «traição de Minsk», pela rutura da secção central da frente oriental e por outros revezes […]

O salvamento do Führer do perigo mortal que correu agitou profundamente todos os setores do povo. Uma grande maioria vê o que se passou como uma prova bem sólida do desígnio da Providência. Subsiste a crença profunda de que, apesar de todas as dificuldades dos últimos meses, tudo estará bem com o Führer. Em muitos sítios, ouve-se dizer que o Führer devia estar sob a proteção de um grande poder […]

Era já extraordinariamente grande a predisposição para aguentar o esforço da guerra e, «agora mais do que nunca», fazer tudo pela vitória. Numerosos compatriotas querem imediatamente alistar-se para ir para a guerra e lutar pela vitória. O operariado pede, agora, (em Berlim, por exemplo) que se avance para a guerra total, que seja feito um esforço excecional, mesmo em círculos que têm estado ausentes de uma cooperação mais enérgica (como é o caso do trabalho das mulheres). O que muitas vezes se encontra é o desejo de «despachar sem piedade» o inimigo interno […]

O próprio Hitler determinou como devia ser o procedimento contra aqueles que, de uma forma ou de outra, pudessem ter estado ligados ao atentado:

Desta vez, abreviarei tudo. Estes criminosos não devem comparecer perante um tribunal militar, mas sim perante o Tribunal do Povo. Neste caso, não devem poder falar muito. E a sentença deve ser executada sem demora nas duas horas seguintes a ser proferida. Há que enforcá-los imediatamente e sem nenhuma compaixão.

Hitler chegou a pensar num processo público que funcionasse como espetáculo, para ser filmado e transmitido pela rádio. Mas Himmler, que ficara com o comando da Reserva do Exército, manifestou-se contra, argumentando que as circunstâncias haviam mudado e que já não estavam em 1939 ou em 1940. Hitler acabou por concordar com ele: «Tem razão, Himmler. Se organizo um processo público, terei de deixar falar publicamente esses tipos. E algum deles pode ser capaz de argumentar bem e de se transformar em defensor da paz para o povo alemão. Isso poderá tornar-se perigoso.»

De qualquer modo, Hitler não queria mesmo renunciar a uma medida disciplinar pública contra os golpistas. Não apenas por vingança, mas também por ser a melhor maneira de lhe garantir algum prestígio nessa altura, e isso seria um processo breve contra «esses criminosos»… e no Tribunal do Povo. E o seu juiz mais sedento de sangue e mais fanático conduziria o processo: «Freisler tratará disso. É o nosso Vichinsky», terá dito Hitler numa das suas reuniões de ponto de situação. Era nele que confiava.

O nome de Vichinsky estava associado aos processos simulados da Rússia. Vichinsky, homem de confiança de Estaline, fora procurador-geral no período do «Grande Terror», entre 1935 e 1939, tendo condenado, nos processos de «depuração», milhares de pessoas, entre as quais alguns dos antigos companheiros de Lenine, como Zinoviev, Kamenev e Bukharine, a dezenas de anos de degredo ou à morte.

Não deixa de ser revelador que Hitler comparasse o presidente do Tribunal do Povo ao acusador de Estaline. Aliás, já uma vez dissera que Freisler era «um bolchevique, à sua maneira». De qualquer modo, Freisler era, para Hitler, o juiz julgado mais competente para se ocupar do processo iminente contra os homens e as mulheres do 20 de julho.

Foi este processo que marcou o último grande desempenho de Roland Freisler. A grande sala do Supremo Tribunal, em Berlim, foi o palco que Freisler sempre desejara. E foi o próprio Hitler quem lhe abriu o caminho para ele aí chegar e onde iria passar largos meses. Agora, já não eram os desmoralizadores, os derrotistas e os que ouviam as emissões de rádio do inimigo, os nomes desconhecidos sem dimensão pública, mas sim oficiais e generais, além de destacados civis. «O castigo que devemos agora aplicar tem de ter uma dimensão histórica», exigiu o ministro da Propaganda, Goebbels, que, em 25 de julho, fora nomeado por Hitler «ministro plenipotenciário do Reich para o Esforço da Guerra Total». Chegara o momento de Freisler demonstrar ao seu líder que para o Direito nacional-socialista não havia diferenças de classe. Desconhecidos ou bem conhecidos do público, os traidores e os conspiradores eram todos iguais perante a lei. E mereciam todos a mesma condenação: a morte.

O julgamento dos primeiros oito acusados de participação no atentado começou em 7 de agosto. Foi o início de uma avalancha de processos judiciais. Nas semanas e meses seguintes, desfilaram perante o Tribunal do Povo várias centenas de verdadeiros, ou apenas suspeitos, combatentes da resistência ao regime, acusados de alta traição e de traição à Pátria e quase todos foram condenados à morte.

É certo que, como oficiais, os conspiradores podiam, de acordo com a lei, ser julgados em tribunais militares. Hitler, porém, alimentava algumas objeções a essas entidades e também desconfiava da justiça militar. Nos últimos anos da guerra, algumas sentenças haviam incorrido no seu desagrado, tendo sido ditadas mais no interesse da Wehrmacht, segundo a sua própria opinião.

Daí a sua opção, neste caso, por um «tribunal de honra», desrespeitando a lei militar do Reich com o propósito de expulsar das Forças Armadas os oficiais cuja investigação preliminar o tornasse possível. Deste modo, alcançava dois objetivos: dava a impressão de seguir os ditames da lei militar, quando, na realidade, o que queria era levar os conspiradores, todos sem exceção, ao tribunal da sua maior confiança: o Tribunal do Povo. O «tribunal de honra» funcionou sem problemas. Os acusados — o marechal de campo e general von Witzleben, o coronel-general Hoepner, o major-general Stieff e o comandante militar de Bekm, von Hase — já expulsos das Forças Armadas — compareceram na grande sala de audiências do Supremo, na Elseholzstraße, onde o Tribunal do Povo começou a funcionar depois de a sua sede na Bellevuestraße ter sido destruída durante um bombardeamento aéreo.

A sessão foi aberta por Freisler, com a sua voz severa:

O Tribunal do Povo do Grande Reich Alemão constitui-se como a 1.ª Vara, de acordo com a ordem estabelecida, sendo juiz-presidente o presidente do Tribunal do Povo e tendo como vice-presidente o juiz-presidente da vara, Günther Nebelung, e, como juízes leigos, o general de Infantaria Reinecke, o técnico de parques e jardins Hans Kaiser, o comerciante Georg Seuberth e, como juízes leigos suplentes, o padeiro Emil Winter e o engenheiro Kurt Wernicke, como juízes assessores, o juiz Lemmle, do Tribunal do Povo, o juiz Köhler, do Tribunal Distrital. O senhor procurador Lautz apresentou-se espontaneamente e é acompanhado com o procurador principal Dr. Görisch. Na qualidade de advogados de defesa oficiosos, comparecem o Dr. Weißmann, o Dr. L. Schwarz, o Dr. Neubert, o Dr. Gustav Schwarz, o Dr. Kunz, o Dr. Falck, o Dr. Hugo Bergmann e o Sr. Boden.

Alguns minutos bastaram para se dar o primeiro incidente. Depois de Freisler ter pedido ao Ministério Público que apresentasse a acusação contra Erwin von Witzleben, este pôs-se prontamente em pé, aproximou-se de Freisler e ergueu a mão na saudação nazi. Até agora, a historiografia da resistência expressa pelo atentado de 20 de julho tem silenciado este facto.

Freisler reagiu com voz colérica: «O senhor é Erwin von Witzleben. Eu, no seu lugar, não voltaria a fazer a saudação alemã. A saudação alemã é usada pelos compatriotas honrados. Esse gesto não impedirá a sentença. Se fosse a si, envergonhar-me-ia por o fazer.»

De seguida, Freisler perguntou a Witzleben o local e a data de nascimento, fazendo o mesmo aos réus Hoepner, Stieff, von Hagen, von Hase, Bernardis, Klausing e von Wartenburg. Posto isto, o procurado Lautz passou à leitura da acusação:

Acuso von Witzleben, Hoepner, Stieff, von Hagen, von Hase, Bernardis, Klausing e von Wartenburg do seguinte delito: no interior do País, no verão de 1944, como membros de uma clique numericamente insignificante de oficiais desencorajados decidiram assassinar de forma cobarde o Führer e, de seguida, abolindo o regime nacional-socialista, apoderar-se do poder sobre o Exército e o Estado e pôr fim à guerra, mediante um pacto indigno com o inimigo. Como autores dos crimes de alta traição e de traição à Pátria, violaram as seguintes disposições legais […]

Depois de terem sido expostas as normas legais violadas, Freisler retomou a palavra:

Esta acusação é a acusação mais terrível que foi feita na história do povo alemão. O Ministério Público afirma que existem fundamentos para os réus terem cometido o pior ato de traição que a nossa História conhece. A nossa tarefa, hoje, é determinar o que fizeram e pronunciar a sentença, de acordo com o nosso sentido do Direito alemão. Eu próprio abordarei com cada um de vós aquilo de que cada um é acusado. O meu ponto de partida será, em primeiro lugar, analisar resumidamente a carreira de cada um. Quando determinarmos o que fizeram, saberemos, também, em que medida nos interessa a descrição mais pormenorizada de cada carreira. Porque há atos de traição tão sinistros, que são suficientes para desvalorizar tudo o que anteriormente foi feito. E se ficar demonstrado que cometeram tais atos, é possível que não tenha interesse conhecer mais pormenores do que antes fizeram.

Réu Helmuth Stieff, aproxime-se! Digo-lhe, em primeiro lugar, o que também é válido para os outros réus. A acusação, que hoje vos foi apresentada, sendo um dos fundamentos mais importantes para a nossa busca da verdade, tem também um objetivo especial: o de estarmos preparados para a nossa audiência de hoje.

Por isso, não é para seu prejuízo que lhe peço para encarar este procedimento de olhos nos olhos.

Senhor procurador, pergunto-lhe se tem alguma coisa que dizer no que se refere ao carácter público do julgamento.

Lautz propôs que o julgamento decorresse à porta fechada. Haviam chegado à conclusão de que todos os espectadores tinham «interesse profissional» no processo. Freisler excluiu, por isso, o público «geral», por ser possível a referência a segredos de Estado. Os presentes na sala — dos quais todos eram funcionários do regime nacional-socialista e oficiais da Wehrmacht — podiam ficar. Freisler advertiu-os:

Esta é, portanto, uma audiência de julgamento que não é pública. Quem transmitir alguma coisa sobre uma atividade que não é pública pode ser severamente punido pela nossa lei.

Depois disto, Freisler começou por interrogar os réus. Queria que o julgamento dos conspiradores fosse breve. Era o seu grande momento.

Embora o tom e as táticas de Freisler fossem sempre os mesmos, conduzindo ao resultado predeterminado da pena de morte, este primeiro «processo do 20 de julho» era, para Freisler, um novo desafio. Não tinha pela frente um grupo de calibre de conspiradores especialmente elevado?! A situação dramática da guerra não exigia — como era do seu conhecimento — uma demonstração sólida de tenacidade combativa? E, por último, não havia depositado o Führer uma tão grande esperança na sua atividade de juiz?

Freisler não quis dececionar Hitler. O estenograma feito pelos estenógrafos do Tribunal do Povo revela que, apesar de as sentenças de morte já estarem decididas, Freisler não perdeu a oportunidade de rebaixar os acusados, de os humilhar e de os cobrir de ridículo. Era um tribunal impiedoso, em cujo centro se encontrava ele, como senhor da vida e da morte. E, quase sem exceção, decidiu-se pela morte. Era como o Führer esperava.

Nas suas alegações finais, o procurador Lautz pediu a pena de morte para todos os acusados. Fê-lo quase apaticamente. Os defensores retraíram-se e o advogado de Witzleben disse-o nas suas próprias palavras finais: «O ato do réu terminou e o perpetrador culpado cai com ele.»

Klausing, Bernardis e Stieff pediram a palavra, por pouco tempo, solicitando que a pena fosse executada por fuzilamento. No dia seguinte, juntaram-se-lhes, nesse pedido, todos os outros réus, à exceção de Yorck von Wartenburg. Mas Freisler rejeitou o pedido, antes mesmo de pronunciar a sentença: que morressem na forca.

À tarde, Freisler divulgou a sentença. A sala estava completamente cheia e reinava um silêncio tenso. Só a voz cortante do presidente do Tribunal do Povo se fez ouvir no recinto de tetos altos:

Em nome do povo alemão! Perjuros, ambiciosos sem honra, Erwin von Witzleben, Erich Hoepner, Hellmuth Stieff, Paul von Hase, Robert Bernardis, Peter Graf Yorck von Wartenburg, Albrecht von Hagen e Friedrich Karl Klausing atraiçoaram, como ninguém ainda o fizera em toda a nossa História, o sacrifício dos nossos guerreiros, do nosso povo, do nosso Führer e do nosso Reich, em vez de, virilmente, seguirem o nosso Führer na luta pela vitória. Organizaram o assassinato do nosso Führer. Cobardes, pensaram entregar ao inimigo o nosso povo, fazendo render-se, e mesmo fazer-se escravo, à mercê da mais sombria reação. Os que atraiçoaram tudo aquilo por que vivemos e lutamos serão castigados com a pena de morte. Os seus bens serão entregues ao Reich. Esta sentença do Tribunal do Povo do Grande Reich Alemão tem os seguintes fundamentos: foi um ato próprio de bandidos que quebra todas as barreiras e escarnece de todas as medidas. O nosso povo trava uma batalha difícil pela liberdade e pela vida no fim do quinto ano de guerra. E uma bomba com explosivos e detonadores ingleses abre um abismo de horror em todos nós, em cada um de nós. Queriam roubar-nos o Führer, num ato de traição e de assassinato. A força do povo impediu-o. O seu batalhão de segurança varreu os traidores e uma vaga de indignação alastrou-se por todos os territórios do nosso grande Reich. Uma corrente de amor e de confiança preenche a alma de cada alemão: o Führer vive! Vimos, aqui, ontem, na sala de audiências, várias imagens do edifício destruído e temos uma ideia clara do que aconteceu. Um milagre decidiu o destino do nosso povo, que nesse caos de estilhaços e nesse monte de escombros, manteve o nosso Führer a dois metros de distância do engenho explosivo. O impacto da explosão não o quis alcançar. E quando soubemos o que aconteceu, jurámos erguer-nos e lutar até esgotar as nossas forças e, fiéis ao nosso Führer, combater pela vitória e pela nossa vida.

Todos nós conhecemos os pormenores do monstruoso acontecimento. O próprio Führer disse-nos o que aconteceu, nessa noite, na comunicação que nos dirigiu e em que pudemos reconhecer a sua voz. Depois, o ministro do Reich, Goebbels, no seu grande discurso de prestação de contas, como lhe chamou, também contou mais pormenores. Não é preciso repetir tudo hoje aqui. Temos, na nossa presença, oito desses miseráveis que estiveram envolvidos neste trabalho de patifes, oito que o Führer nos entregou, no seu Tribunal do Povo. Desonrados, foram todos expulsos do Exército e para sempre perderam a sua honra pelo que fizeram, ficando conhecidos pela sua desonra e estigmatizados perante a Nação, como ninguém mais antes deles.

Prosseguindo, Freisler expôs aquilo que, no seu ponto de vista, foi a participação dos oito réus no atentado:

Isto foi o que pudemos provar relativamente aos oito traidores que nos foram ontem enviados para serem julgados, e dos quais agora sabemos tudo. Só aqui ficámos a saber o que cada réu admitiu neste julgamento. Nada existe nas provas apresentadas, salvo qualquer referência expressa, que não tenha sido demonstrado pelos próprios réus. Não pode haver dúvida de que aquilo que provámos relativamente a cada um é o mínimo da sua culpabilidade. Mas a sua culpa sobrepõe-se a todas as medidas. É certo que a vergonha deste ato pode ser partilhada e descrita em normas e palavras, mas ela é igual em todos.

É a traição à nossa vida comunitária alemã livre e sólida, ao nosso modo de vida e à nossa natureza, ao nosso nacional-socialismo. É o desejo presunçoso de substituir a nossa liberdade interior pela servidão às forças da reação. A alta traição deste ato é, seguramente, a cobardia suja, a autonegação do fraco, que perde a crença na luta pela vitória em vez de acreditar que a vitória depende da nossa convicção inabalavelmente forte e total. Certa e verdadeira é a ajuda que cada um deles não hesitou em oferecer ao nosso inimigo […] E é também certo que não há quem não saiba que quem lograr roubar-nos o nosso Führer nos assestará o golpe mais pesado que nos poderá debilitar na nossa luta pela nossa vida contra os nossos inimigos. É também a traição à Pátria, uma traição à Pátria que foi executada da maneira mais horrorosa e que, como tal, rompe todos limites da lei. […] É nela que está contida a miserável cobardia dos derrotistas, dos quais nem preciso de falar […] É a falta de confiança no Führer […] É a tentativa de assassinato dirigido contra aquele que, com os seus cuidados, guia a nossa vida de dia e de noite […] daquele que todos nós contemplamos para poder marchar com ele a caminho do mundo da liberdade! É a traição em si, a tudo o que é o povo alemão, aos mortos desta guerra, aos mortos do movimento. É a traição mais absoluta que a nossa História já viu […] Não há um caso em toda a História — e eu pensei nisso nos últimos dias — em que, nas setenta gerações que nos precederam, podemos andar à procura de acontecimentos destes que tenham acontecido ou que tenham sido planeados.

Os acusados não podem ter a esperança de que nos afastemos, de uma maneira ou de outra, da medida que é estabelecida como sendo a mais severa das existentes no que se refere à sua ignomínia. Nem um milímetro […] Quando, na devida altura, o Reich aprovou a lei que estabelecia que a pena de morte podia ser aplicada por enforcamento nos casos especiais de ações ignominiosas, fê-lo perante um horrível ato de terror ocorrido no ano de 1933, ato que representava uma grande ameaça contra a nossa vida. Estamos hoje mais seguros. O atentado que então teve como consequência a aprovação desta lei, empalidece-se perante o ato destes réus, estes oito réus. Com isto, dissemos tudo o que há a dizer […] A punição só pode ser uma: a morte.

Declaramos que este é o crime mais ignominioso que a nossa História até hoje conheceu. Vamos regressar à vida e à luta. Não temos nada comum com eles. O povo livrou-se deles e ficou imaculado. Vamos lutar. A Wehrmacht saúda: Heil Hitler! Nós todos saudamos: Heil Hitler! Vamos lutar com o nosso Führer, com ele pela Alemanha. Livrámo-nos do medo. Vamos marchar com toda a nossa força até à vitória total.

Dou, assim, por concluída esta sessão do Tribunal do Povo do Grande Reich Alemão.

A sentença foi concretizada nesse mesmo dia. Com as mãos atadas atrás das costas, os condenados foram transportados para a câmara de execuções da prisão de Plötzensee, em Berlim, e aí, um por um, foram cravados em ganchos de pendurar carne onde morreram da forma mais horrível. Tal como Hitler ordenara: «Devem ser pendurados como gado num matadouro.»

Hitler também terá ordenado, pessoalmente, que a morte dos condenados fosse filmada. O operador de câmara Erich Stoll relatou, depois da guerra, como foram feitas as filmagens:

Fomos transportados para o Tribunal do Povo, onde nos disseram o que é que devíamos fazer, com a maior discrição possível, gravações de som e de imagem do julgamento que aí decorria. Montámos uma iluminação provisória e dispusemos as câmaras com microfones atrás das portas para podermos fazer as filmagens por meio de um orifício. Na sala, foi posto outro operador de câmara para aí fazer recolha de imagens e do ambiente geral. Hans Hinkel, nessa altura, o dirigente do Reich encarregado do cinema decidia, aconselhado pela equipa, quem é que devia ser filmado. Pediu também que o informassem dos metros de película que ia ser usada para não faltar. O Dr. Freisler, presidente do Tribunal do Povo, aprovou entusiasticamente a ideia das filmagens e de que tudo ficasse registado. Começámos a filmar no momento em que fizeram entrar os réus e lhes indicaram os sítios onde se deviam sentar, depois de lhes tirarem as algemas. A seguir, entraram os juízes com o Dr. Freisler à cabeça e o julgamento começou. Os réus mais importantes deviam ser filmados com som e os outros só com recolha de imagem. No primeiro intervalo, Hinkel e o presidente do Tribunal do Povo perguntaram como estavam a correr as filmagens. Tivemos de dizer ao presidente que estava a gritar alto de mais para os acusados, o que impedia o sonoplasta de nivelar a sua voz estridente com a voz mais baixa dos acusados. Infelizmente, o presidente do Tribunal do Povo voltou a gritar nos interrogatórios seguintes, pelo que as gravações ficaram tecnicamente insatisfatórias.

Terminado o trabalho, o filme daí resultante — que tinha cerca de 50 mil metros, que o Ministério da Propaganda reduziu para 15 mil — foi exibido publicamente, não nas «atualidades» das sessões de cinema, como Hitler de início pensara, mas sobretudo para as organizações nacional-socialistas e para os gauleiters.

No já citado relato de Kaltenbrunner, com data de 20 de agosto de 1944, enaltece-se o modo como Freisler conduziu o julgamento, o que teria causado uma forte impressão na população:

Em largos círculos do operariado, foi recebida com alegria e satisfação a maneira severa, mas também irónica e de reações rápidas, como o presidente [do Tribunal do Povo] atuou. A crítica que o presidente fez aos propósitos criminosos dos acusados correspondeu, geralmente, à indignação do povo perante o conjunto dos malfeitores. Foram debatidos os pormenores da conspiração com uma especial repugnância, nomeadamente o plano dos traidores de concretizarem o atentado naquela reunião.

Mas Kaltenbrunner também teve de reconhecer que — «em círculos intelectuais e jurídicos» — não faltaram vozes críticas. A «forma ordinária» como o presidente do Tribunal do Povo humilhara os acusados e os ridicularizara não correspondia «absolutamente à dignidade do mais alto tribunal alemão» e fazia lembrar os «primeiros processos de fachada soviéticos».

E o relato de 20 de agosto de 1944 prossegue:

Houve, especialmente, uma série de manifestações em que se afirmava que o presidente começara a discutir com o réu Hoepner qual seria a palavra mais adequada para o designar, se «burro» ou «porco».

Outros salientaram que alguns dos réus eram personalidades que haviam obtido as suas honras e condecorações mais elevadas graças, precisamente, aos seus méritos e aptidões, e no próprio Estado nacional-socialista. E era estranho, até, que esses homens, que não há muito tempo eram promovidos pelo próprio Führer, sendo celebrados como heroicos os seus feitos pela imprensa, fossem agora apresentados como tolos, idiotas ou indecisos. […] Deve encarar-se com dúvidas a política de pessoal nos cargos mais elevados de chefia depois de estes homens terem estado em altas funções durante tantos anos.

As informações de Kaltenbrunner eram dirigidas a Martin Bormann, mas o seu destinatário era Hitler e este ficara completamente satisfeito com o modo como Freisler dirigira o processo. E não havia sido ele a insistir que devia ser dada a menor margem possível aos acusados? Não exigira a sentença mais severa, ou seja, a morte aos traidores? Freisler desempenhara o seu papel de Vichinsky como Hitler o concebera. Era o grande juiz sedento de sangue do momento.

O primeiro processo contra os conjurados do 20 de julho foi só o prelúdio. De súbito, foram sujeitos a julgamento numerosos generais e oficiais subalternos que haviam estado em contacto com os conspiradores ou com eles simpatizavam. A maioria foi condenada à morte e executada.

À liquidação da oposição militar — cujos representantes mais proeminentes haviam apoiado o regime de Hitler com entusiasmo, servido a Wehrmacht na primeira linha e tornado desse modo possível o terror nacional-socialista — seguiu-se a liquidação da oposição política.

Em 7 e 8 de setembro de 1944, começou, com o processo contra Carl Goerdeler, uma série de processos dirigidos contra os «conspiradores civis». Ex-burgomestre de Leipzig, Goerdeler fizera várias versões de discursos para a rádio e uma proclamação do estado de emergência para o dia do atentado contra Hitler. Era, para Freisler, «cabeça e motor» da conspiração. Com Goerdeler foram acusados o sindicalista social-democrata Wilhelm Leuschner, o antigo embaixador em Roma, Ulrich von Hassell, o advogado berlinense, Josef Wirmer, e Paul Lejeune-Jung, gerente industrial, deputado do Partido Nacional Alemão no Reichstag entre 1924 e 1930 e indigitado ministro da Economia no «governo» de Goerdeler.

Freisler voltou a usar a sala de audiências como palco político, como fizera no primeiro processo. Dominava sozinho o julgamento, falava durante o tempo que queria, berrava, era ele quem dava a palavra… e foi quem decretou a sentença. Sobre o julgamento do «processo contra Goerdeler», é interessante reter o que escreveu o ministro da Justiça, Thierack, em 8 de setembro de 1944, num ponto de situação sobre o julgamento (e a sua condução por Freisler) ao secretário do Führer no seu quartel-general, o reichsleiter Bormann:

Na condução do julgamento, o presidente mostrou-se, no caso dos réus Wirmer e Goerdeler, seguro de si e factual, todavia, no caso de Lejeune-Jung, um pouco nervoso. A Leuschner e a von Hassell não os deixou falar. Em numerosas ocasiões, gritou e repetiu-se. Isto causa, na realidade, uma péssima impressão, até porque foi ele quem autorizou uma assistência de trezentas pessoas. Convém verificar quais foram as pessoas que receberam cartões de entrada. Um comportamento destes numa sessão como esta é muito questionável. No que se refere à direção política do processo, não há nada a dizer. Infelizmente, invetivou Leuschner ao chamar-lhe de «um quarto de dose», Goerdeler de «meia dose» e aos réus de «salsichas». A seriedade do procedimento resultou assim bastante afetada. E ele fez isto várias vezes. As palavras do presidente, ditas com intenção propagandística, tiveram um efeito repelente no âmbito judicial, fazendo que também ficasse posta em causa a seriedade e a dignidade do tribunal. Ao presidente faltou-lhe a contenção fria e reflexiva, que é especialmente necessária numa situação destas. […] Heil Hitler!

Os cinco réus foram todos condenados à morte por alta traição, derrotismo, desmoralização das forças militares e favorecimento do inimigo. Nesse mesmo dia, foram executados Lejeune-Jung, Wirmer e von Hassell. Leuschner foi primeiro enviado para um campo de concentração, onde morreu, assassinado, vinte dias depois do julgamento. Para a Gestapo, Goerdeler devia «continuar com vida», porque esperavam obter dele, em interrogatórios posteriores, informações úteis sobre a organização e a estrutura dos grupos da oposição. Mas, em 2 de fevereiro de 1945, declararam-no supérfluo. Foi liquidado, tal como os restantes conspiradores.

Enquanto os Aliados reforçavam os ataques aéreos e a Alemanha se ia afundando no meio dos escombros causados pelos contínuos bombardeamentos, o Tribunal do Povo continuava a decretar sentença de morte atrás de sentença de morte, sempre com Freisler à cabeça.

Em 20 de outubro de 1944, julgou o processo contra o Dr. Julius Leber, o Dr. Adolf Reichwein, Hermann Maass e Gustav Dahrendorf. Os quatro réus receberam a acusação na véspera do julgamento e era impossível defenderem-se. E as sentenças já estavam preparadas.

Com exceção de Dahrendorf, foram condenados à morte. A situação foi especialmente tétrica: não era só a audiência que era filmada secretamente, mas também a aplicação da pena de morte. Era o próprio Hitler a querer as filmagens das bárbaras execuções. Enquanto o juiz-carrasco e os seus colegas exerciam a sua sanguinária função, as câmaras de filmar não paravam.

Não é possível analisar extensivamente os numerosos processos que se foram sucedendo contra socialistas e sindicalistas, contra os opositores conhecidos por «Círculo de Kreisau» e contra os conspiradores de 20 de julho. No anexo da bibliografia, indicam-se trabalhos diversos sobre eles. Os historiadores do pós-guerra no nosso país deram grande atenção aos responsáveis pelo atentado e valorizaram as suas ações. Mas a historiografia, da resistência à ditadura nacional-socialista, foi frequentemente unilateral.

Mas o certo é que os vários setores da oposição ligados ao 20 de julho foram heterogéneos nos seus propósitos ideológicos, políticos e éticos. Estiveram de acordo em pôr fim ao regime de Hitler, no entanto, as suas opiniões sobre as medidas necessárias a esse fim divergiram. Os membros do Círculo de Kreisau rejeitaram durante algum tempo o assassinato do tirano com base nas suas conceções cristãs e só mais tarde, depois de uma grande polémica interna, é que começaram a desenvolver planos para um atentado. E muitos deles (sobretudo os membros da oposição militar) tiveram uma ligação estreita ao regime nacional-socialista, servindo-o também de forma criminosa.

Os planos dos autores do atentado de 20 de julho foram uma última e desesperada tentativa, da parte dos generais alemães e do corpo de oficiais, de salvar o que ainda podia ser salvo no regime.

Eis um exemplo, entre muitos: o de Arthur Nebe, chefe da Polícia Criminal do Reich. Em 1931, aderiu ao NSDAP e teve uma ascensão meteórica como major-general da SS e tenente-general da Polícia. Foi um dos homens que interrogaram Georg Elser — um carpinteiro artesão dos Alpes Suábios que, em setembro de 1939, pôs uma bomba no sótão de uma cervejaria de Munique, num atentado falhado contra Hitler —, nas instalações da Gestapo em Berlim. Elser foi considerado culpado e deportado para um campo de concentração, onde morreu assassinado pouco antes do fim da guerra.

Nebe — um nacional-socialista entusiástico — foi voluntariamente para a Rússia em 1941 como chefe do «Grupo de Assalto B», ajudando a semear o medo e o terror atrás das linhas da frente, com os seus homens a funcionar, quase de forma exclusiva, como brigada de execução. As suas vítimas foram sobretudo judeus, que tinham conseguido sobreviver até esse momento. Mas, em 1944, já o fanático Nebe aparecia entre os conspiradores, onde lhe atribuíram a tarefa de recrutar oficiais da Polícia Criminal de Berlim para futuras ações militares.

Desconhece-se, no entanto, quando e por que motivo Nebe se associou à oposição. Em 3 de março de 1945, foi condenado à morte e enforcado no dia seguinte.

Nebe foi apenas uma das várias figuras contraditórias dessa época. Até hoje, o que levou diversos conspiradores do 20 de julho a mudar de campo está ainda por apurar.

A mitologia da resistência mal deixou espaço para uma perspetiva diferenciada de qualquer glorificação. Por isso, o atentado de 20 de julho tem servido até hoje de sinónimo de uma «Alemanha diferente e democrática» e de «raio de luz moralista» nas trevas criminosas do regime nazi. Mas ambos os conceitos são duvidosos. Além disso, há uma desproporção quando essa atividade, que valoriza o 20 de julho, é comparada com o que foi feito por um grande número de alemães que — sendo comunistas, socialistas, sindicalistas, cristãos radicais ou independentes, sozinhos ou em grupo, sem cargo nem nome — militaram na oposição e foram, por isso, perseguidos, presos, assassinados ou enviados para o exílio. É uma mistificação de alguns que perturba a visão de muitos.

O destaque dado aos «homens do 20 de julho» foi uma das grandes mentiras da Alemanha do pós-guerra. Na república de Adenauer, não houve lugar para a sacrificada oposição de esquerda à ditadura nazi.

Mas regressemos ao ano do medo de 1944. Freisler usou os processos do 20 de julho como palco para a intimidação. Aqui, nos processos encenados, havia uma última, e eficaz, lição a ser dada a todos os que pensavam em «traição», fosse à causa alemã ou à «vitória final». Eis como, anos mais tarde, uma mulher que esteve entre o público recordou a entrada em cena de Freisler:

Roland Freisler, um mestre da representação de enorme eficácia cénica, com uma capacidade de desempenho contínuo e ininterrupto de dez horas […] faiscante, brilhante, arrasador, de voz forte e capacidade de a modular, umas vezes de suavidade paternal e compreensiva e depois, e de repente, outra vez inquisitorial, severa, gelada; capaz ainda de atacar com a velocidade de um raio. Os acusados são brinquedos do seu intelecto. Faz malabarismos com o destino humano e, com uma reviravolta, aplica a iluminação e a cor de que necessita para, de uma irrelevância a um ato teatral eficaz, o converter na tragédia já planeada e esboçada.

Foram poucas as vezes que a encenação se alterou, e mesmo isso aconteceu só por um instante. Quando, em 9 de setembro de 1944, no processo de Goerdeler já citado, Freisler anunciou a pena de morte para a maioria dos réus, o advogado, e condenado, Josef Wirmer desafiou-o: «Se vou ser enforcado, não tenho medo, mas o senhor tem!» Freisler, a espumar de raiva, replicou-lhe: «Rapidamente, chegará ao Inferno!» E Wirmer, católico crente, à beira da morte, contrapôs-lhe: «Será um prazer, senhor presidente, que não tarde a seguir-me.»

Freisler não iria viver mais de seis anos.