PRÓLOGO

UMA SENTENÇA DE MORTE OU A SEGUNDA CARREIRA DE ROLAND FREISLER

Sexta-feira, 17 de novembro de 1944, por volta das 10 horas. Um furgão fechado transporta Margot von Schade, de vinte e um anos, do Centro de Detenção de Moabit, em Berlim, para o Tribunal do Povo pela Bellevuestrasse. Margot viaja em silêncio, sentada diante de duas outras mulheres: Barbara Sensfuß, de vinte e três anos, e Käthe Törber, de quarenta. São as três acusadas de «desmoralização das forças militares». O julgamento começa dentro de poucas horas. Que vão fazer com elas? Que é que as espera?

Só nessa manhã é que Margot e as duas outras mulheres foram informadas de que vão ser julgadas nesse mesmo dia. Agora, na viagem pelas ruas de Berlim, que Margot só fugazmente vê pelo vidro da frente e por cima das costas do motorista, sente todo o peso da sua miséria. E sente-se sozinha. Pensa na família: na mãe, no padrasto, na irmã. Onde é que estão? O medo domina-a.

Uma hora mais tarde: uma grande sala, com as paredes caiadas de branco. Diante da mesa, que é a tribuna dos juízes, há três cadeiras — são as cadeiras onde as acusadas se sentarão. Em cada lado, há guardas em uniforme. Intimidam: «Daqui ninguém foge», parecem dizer os seus semblantes. Na parede fronteira, está uma bandeira que ninguém pode deixar de ver — que vai do chão ao teto — com a cruz suástica no seu fundo vermelho da cor do sangue. À frente, num pedestal pequeno, está o busto em bronze de Hitler. Margot von Schade olha, como que hipnotizada, para o gigantesco pano vermelho. É uma visão ameaçadora. Olha de relance para a bancada do público. É uma massa anónima, com uniformes castanhos e negros, num murmúrio abafado. Tudo lhe parece nebuloso, irreal.

«Em pé!» — O tom de comando militar da ordem dada por um dos guardas atravessa a sala de audiências. Há um silêncio repentino. A porta ao lado da mesa dos juízes abre-se. Os juízes entram: becas vermelhas, boinas vermelhas, uniformes cinzentos e negros. São os juízes-assessores e, à frente deles, o juiz-presidente: Roland Freisler. Ela fita-o diretamente. Os olhares dos dois cruzam-se por instantes. Freisler olha rapidamente para o relógio de pulso. Começa o julgamento

Margot von Schade observa o tribunal como se estivesse em transe. Mais tarde — e nem sequer se apercebe de quanto tempo passa, entretanto —, sobressalta-se ao ouvir gritar: «Ré Schade! De pé!» A voz cortante de Freisler não pode deixar de se ouvir. Ponto por ponto, lê os artigos da acusação. Verdadeiramente, nem lê. O que dele se ouve é uma berraria. Depois do «vil e pérfido atentado de 20 de julho contra o nosso Führer», prossegue, num tom solene e com um grandioso gesto teatral, a ré expressou-se, publicamente, de forma subversiva. Depois da comunicação radiofónica especial sobre a «salvação milagrosa do Führer», disse a ré: «Que azar…» E não foi suficiente. Os «oficiais criminosos» que levaram a cabo o atentado foram, segundo afirmou publicamente a ré, «não uns cobardes, mas capazes de, ao contrário, mostrar a sua coragem».

Um murmúrio de espanto percorre a bancada do público e aumenta quando Freisler, com a voz a tremer de indignação, cita da acusação as palavras que a todos os nacional-socialistas deviam parecer o auge da degeneração: «Cabo de merda», dissera a degenerada rapariga… «Incrível!»

Freisler fica fora de si. O seu olhar de fanático está cravado em Margot von Schade. Margot olha para o chão. Como é que pode reagir a um monólogo destes tão raivoso? Como é que se pode defender? Se consegue interromper, mesmo que por uma só vez, as tiradas de Freisler, acaba por ser severamente repreendida depois de dizer algumas frases. Não há ninguém na sala que a ajude? E onde é que está o seu defensor? Margot von Schade sente-se impotente. Abandonada. Sozinha.

Antes, quando entraram as outras rés que aqui também estão como testemunhas de acusação, quis dizer muitas coisas. Quis contar como realmente foi. Descrever o que na realidade aconteceu nessa altura, depois da comunicação radiofónica de 20 de julho. Mas Freisler não a deixou falar.

As outras duas mulheres estão sentadas a poucos passos dela. Já foram pessoas em quem confiava, no entanto, agora, é a ela a quem lhe atribuem todas as culpas. Só querem salvar a pele. Margot von Schade suspeita de que neste tribunal todas as denúncias são bem recebidas. É uma lição para todos quantos estão na sala, para que vejam e sintam o que acontece a alguém que está fora da «Comunidade do Povo», pensa ela. E eu sou aqui a feiticeira. Oferecida para a fogueira…

A certa altura — já está exausta e nem consegue acompanhar a macabra representação — apercebe-se da voz monótona da sua defensora. As alegações que está a proferir soam a rotineiras. Mas será mesmo a «sua» defensora? É uma mulher que não tem a sua confiança. Foi só durante alguns minutos, e uma única vez, que falou com ela sobre o processo na prisão. A advogada não sabe nada sobre ela, nem quer saber. Para ela, é só mais um caso como tantos outros, um «número de processo». Foi contratada como advogada oficiosa e limita-se a cumprir o seu dever, como dela se espera.

Mas agora que o julgamento, gélido, se aproxima do fim, Margot von Schade sente que a sua vida está mesmo em perigo. Nas últimas horas, tivera de ver como as outras duas acusadas começaram a ser consideradas, pelo tribunal, «enganadas» e, «no fundo», camaradas leais. Os seus defensores apresentaram argumentos para serem absolvidas e até Freisler teve palavras de compreensão para com elas e para com o seu comportamento.

Com ela é tudo diferente. Desde o começo que se sentiu atingida pelo repúdio exasperado de Freisler. Mas por que motivo ele a ataca? Por ela ser de origem nobre? Será que, desde 20 de julho, todas as pessoas que têm um «von» no nome, como Stauffenberg, serão suas cúmplices? Cairá sobre ela toda a severidade de Freisler porque, nas respostas que dá ao juiz-presidente, não mostra o arrependimento que ele deseja ouvir?

É nisso que pensa Margot. Pois não lhe disse já antes Freisler, com uma atitude cínica: «É esta a família, o ambiente de onde provém a ré…»? Não lhe disse, com uma indignação que o fazia espumar: «Diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és…»? Tudo foi usado contra ela, como foi o caso da carta que a irmã, Gisela, lhe enviou para a prisão e que foi, claro, intercetada pelas autoridades para ser imediatamente tomada como mais um elemento para a acusação. Gisela referia-se a um encontro de amigos onde haviam dançado e bebido… o suficiente para Freisler ver nela mais uma prova da decadência da sua família de origem. A jovem Margot von Schade, a fedelha rebelde que ousara «ofender publicamente o Führer de uma maneira vergonhosa», e que nas suas afirmações subversivas até lamentara o fracasso do atentado, tem de ser transformada num exemplo dissuasor.

O coletivo retira-se para deliberar. Mas não está tudo já decidido há muito tempo? Abatida e enervada, Margot von Schade continua sentada na sua cadeira. O tempo parece ter parado. Margot sente-se num vácuo.

A certa altura, acaba por perder a noção do tempo e repara, de súbito, que o juiz-presidente e os seus colegas estão de regresso à sala. É o momento do acórdão. Ouve outra vez a voz cortante de Freisler. Ninguém pode deixar de a ouvir.

«Ré Sensfuß — de pé!»

«Absolvida!»

«Ré Törber — de pé!»

«Absolvida!»

Margot sente um assomo de esperança. Se as outras duas rés são absolvidas, talvez se dê o caso de ela receber apenas uma pena de prisão…

«Ré von Schade — de pé!»

Margot olha para a frente: as becas vermelhas, a bandeira de fundo vermelho… O busto do Führer…

«Por desmoralização das forças militares, por favorecimento do inimigo, manifestações de derrotismo e traição à Pátria, condeno-a… à morte!»

Morte? Eu?! Não pode ser… Eu não sou uma criminosa, não sou uma assassina… Condenação à morte?! Enquanto Freisler lê os fundamentos da sentença, Margot esforça-se por tomar consciência das monstruosas consequências da condenação. Condenada à morte? É assim que tudo acaba? De repente? Por causa de umas frivolidades numa reunião de amigos? As outras duas também lá estavam, riram-se, disseram piadas. Porque é que foram absolvidas? E porque é que eu hei de ser morta?

Margot von Schade, que hoje se chama Margot Diestel, sobreviveu. O fim prematuro do «Reich dos Mil Anos» salvou-lhe a vida. O avanço das forças russas evitou que fosse cumprida a ordem de execução. Viveu o período dos ataques aéreos a Berlim na sua cela antes de ser transferida para Stolpen, na Saxónia. E foi aqui que um guarda corajoso se terá recusado a disparar sobre os presos nos últimos dias da guerra, quando já os militares russos se preparavam para entrar na cidade, emitindo os documentos de libertação: «Margot von Schade é liberta hoje.» Carimbo, assinatura, data. Foi em 3 de maio de 1945.

Quatro dias mais tarde, o coronel-general Jodl assinou a capitulação alemã na cidade francesa ocidental de Reims. A guerra chegava ao fim.

*

Vinte e quatro anos mais tarde, Margot von Schade — uma das poucas pessoas que sobreviveram — começou a escrever a história da sua vida. A sua juventude, a denúncia, a detenção, a condenação à morte pelo Tribunal do Povo, o sofrimento horrível na prisão, o medo constante da morte — era o que queria, e apenas, contar aos seus netos. Deviam saber o que se passara na Alemanha. Foi quase por acaso que surgiu dessa maneira um comovedor documento sobre a história contemporânea. As memórias do período cinzento dos anos do medo — registadas pelo marido de Margot, Arnold Diestel — encontraram uma editora. É um livro que deve abrir os olhos à nova geração.

Porque: «O que uma vez aconteceu não deve voltar a acontecer.»

Olhando para o passado, Margot Diestel não se vê como uma lutadora da resistência, nada disso. Mas, na sua juventude, viu o significado do domínio dos nacional-socialistas na Alemanha e no mundo: «Como rapariga de vinte e um anos na cidade ainda pacífica de Demmin, sabia muitas coisas e intuía outras, e ainda vivia com muitas suspeitas, repugnava-me o sistema criminal e tinha opiniões muito livres. Como vivíamos numa paz muito profunda, como se não houvesse denúncias, Gestapo ou campos de concentração, dizia o que me apetecia», recorda. A sua despreocupação quase lhe custou a vida… em nome do povo alemão. Margot transcreveu no seu livro os pormenores da condenação. É um documento que retrata uma justiça de terror:

Im Namen des Deutschen Volkes!

(Em nome do povo alemão!)

No processo-crime contra Margot von Schade, treinadora de cavalos, moradora em Demmin, nascida em 27 de março de 1923, em Burg Zievrich (distrito de Bergheim, no Erft),

por desmoralização das forças militares,

a 1.ª Vara do Tribunal do Povo, no seu julgamento da acusação recebida, em 30 de outubro de 1944, do senhor procurador do Ministério Público, de 17 de novembro de 1944, em que participaram

na qualidade de juízes:

o presidente do Tribunal do Povo, Dr. Freisler, que preside,

o diretor do Tribunal Distrital, Dr. Schlemann,

o brigadeiro-general da SA, Hauer,

o tenente-general do Corpo de Transporte Automóvel do Exército e diretor ministerial, Offermann,

o gauleiter interino, Simon

e, como representante do Ministério Público no Tribunal Distrital, von Zeschau

considerou provado:

que Margot von Schade elogiou os assassinos de 20 de julho, lamentou o fracasso do atentado contra o nosso Führer, tentou desprestigiar o nosso Führer da maneira mais odiosa e, numa vergonhosa atitude de degradação pessoal, manteve uma conversa «política» com um russo.

Ficando para sempre desonrada, é, por isso, condenada à morte.

Fundamentação:

A ré confessa ter dito, relativamente ao atentado: «Que azar!»

Ou seja: que azar que o atentado tenha falhado!!!

Esta conduta, só por si, afasta-a de nós. Porque não queremos ter nada, mas mesmo nada, com quem se declara solidário com os traidores ao povo, ao Führer e ao Reich, que, com essa traição, nos deixam cobertos de vergonha e empurrados para a morte.

Margot von Schade, e isso pode constar do elemento que completa o retrato da sua abjeção, pronunciou estas afirmações torpes como corolário da sua atitude de absoluta traição e desonra.

[…]

Não é de estranhar que ela, como confessou, quando, com as suas amigas, ouviu a transmissão radiofónica do discurso do Führer, tenha exclamado: «Fala o Sr. Hitler!» Que uma rapariga alemã se expresse assim em 1944 só nos pode encher de ira e de vergonha.

[…]

Quem, sendo de nacionalidade alemã, numa humilhação tão desavergonhada, se envolve em conversas deste género com um bolchevique — que glorifica uma das traições mais vis da nossa História e tenta desprestigiar assim o nosso Führer — mancha todo o nosso povo. Não queremos ter nada que ver, por motivos de sanidade, com quem destrói para sempre a sua lealdade, a sua honra e a sua personalidade. Quem dissemina assim a desmoralização, segundo o parágrafo 5 do Regulamento Especial sobre Crimes em Tempo de guerra, quem se converte em cúmplice dos nossos inimigos de guerra e se esforça por encontrar entre nós germes de desmoralização (§ 91 B do Código Penal), deve pagar com a vida, pois é nosso dever proteger e preservar em todas as circunstâncias a nossa pátria e, acima de tudo, o povo que luta todos os dias pela sua vida […]

Sendo assim condenada, Margot von Schade deve também pagar as custas do processo.

Ass.: Dr. Freisler

Dr. Schlemann

Quarenta e seis anos mais tarde, em Steinhorst, nos arredores de Hamburgo, estou sentado diante da mulher que, nessa altura em Berlim, foi condenada à morte por Freisler.

Que sente hoje quando lê o acórdão que a condenou à morte? Fúria? Sentimentos de vingança? «Não», responde, abanando a cabeça, «só uma sensação de paralisia e deceção. Depois da guerra, quase todos os juízes do Tribunal do Povo voltaram a ocupar os seus cargos com a mesma categoria. A nenhum foram pedidas responsabilidades, nenhum deles foi condenado, o que é deprimente.»

O destino foi benevolente com a rapariga cheia de vida e a mulher de costas direitas dos dias de hoje. Mais tarde, mas não tarde de mais, obteve uma reparação, pelo menos por uma via privada. Não poderia contar, neste país, com uma reparação estatal. Foi uma vítima e não uma criminosa. E aqui a assistência social tem estado mais do lado dos criminosos.

*

Alguns meses antes. Já ando a recolher elementos. Estou numa área residencial, muito sossegada e elegante, de Munique perto do canal Nymphenburg, diante de um edifício moderno de onze apartamentos. No rés do chão esquerdo, há um simples cartão: Russegger. Ninguém, dos vizinhos, sabe que a velha senhora que aí mora é Marion Freisler, viúva do antigo presidente do Tribunal do Povo, Roland Freisler. «É uma mulher que vive muito recatadamente e quase não fala com ninguém», diz-me uma vizinha. E comigo a senhora Russegger também não fala. Por carta, semanas antes, pedi para falar com ela: quais são os sentimentos que hoje tem sobre os atos implacáveis do seu marido? Como é que explicou aos seus dois filhos quem era o pai? Queria perguntar-lhe isto e muito mais. Porém, a minha carta ficou sem resposta. E decidi ir a Munique para uma última tentativa, sem dúvida que inútil.

Durante as minhas pesquisas, deparei com comunicados de imprensa de 1958. O Tribunal de Desnazificação de Berlim — o último da Alemanha — decidiu impor uma multa de 100 mil marcos sobre os bens deixados por Freisler. Esta soma correspondia ao valor de dois imóveis de Berlim que estavam desde o fim da guerra em gestão fiduciária e que a viúva de Freisler reclamava como seus. Durante vários anos, lutou para que lhe fossem entregues as propriedades, argumentando que haviam sido compradas com o seu dote, todavia, o Tribunal de Desnazificação concluiu que as aquisições haviam sido feitas por Freisler com os seus rendimentos e em nome da sua mulher, chegando a essa conclusão pela coincidência de datas entre o pagamento das prestações e dos salários do juiz e as várias fases da sua carreira. Além disso, as investigações demonstraram que a família da Sra. Freisler não tinha recursos para o efeito.

Depois de uma sessão de quatro horas e meia, à qual a viúva de Freisler (aliás, a Sra. Russegger, a viver em Frankfurt) não compareceu, com a justificação de que «não podia fazer esforços», o tribunal rejeitou o seu propósito. A multa imposta pelo tribunal de Berlim na mesma altura, em 29 de janeiro de 1958, correspondia ao valor das duas propriedades, que ficaram arrestadas em vez de ser exigido o pagamento em dinheiro.

Quase trinta anos mais tarde, em fevereiro de 1985, a viúva ou, melhor, o «caso da pensão» regressou às manchetes dos jornais. E, desta vez, não por iniciativa própria. Foi o deputado social-democrata Günther Wirth, do parlamento da Baviera, que tornou público que, depois da guerra, a Sra. Russegger não só cobrou a pensão de viuvez deixada pelo marido, morto por um bombardeamento em Berlim antes do fim da guerra e quando era presidente do Tribunal do Povo, como também, desde 1974, a chamada «pensão de compensação por danos», concedida pela assistência social de Munique com a justificação de que se devia supor que, no caso de ter sobrevivido à guerra, Freisler seria «procurador ou teria uma função elevada ao serviço do Estado».

Nessa altura, este raciocínio absurdo atraiu muitas atenções. Os funcionários da assistência social da Baviera — «por motivos relacionados com o Estado de Direito» — não podiam ter a opinião de que Freisler, a ter sobrevivido, «teria sido condenado à morte ou, no mínimo, a prisão perpétua». O que lhes parecia «bastante provável» era que o juiz nazi de maior destaque tivesse continuado «a trabalhar na sua profissão ou noutra, ou que tivesse sido posta a hipótese de uma amnistia ou de uma interdição profissional de carácter temporário».

Quem pudesse ter «inventado, formulado e aprovado uma decisão dessas», escreveu nessa altura o jornal Süddeutsche Zeitung, devia ter «a mentalidade de um cão de talhante». Em quase todos os grandes jornais alemães, o «caso da pensão de Munique» suscitou reações violentas. «Quem é que pode ser uma vítima da guerra quando a desejou, promoveu e a fez prolongar?», perguntou, irritado, Franz-Josef Müller, um social-democrata de Munique que, em 1943 e com dezoito anos, compareceu diante do próprio Freisler, na qualidade de membro do grupo da resistência «Rosa Branca», e que foi condenado a cinco anos de prisão.

Quarenta anos depois de Freisler ter desaparecido com o Terceiro Reich, o caso da pensão polarizou exemplarmente as opiniões sobre a relação com o passado nacional-socialista. Numa carta enviada à direção do Süddeutsche Zeitung, um leitor afirmava que era uma vergonha que houvesse «gente que não tenha mais nada que fazer do que andar a remexer em velhas decisões sobre pensões, quarenta anos depois do fim da guerra». E esta opinião não foi um caso isolado.

Robert M. W. Kempner, que depois da guerra foi representante da acusação americana nos processos de Nuremberga, deu também a sua opinião no mesmo jornal: «Além da pensão destinada a vítimas da guerra e da indemnização, a viúva recebe também uma pensão de viuvez concedida pela Segurança Social», escreveu, acrescentando alguns pormenores muito controversos, na carta que enviou à direção do jornal. «Freisler, no entanto, nunca descontou para a Segurança Social, embora recebesse um salário elevado como juiz», precisou, salientando que «é evidente que ela não poderia receber uma pensão de viuvez porque essa pensão não é concedida quando um funcionário age de maneira desumana, pelo disposto no artigo 131.º da Constituição. Nesses casos, só é concedida uma pensão quando o empregador, neste caso o Estado, paga a diferença em nome do beneficiário. Assim, no caso de Freisler, e porque a viúva recebe da Segurança Social, deverão ter sido pagas somas consideráveis por parte do Estado.» No final da sua carta, Kempner critica o facto de ser dada a Freisler, nesta questão, a categoria de juiz-presidente e declara que, na sua opinião, ele devia ser categorizado como coveiro da justiça alemã e com o salário habitual de «um coveiro empregado num cemitério».

Assustado pelas veementes críticas públicas, o então ministro do Trabalho e da Segurança Social da Baviera, Franz Neubar (democrata-cristão, do CSU), deu indicações aos seus serviços para corrigirem a decisão inicial. Revogá-la, apesar de duvidosa, «já não era possível por motivos jurídicos», declarou mais tarde numa conferência de imprensa. E, por isso, ordenou que fosse aumentado o valor das pensões das vítimas da guerra até se esgotar a polémica indemnização.

Mas, apesar dos grandes títulos, das cartas dos leitores e da animada polémica que suscitou, este caso, no que se refere ao pagamento das pensões à viúva de Freisler, não foi único.

Muita gente poderá considerar que foi grotesco, e mesmo cínico, que os familiares sobreviventes das grandes figuras do nacional-socialismo beneficiassem, depois da guerra, de pensões e indemnizações, mas as disposições da lei federal da assistência social criavam um nicho burocrático para esses dependentes. E dele beneficiaram, já nos anos cinquenta, Lina Heydrich, viúva de Reinhardt Heydrich, tenente-general da SS e estratega da «Solução Final», as filhas de Hermann Göring e de Heinrich Himmler, e a viúva do gauleiter da Francónia, Julius Streicher, que alegou a retroatividade dos pagamentos pelo anterior trabalho do marido, quando este foi editor do panfletário jornal nacional-socialista Der Stürmer, conseguindo com isso um valor de 46 mil marcos. O Dr. Ernst Lautz, procurador principal do Tribunal do Povo e responsável por numerosas condenações à morte, recebeu, depois da guerra, um pagamento adicional de 125 mil marcos. O Dr. Curt Rothenberger, secretário de Estado da Justiça de Hitler e condenado em Nuremberga a sete anos de prisão, recebeu 197 726 marcos, além da sua confortável pensão de reforma de dois mil marcos mensais.

A novidade no caso de Freisler foi o facto de não terem valido apenas os direitos fundamentais e os antigos «méritos», ao ser considerado vítima da guerra, mas também o prolongamento artificial da sua carreira profissional (como criminoso nazi) até à idade da jubilação. Este raciocínio pode parecer absurdo, no entanto, foram muitos os argumentos, para não dizer todos, segundo os quais era correta a interpretação feita pelos funcionários de Munique. Mas não se duvida de que Freisler foi um dos mais destacados assassinos de massas do sistema nacional-socialista. No período da sua presidência — de 1942 a 1945 — e em parte em julgamentos presididos pessoalmente por ele, o Tribunal do Povo aprovou dez condenações à morte por dia. Aliás, se Freisler tivesse caído nas mãos dos Aliados no fim da guerra e se tivesse sido julgado em Nuremberga juntamente com os outros destacados criminosos do regime, teria beneficiado da possibilidade de uma sentença justa.

Mesmo assim, no processo de Nuremberga em que foram julgados os homens de leis, os acusados foram apenas condenados a penas menores de privação da liberdade que, graças à política generosa de indultos, nenhum dos réus teve de cumprir na íntegra. Da justiça federal não se poderia esperar imparcialidade no momento de julgar os antigos colegas. Já nos anos cinquenta, o Tribunal Federal de Justiça (o Supremo Tribunal da então Alemanha Federal) ignorara o passado, graças à jurisprudência aprovada que reconhecia a todos os juízes nacional-socialistas um duplo «privilégio de denegação da justiça», segundo o qual só se podia condenar um juiz por assassinato e outros delitos graves se, ao mesmo tempo, fosse culpado de «denegação da justiça». No caso dos magistrados nacional-socialistas, era para esse efeito imprescindível que se encontrasse uma «intenção direta», o que era muito difícil de provar. O perpetrador deveria ter violado, consciente ou deliberadamente, o ordenamento jurídico vigente. Mas o raciocínio era absurdo. Quase todos os juízes do Terceiro Reich, especialmente os assassinos de beca do Tribunal do Povo, agiram em total conformidade com as leis do terror do Estado nacional-socialista. No caso de Freisler, demonstrar a intenção de denegar a justiça teria sido muito mais difícil do que com qualquer outro dos juízes «castanhos» que sobreviveram à guerra e que continuaram a exercer a sua atividade profissional na justiça da república de Adenauer.

Há uma estatística esclarecedora da Autoridade Judicial de Berlim, de 1984, sobre os membros ainda vivos do Tribunal do Povo: dois juízes de círculo, um diretor de tribunal de círculo, dois juízes de tribunais superiores de distrito, quatro diretores de tribunal distrital, quatro conselheiros de tribunais superiores de distrito, seis procuradores, seis procuradores superiores e até dois juízes-presidentes de varas criminais. Neste domínio, houve uma exceção: um magistrado do Tribunal do Povo não foi aceite na administração pública depois da guerra. Por que razão, sendo assim, não deveria também Freisler estar isento de uma perseguição judicial e de ter uma segunda carreira? Nesta perspetiva, a argumentação dos burocratas de Munique até podia ter uma certa lógica. E Freisler podia continuar na sua carreira alemã.

Margot Diestel, uma das poucas vítimas sobreviventes de Freisler, recebeu, pelo seu martírio, uma única indemnização (por danos pessoais) no valor de 920 marcos. Mas o Estado concedeu uma pensão bem abonada à viúva do juiz que a condenou à morte. O que escandaliza nem é a pensão, mas a sua justificação. E é ainda mais impressionante quando se pensa que, como muitos colegas seus, Freisler até teria sido um funcionário da nova república e feito talvez carreira como «guardião da lei».

Mas não chegou a esse ponto. E a sua primeira carreira, como foi? Como é que o ambicioso estudante do ensino secundário e cadete se transformou no jurista nazi e no juiz sanguinário? Como é que chegou ao topo de uma das mais temidas instituições de terror dos nacionais-socialistas que foi o Tribunal do Povo?

E quem foi Roland Freisler?