INTRODUÇÃO

A ATUALIDADE DO PASSADO

Enquanto me preparava para escrever este livro, pensei se hoje ainda faria sentido escrever sobre o passado nacional-socialista. Fiz esta pergunta a pessoas minhas conhecidas, que são da opinião de que o passado é algo que agora já lá vai. Fi-la também a amigos, que argumentam que uma história tão negativamente preenchida como a nossa devia ter fim.

Salientei que a maioria dos alemães — e, de modo nenhum, apenas a geração mais velha — não quis ainda conhecer toda a verdade sobre o que os seus pais e avôs fizeram, e permitiram que se fizesse, entre 1933 e 1945. E procurei dar exemplos de todos os esforços coletivos e individuais tendentes a aliviar o peso da História, o que me valeu ouvir dúvidas, manifestações de incompreensão e, não poucas vezes, protestos. Nem todos se tornaram nazis, nem todos são culpados, não foram só os Alemães a cometer atos de crueldade… A mim, isto soou-me a uma justificação, depois de se tentar rejeitar a culpa.

Uma coisa é certa: no dia zero depois de Hitler, houve também pessoas na Alemanha que sentiram vergonha e desgosto pelo que até então havia acontecido. E é verdade que já nesse momento, recém-saídos da catástrofe, foram muitos os que negaram os acontecimentos e tudo o que haviam vivido, em vez de aceitarem conscientemente a responsabilidade pela sua história. Um povo a fugir do seu passado. Foi mesmo assim. E hoje, como é?

Quererá a geração do pós-guerra, a que eu pertenço e que, para citar o antigo chanceler da República Federal, Helmut Kohl, «foi abençoada por ter nascido mais tarde», correr de uma vez por todas a cortina sobre esse passado tão duro? Estará ela, a geração política e moralmente sem culpa, afastada para sempre do conflito com o regime de Hitler e a sua herança? Ou: não começará a responsabilização desta geração com a questão de saber como se relaciona com a culpa dos seus avós e dos seus pais? Não quererá recordar essa responsabilidade?

Neste livro, fala-se de culpa e de expiação, de fracasso e de cobardia. De coragem e de honradez. De criminosos e de vítimas. De repressão e de negação. Trata-se de recordar.

No centro desta obra, encontra-se — de forma única — uma instituição nacional-socialista que desprezou de modo especial os seres humanos e que, sem o apoio e a complacência dos homens de leis, não poderia ter existido: o Tribunal do Povo. É verdade que, nos últimos anos, se trabalhou numa escala muito abrangente e nos domínios científico, jurídico, político e jornalístico sobre o tema complexo a que se chama, geralmente, «A justiça no Terceiro Reich». Portanto, é hoje possível ao leitor interessado seguir o caminho fatal percorrido pela justiça na Alemanha de Hitler, da euforia dos primeiros tempos ao seu fim destruidor. Apesar da extensa historiografia sobre o aparecimento, as estruturas, a função e o quotidiano do Tribunal do Povo, pouco existe hoje em dia sobre a vida e a atividade de Roland Freisler, nome associado à época mais brutal desse Tribunal do Terror.

Freisler, que foi juiz-presidente do Tribunal do Povo, entre 1942 e 1945, já em 1934 defendia incansavelmente um Direito nacional-socialista. A sua carreira, a sua influência e a sua morte são descritas nestas páginas. E como é que foi possível que um jovem estudante do ensino secundário, oriundo de um meio pequeno-burguês e conservador, se tenha tornado um juiz capaz de condenar à morte sem piedade? Como é que se desenvolveu o seu mundo mental, como é que se orientaram as suas noções do Direito?

De uma biografia puramente pessoal poucas novidades se podem extrair. A História não deve ser reduzida ao destaque público ou ao que é privado. A personalidade de Freisler, como indivíduo, já apareceu no passado, estilizada como uma criatura não humana e demoníaca da justiça alemã nacional-socialista, muitas vezes com a intenção de relativizar os crimes de milhares de colegas juízes que encarnaram o terror das camisas castanhas do nazismo. Mas a verdade é esta: Freisler não era um demónio na sua beca vermelha, mas um executor extraordinariamente consequente da prática jurídica nacional-socialista.

Por esse motivo, preferi passar da pessoa de Freisler às estruturas do Reich nacional-socialista, verificando como as duas partes se correspondiam e interligavam. A história da vida de Roland Freisler é contada no contexto do seu tempo — e ilustrada por uma grande quantidade de documentos —, até porque o seu papel não ficou limitado ao de presidente do Tribunal do Povo. Freisler, como advogado, membro do Governo, publicista e juiz nacional-socialista, foi um homem que, sem revelar oportunismo, nunca violou a lei e que, interpretando-a de acordo com o regime nazi, a aplicou sem piedade. Quem comparecia diante dele só podia — especialmente nos últimos anos da guerra — esperar pela condenação à morte. Por isso, este livro ocupa-se também das vítimas, da história das suas vidas, do seu destino. Um capítulo mais abrangente documenta as suas condenações à morte. São decisões que constituem testemunhos silenciosos de uma justiça impiedosa.

Durante o período de pesquisa que fiz para esta obra, falei com muitas testemunhas ainda vivas. Eram pessoas que tinham comparecido perante o Tribunal do Povo, que foram condenadas à morte e que sobreviveram, mas apenas porque o fim da guerra as salvou da execução. E também falei com outras que, na sua qualidade de juízes encarregados da aplicação das leis nazis, ditaram sentenças implacáveis que, não poucas vezes, tiveram consequências fatais para os acusados. Alguns deles — e foi essa a minha impressão — puderam viver sem problemas com a sua consciência. Consideram-se «inocentes», apesar da «carga» que transportam, sentindo que a sua crença na Pátria foi mal empregada «pela política». Raro é quem reconhece ter tido uma responsabilidade pessoal e, muito menos, se mostra arrependido ou envergonhado. Pelo contrário: muitos até se veem como vítimas de uma «época fatídica». Nas conversas que mantive com antigos juízes e procuradores nacional-socialistas, não encontrei dúvidas nenhumas do seu comportamento. Só lhes vi uma complacência embora difícil de tolerar.

Quando Hans Filbinger, chefe do governo (ministro-presidente) do estado alemão de Baden-Vurtemberga, se viu nas primeiras páginas dos jornais, no decénio de setenta, devido às sentenças de morte proferidas enquanto juiz de guerra da Marinha, tendo-se demitido do cargo depois de ter sido forçado a fazê-lo (o que raras vezes aconteceu no período do pós-guerra), o dramaturgo Rolf Hochhuth cunhou a expressão «juristas temíveis». Estes juristas temíveis defendem ainda hoje a justeza das suas decisões. A justificação, vergonhosa, era a de que «O que antes foi legal não pode agora ser ilegal», o que também caracteriza a atitude de Filbinger. É uma justificação, muitas vezes forçada, depois de 1945, a de que estavam obrigados à obediência. Mas a realidade é esta: entre 1933 e 1945, os juízes alemães transformaram, por vezes fanaticamente e com grande sangue-frio, num papel sem valor, a Constituição de Weimar e aplicaram a lei, só formalmente, com uma brutalidade ponderada e sem hesitação. Só que nenhum deles foi obrigado a fazê-lo. Agiram, sim, por decisão própria. Foram os homens de mão e os executores do Estado nacional-socialista. São poucos os que ainda vivem entre nós. De idade avançada, foram bem tratados e recebem reformas avultadas pagas pelo Estado. A maioria continua ainda convencida de que cumpriu o seu dever. Roland Freisler não foi, de todo, um demónio saído das profundezas do inferno, mas sim um homem do povo, um alemão. A sua carreira foi uma carreira alemã. Foi um representante implacável de uma justiça incapaz de ter piedade. Um cúmplice consequente de um sistema homicida. Um assassino exemplar vestido com o traje formal (a beca) dos juízes. E foram os Alemães que tornaram possíveis os seus atos, o seu trabalho e a sua carreira. Se esta obra, depois de traduções em diversas línguas estrangeiras, conhece agora uma nova edição, é porque ela mostra que a nova geração continua interessada em saber o que aconteceu. Para isso também contribuem documentários televisivos, como a produção da MDR sobre Freisler, com o título Hitlers williger Vollstrecker («O Executor Voluntário de Hitler») que, com grande repercussão, foi retransmitido pela televisão pública ARD e pelas suas subsidiárias.

Este é um livro contra o esquecimento. Porque não é o esquecimento que nos torna livres, porém, a memória.

Frankfurt, maio de 2014

Helmut Ortner