CAPÍTULO NOVE

O FIM

Alemanha, setembro de 1944. O «Reich dos Mil Anos» morria visivelmente de dia para dia no meio dos destroços e das cinzas. Os ataques aéreos dos Aliados estavam a ser, para a população alemã, cada vez piores. A oeste, a invasão era imparável e o Exército Vermelho, que obrigara o Exército do Leste a recuar até às fronteiras do Reich, já se abeirava do Vístula.

Apesar disso, a maioria dos Alemães ainda esperava que houvesse uma reviravolta na guerra e acreditava na capacidade de combate da Wehrmacht, vendo ainda Hitler no nimbo das suas primeiras vitórias. As pessoas que enchiam os abrigos antiaéreos e os soldados enviados para a frente diziam para consigo: «Pois não teve o Führer razão até agora? Se anuncia que haverá represálias, elas hão de chegar. Não temos a tal nova arma maravilhosa com a qual devolveremos aos nossos inimigos duas a três vezes do mal que nos estão a fazer?», perguntavam-se numa mistura de abatimento e de raiva, de sofrimento e de culpa, tentando mutuamente encorajar-se.

«Resistam!», proclamava a propaganda nacional-socialista, recordando ao povo, sem parar, as suas «virtudes invencíveis»: capacidade de sacrifício, patriotismo, coragem, determinação e… obediência.

De acordo com o sentido da propaganda de guerra do nacional-socialismo, o atentado falhado de 20 de julho só serviu, mais uma vez, para fortalecer psicologicamente o regime. A sobrevivência de Hitler foi — mais uma vez — uma prova de como a Providência o poupava e de como era inquebrantável a vontade de vencer do Führer. E, na realidade, foi depois do discurso radiofónico de Hitler e de os Alemães lhe terem ouvido a voz outra vez que o moral do Reich se reforçou de súbito. A opinião maioritária e a propaganda nacional-socialista estavam bem sintonizadas.

As ilusões eram vistas como se fossem realidades. O Führer ainda vivia, a Alemanha também. A confiança — mesmo que atenuada — ainda era predominante e ainda havia vontade de resistir.

Mas o certo é que, na tarde de 11 de setembro, os primeiros soldados dos EUA atravessaram a fronteira do Reich perto de Trier. O Exército do Ocidente estava desfeito. Um decreto do Führer, de 25 de setembro de 1944, ordenou a constituição de um exército de milicianos com a designação de «Tempestade Popular Alemã» (Deutsche Volkssturm), integrando todos os homens entre os dezasseis e os sessenta anos, «capazes de usar armas» e que até então haviam estado isentos do serviço militar. Para os Aliados, foi um sinal de fraqueza militar e uma indicação de que a Wehrmacht chegara de vez ao fim. O jornal partidário Völkischer Beobachter publicou, em 11 de novembro de 1944, um artigo intitulado «Os acontecimentos mundiais não podem ser calculados», que foi interpretado por muitos leitores como um sinal de dúvida de que, numa análise sensata da realidade, a Alemanha poderia não ganhar a guerra.

Ao mesmo tempo, Hitler continuava a padecer de diversos males. Sofria de depressão, de dores de cabeça e de crises gripais.

A sua atitude parecia a de um velho. A sua decadência era visível, especialmente depois do desembarque aliado de 7 de setembro. Movimentava-se graças a tranquilizantes e estimulantes e reagia com fúria a objeções que fizessem às suas decisões que, para ele, teimoso e obstinado, eram as únicas corretas. Os ataques de fúria alternavam com as manifestações depressivas e a sua desconfiança e os seus receios atingiam níveis patológicos.

No outono de 1944, acentuou-se decisivamente a agonia de Hitler e também a do Terceiro Reich. No fim de novembro, foi tomada mais uma medida de emergência: a criação do Corpo de Auxiliares Femininas da Wehrmacht (Wehrmachtshelferinnenkorps). De adesão voluntária, no início, para depois ser formada por meio de convocatórias, esta organização da Wehrmacht integrava mulheres jovens e raparigas com mais de dezoito anos. A notícia da ofensiva das Ardenas, quando a Wehrmacht voltou a atacar o inimigo, despertou em muitos alemães uma última esperança. Apesar dos bombardeamentos no solo pátrio, com baixas pesadíssimas, ainda havia muitos que acreditavam na possibilidade de uma vitória. Joseph Goebbels soube aproveitar a sombria situação com fins propagandísticos. Em 10 de dezembro de 1944, tentou instilar algum alento nos Alemães, num editorial do semanário Das Reich:

Lutamos agora com as costas encostadas à parede. É, compreensivelmente, perigoso, mas também oferece várias vantagens.

O Natal que se aproximava, segundo Goebbels, seria «uma festa para os corações fortes».

A partir desse momento, começaram a suceder-se apelos mobilizadores quase à mesma cadência com que caíam as bombas. Em 17 de dezembro, Herbert Reinecker, repórter que escrevia sobre a guerra, apelou mais uma vez no Völkischen Beobachter às virtudes alemãs, num texto com o título «A fé que os jovens soldados têm no Führer»: «O jovem soldado é fiel ao Führer», escreveu Reinecker — que, depois da guerra, se tornou na Alemanha um escritor de romances policiais bem-sucedido e que recebeu um prémio nacional de cinema pelo seu filme Canaris, sobre a resistência —, por ser fiel a si próprio e ao seu próprio destino. Para ele, é impensável refletir ou capitular diante das dificuldades.» Movidos pela propaganda e cegos pela ideologia, milhares de jovens foram morrer uma morte «alemã». Entretanto, o Reich dos Mil Anos ia encolhendo.

A guerra regressou aos seus níveis anteriores e a situação afetou também o Tribunal do Povo. Em novembro de 1943, a sua sede já havia sofrido estragos devastadores durante um ataque aéreo e foi necessário transferir uma parte do tribunal para Potsdam, onde ocupou parte do edifício do Tribunal Distrital. As diversas varas foram entretanto reforçadas em todo o Reich, ao longo dos meses, para aplicarem as suas sentenças sangrentas. O ministro da Justiça, Thierack, que na sua qualidade de nacional-socialista fanático, continuava a salientar a «tarefa de liderança política» do Tribunal do Povo e a defender penas ainda mais severas, dirigiu, em 18 de outubro de 1944, uma carta a Freisler, pedindo a «Sua Excelência, o senhor presidente», para dar mais atenção à tramitação e às decisões dos processos, por ter aumentado consideravelmente a importância do Tribunal do Povo «para a estabilidade da frente interna».

«A atividade do Tribunal do Povo», escreveu Thierack, «não deve esgotar-se na aplicação da punição, que é merecida pelos acusados que diante dele comparecem, e em manter a sua tarefa de liderança política».

E como é que o ocupadíssimo presidente do Tribunal do Povo o devia fazer era o que Thierack de seguida lhe explicava:

É preciso que o povo não apenas reconheça como corretas as sentenças do Tribunal do Povo, mas que saiba também por que motivo foi necessária uma dada pena. A condução das audiências pelo presidente da vara deve ressentir-se porque, especialmente, nos processos políticos de mais importância política, a avaliação política do ato em função da situação do povo e do Reich nem sempre fica bem explicada…

O juiz-presidente deve, na sua condução do julgamento, poder fundamentar por que motivo o ato é especialmente perigoso para o povo e para o Reich ou especialmente grave. Cada uma das pessoas que esteja no julgamento deve, ao sair da sala de audiências, fazê-lo com a convicção interior de que não só foi correta a pena como e por que motivo é que ela foi correta. Isto aplica-se em primeiro lugar aos processos de derrotismo, que devem ter agora um tratamento numa escala muito maior. A retórica deve ser a menor possível, no sentido de que um julgamento numa dada vara é morte certa ou que o «carácter público» está a ser excedido nas suas definições legais. Quando acontece esse tipo de conversa, ela só pode ser contrariada por meio de uma direção do julgamento que seja superior, tranquila e — se tal se aplicar — fria. E o povo deve aprender por que motivo é que os subversivos merecem a morte, (e os fala-barato não, a não ser que palavras sem sentido se tornem perigosas pela sua falta de ponderação).

A concluir, Thierack pedia a Freisler que garantisse que só exercessem a presidência os juízes que «dominem politicamente a matéria em questão». Não havia que duvidar: a «estabilidade da frente interna» precisava de uma justiça ainda mais consequente e o Tribunal do Povo, como tribunal «da primeira linha», devia revelar-se especialmente eficaz. Isto aplicava-se também à simplificação dos procedimentos no que se referia, por exemplo, à concessão de indultos. Assim, as penas de morte por desmoralização das forças militares já não deviam ser reexaminadas mesmo com o risco de ser executado um inocente. A situação militar exigia — segundo Thierack — que os processos fossem rapidamente concluídos e executados de forma consequente. Aliás, o agravamento da situação civil e militar, nesta fase da guerra, foi acompanhado por um agravamento drástico da severidade das sentenças condenatórias. As penas de morte continuavam a estar na ordem do dia, principalmente para os delitos políticos e militares.

O Tribunal do Povo era a expressão mais destacada de um sistema impiedoso de injustiças que nem sequer se aplicava depois da morte das suas vítimas. Aliás, nem sequer entregavam os corpos dos condenados aos seus familiares, sendo os cadáveres queimados ou oferecidos às faculdades de medicina.

Freisler, presidente e juiz, era a força motriz do rigor misantrópico deste tribunal e já não era possível travá-lo. Apesar das dificuldades ditadas pela guerra, mostrava-se ansioso por continuar a trabalhar. Manteve as suas conferências — embora em menor número, dadas as dificuldades de circulação causadas pela destruição das estradas —, continuou a dirigir os destinos do Tribunal do Povo e, como juiz da 1.ª Vara, presidiu a inúmeros julgamentos, avocando os processos importantes para a sua vara. A última distribuição de serviço de 1945 mostra como os acusados que normalmente iriam para as outras varas eram desviados para a sua, especialmente se fossem processos de traição.

Thierack não deixava de reparar no modo de agir de Freisler e no que ele fazia. Já em novembro de 1943 pedira que fossem transferidos mais processos para as restantes varas. Mas Freisler ignorou-o e, sobretudo depois do atentado de 20 de julho, chamou a si os processos mais interessantes.

No outono de 1944, na Alemanha, o NSDAP, apesar dos seus oito milhões de filiados, atingira o ponto zero da popularidade e muitos dos seus militantes já não andavam de uniforme com tanta confiança. Também percebiam que o sonho do Reich dos Mil Anos estava a desaparecer no meio dos escombros. Só dispunham de duas possibilidades, nessa situação tão dececionante: continuar a marchar ao ritmo dos ideais de outros tempos, radicalizando-se enquanto a situação militar se ia degradando ainda mais, ou tentar encontrar uma maneira de se distanciar do Partido para, depois do fim inevitável, aparecerem como pessoas politicamente isentas e até como combatentes da oposição à ditadura nacional-socialista, como tantas vezes mais tarde aconteceu.

Freisler — apesar de algumas dúvidas interiores — pertencia aos que apoiavam fanática e intransigentemente o Partido e o Führer. Em 26 de outubro de 1944, escreveu:

No mais íntimo de nós, devemos reconhecer que já não é impossível que a Alemanha perca a guerra. As armas empregadas nas represálias não deram o resultado que com tanto fervor se esperava. O próprio ministro Goebbels é desta opinião, todavia, segundo as informações que é possível obter, estão a ser preparadas armas cujo poder de aniquilação vai ofuscar tudo o que até agora se conhece. Também não devemos prestar atenção ao fator tempo. Devemos resistir, custe o que custar, pois, quanto mais tempo o conseguirmos fazer, maiores serão as possibilidades de se romper a união entre os anglo-americanos e os soviéticos, que é antinatural. O predomínio da Rússia na Europa Central não é do interesse dos anglo-americanos nem, muito menos, dos capitalistas judeus do Ocidente. Quando vejo o que tem acontecido nos últimos anos, sinto-me impelido a abandonar a minha crença numa conspiração mundial dos Judeus contra a Alemanha. Esta crença é um modo simplista de ver as coisas. Há um abismo intransponível entre o proletariado judeu da Europa Oriental (em cujas fileiras a intelectualidade judaica procura os seus recrutas), que tenta tudo para provocar uma revolução bolchevique, e os judeus generalizadamente assimilados da Inglaterra e da América, a quem a revolução não interessa, e muito menos uma revolução bolchevique apoiada no poder da Rússia soviética. A cobiça deles contradiz os propósitos dos seus camaradas de raça do Leste.

E Freisler prossegue:

Mas se perdermos esta guerra, o que o génio do Führer e a Providência não permitirão, e como espero ardentemente que não aconteça, tombaremos, mas com as bandeiras desfraldadas. Em 1815, acreditou-se que tinham sido vencidas as ideias da Revolução Francesa. Que não foi assim, mostraram-nos a História e tudo o que agora acontece em França. Elas sobreviveram e, apesar de tempos de terrível debilidade, passaram a fazer parte da vida francesa e do pensamento nacional.

A conceção do nacional-socialismo nasceu do mais fundo da miséria e triunfou, contra todas as expectativas. No entanto, não se pode mudar radicalmente um país em pouco mais de dez anos, mas já se consegue renovar completamente, num breve período desses, a sua estrutura social. Os processos que hoje correm no Tribunal do Povo revelaram-mo com a maior clareza. Até eu fiquei surpreendido com a dimensão da conspiração. Aquilo que acreditava ser só uma pequena clique era, na sua essência, mais vasta do que de origem pensei. Mas a cobardia de muitos dos chefes da conspiração terá mostrado ao povo alemão a infinita superioridade do nacional-socialismo, em comparação com os objetivos e os programas a que faltam o idealismo e o ímpeto revolucionário. Os que tentaram tomar o poder na Alemanha pertencem, na sua mentalidade, à época de Guilherme e ao regime de Weimar, são um pequeno grupo de velhos retrógrados, alguns dos quais, como esse tipo Goerdeler, nada têm para fazer depois da sua condenação, senão escrever as suas memórias e fornecer novas informações que envolvem muitos outros nesta conspiração reacionária. É possível que possam viver assim durante mais alguns meses, mas não conseguirão escapar ao destino que os espera. Perante a dimensão da conspiração, que é agora do conhecimento do povo alemão, ouve dizer-se que a revolução devora os seus filhos. Nada seria mais errado do que avaliar os atuais acontecimentos deste ponto de vista, nomeadamente porque a revolução nacional-socialista expele e expulsa todos os que nunca fizeram parte desta revolução, todos os que têm de ser erradicados para fazer com que a revolução alcance o seu derradeiro objetivo.

Neste sentido, o Tribunal do Povo converteu-se, como em 1792, em França, num verdadeiro tribunal revolucionário, necessário para a limpeza da nação. O que dele pode restar será, na sua essência nacional-socialista, como hoje o são tantos dos nossos compatriotas e, mesmo vencido pelo inimigo, ocupar-se do seu povo e dos seus descendentes e, seja qual for o nome e a forma que vier a ter, será sempre nacional-socialista, até chegar o momento em que as nossas bandeiras com a cruz suástica serão de novo desfraldadas por cima das nossas cidades e em toda a nossa pátria. Traga o futuro o que trouxer, o nacional-socialismo triunfará. O nacional-socialismo, os efeitos de uma guerra que o nosso Führer não desejou, os desgostos que a guerra traz, tudo isto mostra que a Alemanha foi socialmente nivelada e que assim continuará a ser, varrendo barreiras e diferenças de classe. Todos nós, Alemães, estamos agora num barco e todos devemos remar simultaneamente, para alcançar a vitória e, se acontecer o pior, garantir o ressurgimento e, com ele, o último triunfo e o maior deles todos.

Serão estas palavras próprias de um homem iludido ou cego? Ou apelos de um fanático? Não há dúvida de que Freisler, em outubro de 1944, ainda era ferozmente nacional-socialista. Mas o certo é que também percebia que era um ónus ter de julgar os seus processos em circunstâncias tão extremas, com as audiências a ser interrompidas pelos bombardeamentos aliados. E que — como tantos outros — levara a sua mulher e os seus dois filhos para casa de pessoas conhecidas na província, bem longe de Berlim, para aí estarem em segurança. Só que as ruínas que iam ficando não conseguiam levá-lo a questionar a sua ligação quase religiosa ao nacional-socialismo. E nessa atitude, nessa sua determinação de resistir «até ao amargo desenlace», Freisler não estava sozinho.

Na noite de passagem de ano de 1944, ouviu-se na rádio a voz do ator Heinrich George, desde 1943 intendente-geral dos teatros de Berlim. A sua leitura do «Credo Prussiano», de Carl von Clausewitz, escrito em 1812, terminava — ao som do violino — com as palavras: «[…] que só me sinta feliz no dia em que na luta esplêndida pela liberdade e pela dignidade da Pátria tenha uma morte gloriosa!» E de seguida ouviram-se os sinos da catedral de Colónia, a saudar o Ano Novo.

Em 1 de janeiro de 1945, quando ainda só tinham passado cinco minutos do novo ano, Hitler dirigiu-se ao povo pela rádio. Apelou ao ressurgimento das cidades e à reorganização social que nasceria dos escombros. «Um povo», começou, numa comunicação destinada a confortar os Alemães logo nos primeiros minutos de 1945, «que consegue alcançar objetivos incomensuráveis na frente de batalha e na Pátria, que suporta e aguenta tantas coisas terríveis, nunca perecerá. Pelo contrário: dessa fornalha de provações, chegará mais forte e mais firme do que qualquer outro momento da sua história». A confiança incansável na vitória pode ter transmitido um novo ímpeto aos seus compatriotas.

Mas, apenas doze dias depois, em 11 de janeiro de 1945, a frente do Vístula rompeu-se completamente e o Exército do Oriente recuou para o Reich, em fuga. De pouco serviu, nessa altura, que Heinrich Himmler fizesse um apelo contra os «desistentes» e pedisse às mulheres e às raparigas que enviassem para a frente os «cobardes impenitentes a golpes de esfregona».

Em 1 de fevereiro de 1945, o Exército Vermelho, muito superior em número, atravessou o rio Oder. O ataque a Berlim, a capital do então tão poderoso Reich dos nacional-socialistas, era apenas uma questão de dias. O fim estava a aproximar-se.

Entretanto, os homens de leis nacional-socialistas do Tribunal do Povo continuavam a julgar réus por terem «escutado as emissões de rádio inimigas», por se dedicarem ao «saque depois dos bombardeamentos aéreos» ou ao «derrotismo» e outras infrações do mesmo género. A sua voracidade não diminuía, nem sequer neste momento. Havia quase todos os dias cartazes bem vermelhos a circular pelo Reich e a anunciar as sentenças de morte ditadas «em nome do povo». E os «alemães de Hitler» já quase nem davam por eles. Ou ainda acreditavam num milagre e achavam a punição impiedosa desses «criminosos todos» correta e necessária ou andavam demasiado preocupados com os seus problemas. A guerra não lhes dava tempo para ficarem tristes nem para sentirem compaixão ou vergonha.

Na secretaria do Tribunal do Povo — ao lado dos inumeráveis processos contra os «anónimos» que se iam acumulando —, ainda havia os processos contra os «proeminentes» da oposição de 20 de julho, como foi o caso dos membros do Círculo de Kreisau, que ainda não haviam sido julgados. A pena de morte continuava a ser a primeira punição da lista. Em 9 de janeiro, começou um novo processo. No banco dos réus sentaram-se Helmuth James Graf von Moltke, Eugen Gerstenmaier, Franz Sperr, o Dr. Franz Reisert, o príncipe Fugger von Glött, o Dr. Theodor Haubach, o tenente-coronel Theodor Steltzer, o padre Alfred Delp e o jornalista Nikolaus Gross. Todos eles tinham participado em reuniões e encontros do «Círculo». Só que o seu envolvimento individual era muito diferente.

Moltke estivera em contacto direto com Goerdeler e Stauffenberg. Delp, por seu turno, acabara por assistir a uma única reunião do Círculo, realizada em Munique. Mas para Freisler, isso era irrelevante. Por isso, no julgamento, concentrou-se em Delp, que a mentalidade anticatólica e antijesuíta de Freisler via, desde o início, como um candidato certo à pena de morte. Os ataques furiosos ao padre Delp desferidos pelo juiz-presidente, que nem sequer em audiência de julgamento disfarçou os seus sentimentos, não foram mais do que uma prova claríssima de um ressentimento profundo. Moltke também foi violentamente atacado. À falta de melhor, Freisler, raivoso, usou contra Moltke a sua própria declaração de que se juntara à oposição por prever a ocupação inimiga do país. Uma das coisas que o juiz mais detestava era a cobardia. E, aos seus olhos, a desculpa de Moltke não era mais do que cobardia. Moltke também passava a ser um candidato seguro à pena de morte.

Dois dias depois do começo do julgamento, em 11 de janeiro de 1945, foi pronunciada a sentença. Os casos de Haubach (membro do SPD e, desde 1942, ligado ao Círculo de Kreisau), Gross (mineiro de profissão e sindicalista da corrente cristã, ligado ao Círculo) e Steltzer (oficial do Estado-Maior e amigo de longa data de Moltke) foram separados e as suas decisões adiadas.

Moltke e Delp foram condenados à morte por desmoralização das forças militares, favorecimento do inimigo, atos preparatórios de alta traição e omissão de denúncia de crimes iminentes. Foi também por este delito que foi ainda condenado à morte Franz Sperr, o ex-oficial do Estado-Maior que só tardiamente mantivera contactos com o Círculo de Kreisau. Reisert, Gerstenmaier e o príncipe Fugger foram condenados só a penas de prisão. Moltke e Sperr foram executados, em 23 de janeiro, e Delp, em 2 de fevereiro, no mesmo dia de Goerdeler. Haubach e Gross, submetidos a julgamento, em 15 de janeiro, foram executados no próprio dia. A execução de Steltzer foi adiada por intervenção de Himmler e, graças a isso, Steltzer sobreviveu à guerra.

Com a Alemanha crescentemente arrasada pelos bombardeamentos dos Aliados, os carrascos do Tribunal do Povo não paravam. Não quereriam convencer-se do final iminente ou seriam tão fanáticos, que o seu delírio os empurrava para uma vingança sangrenta contra todos os que eram tidos como responsáveis pela derrota? Desde janeiro que os julgamentos terminavam com, praticamente, uma condenação à morte em cada dois acusados. Havia um frenesim cego entre os verdugos das becas vermelhas. Como aconteceu, em 3 de fevereiro de 1945, sábado.

Freisler presidiu nesse dia ao julgamento de Ewald von Kleist-Schmenzin que, não pertencendo a nenhum grupo oposicionista, admitiu ser contra o regime de Hitler, mantendo contactos com numerosos ativistas da oposição. Fora informado dos planos de Stauffenberg e o seu nome apareceu na lista de Goerdeler como conselheiro político.

Kleist-Schmenzin tomou a ofensiva perante Freisler na audiência de julgamento, dizendo que combatia contra Hitler e os nacional-socialistas desde o início e que fazê-lo era um dever que tinha para com Deus.

Mas Freisler não tinha interesse em discussões. Depois de ouvir a declaração do réu, decidiu interromper a sessão e propôs a antecipação do julgamento contra Fabian von Schlabrendorff. Não se sabe porquê, mas assim que começou a sessão, soou o alarme antiaéreo e o julgamento foi interrompido.

Nesse dia 3 de fevereiro de 1945 — dia em que a força aérea dos EUA fez cair sobre Berlim o seu maior ataque aéreo, com 700 bombardeiros, acompanhados com caças, que largaram três mil toneladas de explosivos sobre a capital alemã —, morreram mais de 20 mil pessoas. O alvo deste ataque foi o centro do poder nacional-socialista. E uma das vítimas foi Roland Freisler.

Há muito tempo que prevalecem três versões do seu fim. A primeira é de Fabian von Schlabrendorff, que foi o último réu a comparecer perante Freisler e, tendo sobrevivido à guerra, recordou em livro o dia 3 de fevereiro de 1945.

Pouco depois do início da audiência, segundo relata, ouviram-se as sirenas de alarme. Toda a gente fugiu para a cave do tribunal. O juiz-presidente, com os processos na mão e acompanhado com os seus colegas, ficou de pé num canto. Noutro, ficou Schlabrendorff com os guardas que o vigiavam. O edifício foi, de repente, atingido por uma bomba pesada. Uma das vigas do teto partiu-se e, ao cair, atingiu Freisler.

A segunda versão indica que Freisler terá morrido durante uma viagem de automóvel do Ministério da Justiça para o Tribunal do Povo.

A terceira versão, a de veracidade mais provável, descreve os acontecimentos de outro modo. O chefe do corpo de médicos das Forças Armadas, o Dr. Rolf Schleicher, ia a caminho de uma reunião com o ministro da Justiça, Thierack, para intervir a favor do irmão, Rüdiger Schleicher, conselheiro do ministro da Aviação, que fora condenado à morte por Freisler, no dia anterior. Com ele, haviam sido também condenados à morte Klaus Bonhoeffer, irmão do pastor Dietrich Bonhoeffer, Friedrich Perels e Hans John. Devido ao ataque aéreo, Schleicher teve de ficar à espera, com outros companheiros de viagem, no túnel do metropolitano de Potsdamer Platz. Com ele encontravam-se a cunhada e a sobrinha. Também queriam falar com o procurador-geral Lautz sobre a sentença aplicada a Rüdiger. Quando parou a chuva de bombas e os mortíferos aviões desapareceram do céu, foi pedida a presença de um médico. Schleicher identificou-se logo e foi depois conduzido ao pátio do Tribunal do Povo, que ficava próximo da estação. Aí chegado, indicaram-lhe uma «alta personalidade» que fora atingida por estilhaços de bomba ao tentar atravessar o pátio. Mas o homem já estava morto. Schleicher baixou-se e viu-lhe o rosto. Era o mesmo homem que, na véspera, condenara à morte o seu irmão Rüdiger: Roland Freisler.

Schleicher recusou-se a passar a certidão de óbito e pediu para falar com o ministro da Justiça. Quando, finalmente, conseguiu falar com ele, Thierack declarou-se muito contristado com a morte de Freisler, prometendo, no entanto, a Schleicher adiar a execução do irmão e dando-lhe, assim, a esperança de a sentença poder ser revista depois de ser apresentado o pedido de indulto.

Mas todos os esforços foram vãos, no entanto. Semanas mais tarde, na noite de 22 para 23 de abril de 1945, Rüdiger Schleicher e mais dezasseis condenados foram executados por um pelotão de fuzilamento. Entre os mortos encontravam-se Bonhoeffer, John e Perels.

*

Freisler, o assassino da beca vermelha, estava morto. em 5 de fevereiro de 1945, o ministro Thierack enviou os pêsames à viúva:

Estimada Senhora Freisler,

Foi com grande comoção que tomei conhecimento do pesado golpe do destino que a afetou e à sua família. O seu marido faleceu no meio de uma incansável atividade e perante novas tarefas mais difíceis. A dimensão da perda para a justiça é já visível nas poucas horas que passaram desde esse momento.

Foi arrancado ao nosso meio um homem rico em ideias, um trabalhador infatigável, um nacional-socialista profundamente convencido da grandeza da missão alemã, da justiça e da vitória da causa alemã, um fiel seguidor do Führer.

Se esta é uma perda muito trágica, ela também simboliza o preenchimento da sua vida militante. O seu marido caiu no local de trabalho onde, como presidente do mais elevado tribunal político, correspondia ao especial sentido de responsabilidade que foi confiado à sua liderança.

Expressando-lhe, estimada Senhora, os pêsames da justiça alemã, permito-me expressar-lhe também os meus pêsames pessoais. Que o pensamento de que o seu esposo continua a viver nos seus filhos lhe dê força para encontrar um conforto.

Heil Hitler! Estou ao seu dispor […]

E seguia-se a assinatura de Thierack. A nota de imprensa foi distribuída no mesmo dia pelo Gabinete de Imprensa do Ministério da Justiça, com um pedido dirigido às redações para se refrearem de fazer «mais comentários à comunicação citada», e era breve, ostentando o título «Tombou o Dr. Roland Freisler»:

Durante o ataque terrorista de 3 de fevereiro à capital do Reich, foi morto o presidente do Tribunal do Povo, Dr. em Direito Roland Freisler, brigadeiro-general do Corpo Motorizado Nacional-Socialista. O Dr. Freisler, de 52 anos, era membro do NSDAP desde 1925, tendo recebido a medalha de honra do Partido. Foi deputado no Reichstag e conselheiro do Estado no governo regional prussiano. O Dr. Freisler era bem conhecido, por largos setores da população, por ser um paladino infatigável do Direito alemão nacional-socialista.

O funeral foi tão simples quanto a notícia da sua morte. Só a família, alguns colegas do Tribunal do Povo e um punhado de funcionários nacional-socialistas estiveram no cemitério de Dahlem, em Berlim.

O Ministério da Justiça enviou um representante. Thierack assinalou, deste modo, a sua relação ambivalente com Freisler, que, em certos momentos, quase chegava à rejeição. Thierack vira-o sempre como um homem de leis desagradável e, por vezes, imprevisível. Agradavam-lhe as convicções consequentes do juiz e a sua lealdade incondicional ao Führer. Apesar disso, houve sempre uma fratura entre os dois homens. Dar-se-ia o caso de Freisler alimentar ambições secretas quanto à pasta ministerial da justiça? Mas Freisler estava morto e a carta de condolências que endereçou à viúva era uma simples formalidade. De qualquer modo, a ausência de Thierack no funeral de Freisler expôs mais uma vez a sua profunda aversão ao juiz.

Punha-se, agora, a questão de saber quem seria o seu sucessor. Foi finalmente presidente do Tribunal do Povo o Dr. Harry Haffner, antes procurador-geral em Katowice e, como Freisler, um fanático nacional-socialista. Em 14 de março de 1945, escreveu Goebbels no seu diário: «De momento, não fazemos julgamentos militares em Berlim, embora nos tenhamos tornado uma cidade próxima da frente de batalha. Mas enquanto o Tribunal do Povo se mantiver em Berlim, podemos contentar-nos com ele.»

Sob a presidência de Haffner, os juízes do Tribunal do Povo continuaram a fazer o seu sangrento trabalho de forma sistematicamente impiedosa. E os acusados que alimentaram algumas esperanças com o desaparecimento de Freisler não foram poupados à pena de morte. Freisler morrera, mas o seu espírito ainda estava bem vivo nas mentes dos seus colegas, que não ficavam atrás do presidente morto. Kleist-Schmenzin foi sentenciado à morte, em 15 de março de 1945, pelo vice-presidente do Tribunal do Povo, Krohne, também por alta traição. De nada lhe serviu apresentar-se como «inimigo do parlamentarismo» e invocar o facto de os dois filhos servirem na Wehrmacht. Em 9 de abril — quando os disparos dos canhões dos Aliados já atingiam Berlim —, Kleist-Schmenzin morreu na guilhotina.

Em abril de 1945, a Alemanha estava em escombros. As forças americanas, soviéticas e inglesas ocupavam as cidades alemãs. O fim da guerra aproximava-se. Em 20 de abril, dia em que Hitler fez 56 anos, Goebbels proclamou com grande pompa pela rádio que «o Führer percorrerá o seu caminho até ao fim e o que o espera não é a derrota do seu povo, mas um novo começo, de felicidade e de florescimento sem igual da germanidade». No mesmo dia, Hitler condecorou com a Cruz de Ferro no jardim da chancelaria do Reich os homens da Volkssturm. Foi uma última cerimónia, desesperada e ilusória.

O Tribunal do Povo foi transferido de Potsdam para Bayreuth, continuando aí a decretar as suas sentenças de morte, até ao seu amargo desfecho. Depois, não houve mais processos. Em 30 de abril, a capital do Reich foi conquistada por unidades do 756.º Regimento de Artilharia do Exército Vermelho. Quando caiu a noite, depois das últimas, e terríveis, escaramuças, a bandeira vermelha da União Soviética já ondulava no céu de Berlim.

Algumas horas mais tarde, Adolfo Hitler suicidou-se no bunker da chancelaria do Reich, na companhia de Eva Braun, com quem se casara pouco antes. O seu criado de quarto encontrou-o ensanguentado com uma pistola na mão. Ao seu lado, Eva Braun, que se envenenara. Juntamente com o secretário pessoal de Hitler, Martin Bormann cobriu os corpos com cobertores e levou-os pelas escadas estreitas de acesso ao bunker para o jardim da chancelaria, onde os regaram com gasolina e os queimaram. Ao cair da noite, os guarda-costas enterraram os corpos carbonizados numa cratera aberta por um obus e, com eles, os dois cães de Hitler, que tinham sido envenenados.

No dia seguinte, foi a vez de Joseph Goebbels e a sua mulher Magda se suicidarem diante da chancelaria, depois de entregarem os seis filhos ao médico da SS, Helmut Kunz — que lhes injetou uma dose mortífera de morfina —, dizendo-lhes: «O doutor vai dar-vos uma injeção que agora se dá a todas as crianças e aos soldados.» Depois, o casal Goebbels ingeriu veneno no jardim da chancelaria e regou-se com gasolina, antes de uma ordenança os incendiar.

Goebbels teve o cuidado de encenar a sua própria morte, ao estilo dos acontecimentos que montara durante os seus anos de ministro da Propaganda. E, com este último ato, o profeta ia de novo ao encontro do seu messias.

A Alemanha de Hitler estava derrotada. O assassinato de milhões de pessoas acabou, finalmente. O fim da guerra, nos primeiros dias de maio de 1945, trouxe também o fim de um dos capítulos mais sinistros da história do Direito alemão, o Tribunal do Povo. Deixou de existir um tribunal do terror.

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E Freisler, que defendeu este tribunal como ninguém? Sobreviveu-lhe como uma lenda diabólica? Que tipo de pessoa era? Um psicopata? Um juiz nazi fanático? Ou uma pessoa que se limitou a aplicar consequentemente as leis que lhe entregaram? Leis de uma justiça que odiava as pessoas, de um regime homicida. O psicograma de Freisler tem muitas facetas e não é, de modo nenhum, esclarecedor. O que basta para, mais uma vez, se fazer a pergunta: quem era este homem?

Freisler era um nacional-socialista convicto e fervoroso. Até ao fim. Já antes de ser nomeado para a presidência do Tribunal do Povo defendera, incansavelmente e sem uma hesitação, um novo Direito nacional-socialista. A infração à lei não era a única coisa que para ele contava, mas também a maneira de pensar. A intenção de cometer um delito político já equivalia ao delito consumado e deixou-o escrito nos seus incontáveis textos, sendo, assim, criador de um «Direito penal da mente».

Segundo a sua conceção do Direito, o juiz ocupava o lugar central. Era ele quem presidia ao julgamento, quem dominava os seus colegas que o assistiam, bem como os juízes leigos, e que finalmente ditava a sentença. Dirigia os processos ao estilo de um tribuno: tirânico, a voz estridente, os gestos teatrais. Presidia às audiências de julgamento de maneira autoritária e desviava-se da lei. As suas condenações eram movidas por um único objetivo: exterminar os adversários políticos. Mas nem todos os que perante ele compareciam estavam perdidos. O seu estilo e os seus juízos eram arbitrários e tendenciosos. O seu maior preconceito visava especialmente o clero católico, usando de mais benevolência perante os protestantes. Em segundo plano, estava o judaísmo mundial e, em comparação com os discursos intermináveis e fanáticos de outros destacados nacional-socialistas, até era moderado. Para Freisler, o pior que um réu podia fazer era desculpar-se. Quem, em contraste, se apresentasse «como um homem», poderia esperar de Freisler pelo menos algum respeito. O juiz até podia, por exemplo, surpreender o réu e o público com uma amabilidade e uma generosidade invulgares, dizer um gracejo, acusar de repente ou ditar uma pequena pena de prisão. Mas também podia, por outro lado, decretar uma sentença de morte por uma transgressão de menor importância. Freisler gostava das disputas na sala de audiências, ocasiões em que via uma possibilidade de exibir a sua vasta cultura geral e de aplicar a sua retórica refinada. Não evitava a guerra de palavras. Pelo contrário, era uma coisa que o estimulava de maneira especial, levando-o com frequência a monólogos vaidosos e sofisticados. Era, em tudo, um indivíduo imprevisível e inescrutável, cheio de contradições marcantes. Não era uma pessoa racional e dificilmente poderia ser caracterizado como tendo estado de espírito equilibrado ou estável.

Era tão imprevisível a sua psique como era refinada a sua compreensão. Freisler era considerado um homem de vastos conhecimentos e juridicamente brilhante, possuindo também uma inteligência bem pronunciada. Como é que foi possível que essa grande inteligência, de que ninguém duvida, ficasse suspensa quando se tratava do Führer, do Partido e da Pátria? O historiador Hansjoachim W. Koch definiu-o como «um crente autêntico» e, na realidade, a sua relação com o seu ídolo era marcada por uma dependência desprovida de sentido crítico.

E Freisler acreditaria, na realidade, em tudo o que reafirmava com uma insistência penetrante nas suas sentenças como sendo a essência do nacional-socialismo? Estava, de facto, tão convencido da excelência e da infalibilidade do Terceiro Reich? A vitória final parecia-lhe na realidade uma certeza irrefutável? Estas perguntas não são de resposta fácil e é adequado duvidar. Freisler tinha acesso a numerosas fontes de informação inacessíveis à maioria dos alemães. Recebia relatórios da Gestapo, da Polícia e de órgãos judiciais, contendo impressões gerais e conclusões sobre situações concretas. Viajava com frequência e encontrava-se com altos funcionários do regime, membros do Governo, do Partido, das Forças Armadas, da economia, da justiça e da administração pública, o que lhe permitia ter um quadro da política externa e da situação militar, e do que se passava além das fronteiras do Reich. Freisler fazia parte do grupo dos homens do regime que mais bem informados estavam e, por isso, deveria ser-lhe clara a faceta enganosa do que tanto idealizava. Mas se, apesar de tudo, se agarrava tanto ao nacional-socialismo, mesmo fanaticamente, encarando cada crítica como um sacrilégio passível de pena de morte, só poderiam ser psicológicos os seus motivos.

Freisler foi, até ao fim, um nacional-socialista tenaz e intransigente, recusando-se a fazer concessões mesmo quando o fim do regime de Hitler já era iminente. Quis manter até ao fim a orientação do Tribunal do Povo, o extermínio dos seus adversários e as suas opções, sem olhar uma única vez para trás, por muito horrível que o final pudesse vir a revelar-se. Desviar-se desse rumo seria, para ele, uma traição. Nos seus últimos processos, a sua atitude fanática revelou-se de maneira especial, sobretudo nos que visavam os suspeitos do 20 de julho: quem duvidasse do nacional-socialismo e da «vitória final», como esses homens haviam feito, sabotava a «causa alemã» e fazia «causa comum» com o inimigo. Tiveram todos de se submeter à impiedosa vingança de Freisler.

Estaria, com isso, a proteger-se das suas próprias dúvidas? Estaria a tentar resolver o seu dilema psicológico de ter de viver a queda de um mundo nacional-socialista em que acreditara, e em que ainda acreditara, punindo nos outros as suas próprias dúvidas com tanta crueldade e tão impiedosamente?

Para muitos — incluindo Thierack —, Freisler era, pela avaliação que fazia do seu trabalho durante os últimos anos da guerra, mentalmente, fora do normal. Mas sê-lo-ia, realmente? Ou será essa visão uma desculpa conveniente para os que partilhavam da culpa e tentavam desculpabilizar-se a si próprios com a fábula de um Freisler doente mental?

Certo é que a radicalização do Direito e a imoderada prática das sentenças do Tribunal do Povo não começaram pela nomeação de Freisler para a presidência deste órgão. De acordo com a lei dos Plenos Poderes, ele apenas preencheu os requisitos definidos pelo Führer e pelo Partido, mesmo quando a legislação se desviava da Constituição. Freisler limitou-se a prosseguir a tendência defendida e aplicada desde o início da guerra pelo seu antecessor, Thierack, que, como juiz-presidente da 1.ª Vara, chamara a si todos os processos de maior relevo. A era de Freisler no Tribunal de Povo coincidiu, no tempo, com a atitude defensiva da Alemanha na guerra. É aí que se encontra uma explicação para o dramático aumento do número de sentenças de morte a partir dos processos «noite e nevoeiro» e na sequência do 20 de julho, iniciado ainda no mandato de Thierack.

A radicalização da justiça refletiu a radicalização da guerra, e Freisler foi chamado a ditar sentenças impiedosas na «primeira linha da frente interna». Num ambiente para o qual ele próprio contribuíra, uma pessoa como Freisler tinha de acreditar que era legal tudo o que acontecia. Numa máquina de injustiça sem nenhum controlo, Freisler tornou-se um mestre manipulador. Um mestre da morte.

O Tribunal Militar de Nuremberga classificou Freisler como «o mais sinistro, mais brutal e mais sanguinário juiz de toda a história da administração da justiça alemã» e pô-lo, com Himmler, Heydrich e Thierack entre os homens «de carácter desesperado e abominável conhecidos em todo o mundo».

Não se pode contradizer esta avaliação. Só que, depois de 1945, Freisler foi também transformado no bode expiatório da justiça alemã, assim como no seu álibi. Os homens de leis nacional-socialistas aproveitaram-se da demonização de Freisler para lhe atirarem todas as suas culpas.

Podiam, assim, sentir-se como juristas que, em tempos difíceis, se limitaram a cumprir o seu dever, como a lei prescrevia. E puderam ver-se a si próprios como seduzidos e enganados, como vítimas, como perpetradores e cúmplices. A sua má consciência — quando a tinham — foi aplacada e os sentimentos de culpa transferidos para outros. Um juiz fanático e sanguinário como Freisler serviu perfeitamente para essa função.

Roland Freisler foi um juiz assassino numa época de assassínios. Uma época em que não apenas ele, mas todos os homens de leis se tornaram carrascos de um regime assassino. Freisler não foi a figura diabólica de um vilão saído de um inferno no além. A sua origem foi o próprio centro do Reich. Foi um alemão impiedoso próprio do seu tempo — e foram os Alemães que o tornaram possível.