CAPÍTULO TRÊS

O POVO, O REICH, O FÜHRER E A SUA JUSTIÇA

«Hoje, serão poucas as boas notícias para a justiça, porque, antes pelo contrário, todos os sinais apontam para novos ataques e novas lutas para se conseguir manter a existência do Direito e da jurisprudência independentes», avisou, no início de 1933, Karl Linz, presidente da União dos Juízes, dirigindo-se aos seus colegas, na coluna mensal que publicava no Deutsche Richterzeitung.

Mas este tipo de pensamentos foi rapidamente afastado. Em 19 de março de 1933, a presidência da União dos Juízes Alemães saudou, em declaração, «a vontade de o novo Governo pôr ponto final à monstruosa penúria […] do povo alemão», enquanto oferecia todo o seu apoio à «reconstrução nacional». Ao mesmo tempo, o Deutsche Richterzeitung divulgava a opinião do seu órgão superior sobre o ressurgimento da Alemanha:

Estamos convencidos de que, com a colaboração de todas as forças disponíveis para a reconstrução, poderemos sanear completamente a nossa vida pública e, com isso, concretizar o ressurgimento da Alemanha.

Em terras alemãs aplica-se o Direito alemão! O juiz alemão teve sempre consciência e responsabilidade nacionais. Teve sempre sensibilidade social e sempre se pronunciou de acordo com a Lei e a consciência. É assim que deve continuar a ser!

Que a grande obra de construção do Estado dê ao povo alemão um sentido de absoluta unidade.

A declaração terminava com a garantia de que a União dos Juízes Alemães dava ao novo Governo «confiança total».

Ao coro dos juramentos de lealdade nacional não podiam faltar outras associações profissionais. Apenas um dia depois da citada profissão de fé, também a Associação Prussiana de Juízes proclamava:

No despertar do povo alemão veem os juízes e os procuradores prussianos o caminho correto para pôr fim à penúria e ao empobrecimento monstruosos do nosso povo […] Os juízes e os procuradores prussianos veem na renovação nacional da Alemanha uma oportunidade de se juntar e trabalhar em conjunto para a reconstrução do Direito alemão e da comunidade popular alemã. Também eles devem defender a honra e a dignidade do novo Estado criado pela revolução nacional.

Nos dias que se seguiram, também a Associação Alemã de Notários e a Associação Alemã de Advogados divulgaram declarações em que saudavam com alegria «o reforço do pensamento e da vontade nacionais», assegurando ao governo nacional-socialista que poriam todas as suas forças «ao serviço do restabelecimento do povo e do Reich».

Que os novos detentores do poder já haviam começado a subordinar o Direito aos seus propósitos políticos e às suas convicções racistas já o mostravam publicamente os porta-vozes dos homens de leis. Apenas um dia depois do incêndio do Reichstag, em 28 de fevereiro de 1933, foram revogados direitos fundamentais por intermédio do Decreto para a Proteção do Povo e do Estado. Foi um verdadeiro golpe de mão pelo qual foram criadas as condições iniciais para a perseguição dos inimigos políticos.

Ao mesmo tempo, o novo Governo aprovou também o «decreto Contra a Traição ao Povo Alemão e as Atividades de Alta Traição», que esbateu as fronteiras entre a traição e a crítica. Com este diploma, a afirmação de que os próprios nazis podiam ter sido os autores do incêndio do Reichstag, por motivos propagandísticos, já poderia ser considerada uma traição.

Em 24 de março, finalmente, Hitler obteve a aprovação à sua Lei dos Plenos Poderes pela qual o seu governo podia aprovar leis que alterassem a Constituição. A oposição foi apenas dos social-democratas, como já se afirmou, porque os deputados do KPD já estavam marginalizados.

E a magistratura, os juízes e os procuradores do Ministério Público? Para a maioria, o fim da República de Weimar não foi um elemento perturbador, mas sim um passo libertador. Durante os anos agitados da república, as conceções básicas dos juízes e dos procuradores do Ministério Público não se haviam modificado significativamente. Mais do que antes, o seu coração batia pela direita e pelos nacionalistas, e as suas ideias eram antirrepublicanas, antiparlamentares e… antissemitas. A magistratura alemã era altamente recetiva aos políticos que prometiam a salvação, como era o caso dos nacional-socialistas. A tomada do poder pela «concentração nacional» dos nacional-socialistas e dos conversadores de direita foi considerada uma mudança normal de governo, inteiramente legal e muito necessária. E mesmo quando Hitler foi nomeado chanceler do Reich e alguns mostraram alguma irritação, a maioria dos magistrados ficou otimista e encarou a situação com grandes esperanças.

Nas suas publicações especializadas não se encontra uma linha sobre a corrosão da Constituição. Até pelo contrário: as comunicações de Hitler dedicadas às questões jurídicas caíam em solo fértil entre os magistrados. Por muito que se limitassem de maneira flagrante os direitos que garantiam o usufruto da liberdade individual, para os juízes, só era importante a sua ideia de «independência» que, na opinião de muitos, pouco fora respeitada durante o período da República de Weimar. Mas Hitler, pensavam, não atentaria contra a independência dos juízes no exercício do cargo.

Mas, entre tanta devoção e entusiasmo, escapou-lhe que Hitler, no discurso proferido no Reichstag, falara de inamovibilidade e não de independência, a que associava a exigência de que, a partir desse momento, o ponto central da jurisprudência seriam os direitos do povo e não os do indivíduo. Eis alguns excertos do discurso proferido por Hitler no Reichstag, em 23 de março de 1933:

O nosso sistema legal deve, em primeiro lugar, servir para preservar a comunidade do povo. A inamovibilidade dos juízes de um lado deve corresponder à maleabilidade das suas sentenças, a fim de preservar a sociedade. Não é o indivíduo que deve ser o centro das preocupações jurídicas, mas o povo! […]

Futuramente, a traição ao País e ao povo será cauterizada com uma desumanidade bárbara!

A base da existência da justiça só pode ser a base da existência da nação. Por isso, há que ter sempre em conta o peso das decisões daqueles que, debaixo da pressão dura da realidade, são responsáveis por dar forma à realidade da vida da nação!

Os homens de leis não viram nenhum motivo de crítica nas declarações de Hitler. E, por isso, na sua sessão plenária de 29 de março, o Tribunal do Reich tomou uma decisão que remeteu ao Ministério da Justiça do Reich, pedindo que ela fosse, por sua vez, remetida ao chanceler do Reich e em que os seus membros agradeciam expressamente que o chanceler tivesse impedido algum tipo de ingerência na administração da notícia. Nestes termos:

O Tribunal do Reich agradece o facto de o chanceler, na declaração governamental de 23 de março de 1933, ter reconhecido a inamovibilidade dos juízes como base do sistema legal. Só a consciência da independência pode garantir ao juiz a liberdade interior necessária ao desempenho do seu elevado cargo. Nessa liberdade, só sujeita à lei, a autêntica tarefa do juiz é servir, com as suas decisões, a preservação da comunidade do povo. Nenhum juiz alemão se pode alhear da chamada de atenção do senhor chanceler do Reich de que a base da existência da justiça não pode ser senão a base da existência da nação, e de que, por isso, a justiça deve considerar sempre o peso das decisões daqueles que, sob a dura pressão da realidade, são responsáveis pela vida da nação.

Convém ter presente que o que aqui se dizia não era aquilo em que poderia acreditar um juiz nacional-socialista da província, mas sim uma tomada de atitude formal do membro do mais alto tribunal alemão. Enquanto os novos detentores do poder já haviam começado, há algum tempo, a destruir gradualmente os fundamentos de uma justiça independente, os magistrados do Tribunal do Reich ainda se referiam à «liberdade interior» e à «independência» da justiça alemã, temas ignorados por Hitler. E nem a ameaça do próprio Hitler de combater os adversários da «revolução nacional» com uma «desumanidade bárbara» os incomodava.

O que mais se ouviam eram as vozes que acolhiam com entusiasmo os procedimentos diversos contra os inimigos do povo, fossem eles de que cor fossem. «Pragmatismo e objetividade, imparcialidade e independência» — segundo o Deutschen Richterzeitung — eram coisas a que se podia prestar menos atenção durante algum tempo, a favor da «causa alemã». E o que era isto? Oportunismo profissional ou cegueira política?

Na secção «O espelho do nosso tempo», do Deutschen Richterzeitung, Karl Linz repetiu as exigências que a União dos Juristas Alemães Nacional-Socialistas aprovara, em 24 de março de 1933, em Leipzig, e que tornava claro o que deveria ser feito, futuramente, quanto aos «juízes inamovíveis»:

Todos os tribunais alemães, incluindo o Tribunal do Reich, devem ser limpos de juízes e funcionários de raças estrangeiras […] Há que retirar imediatamente a autorização até agora concedida a todos os advogados de raças estrangeiras membros de partidos marxistas, ou seja, o SPD e o KPD. O mesmo é válido para os magistrados de pensamento marxista.

Verificou-se, depois, que estas reivindicações eram mesmo vinculativas. Ainda antes de 7 de abril de 1933, quando entrou em vigor a Lei de Restauração da Administração Pública, já os ministros da Justiça dos länder haviam imposto a todos os juízes, procuradores e advogados de origem judaica, em 1 de abril, um «boicote de defesa antijudaica» que obrigava à sua suspensão. Do lado da magistratura não se ouviram muitos protestos.

Os juízes cuja «ascendência não ariana» pudesse ser confirmada, bem como os que no passado tivessem colaborado com partidos ou organismos profissionais republicanos, podiam ser transferidos ou reformados antecipadamente, sem nenhum fundamento adicional ou «por necessidades de serviço». A justiça ficou limpa «com a velocidade de um relâmpago», conceção que era muito do agrado dos nacional-socialistas, e também «livre de Judeus».

Nas grandes cidades, onde quase dez por cento da magistratura era de origem judaica, as consequências foram visíveis. Mas foi apenas um começo num processo de purificação que alcançaria o seu apogeu depois da aprovação das «leis de Nuremberga».

A grande maioria da magistratura ficou impassível perante as muitas ações desencadeadas contra os seus colegas. Linz, presidente da União dos Juízes, depois de uma audiência com Hitler, sossegou as últimas vozes críticas da associação profissional — que já eram poucas — e apelou à sua compreensão: a minoria também devia colaborar «com todas as suas forças na prossecução dos objetivos», para o que «eram necessárias certas medidas». Na edição de maio do Deutschen Richterzeitung, Linz ofereceu aos membros da união o relato do encontro com Hitler:

O presidente começou por transmitir o agradecimento da União dos Juízes por ter sido concedida a audiência e pela declaração do chanceler do Reich ao Reichstag sobre a inamovibilidade dos juízes e acrescentou-lhe o pedido de que fosse protegida a administração da justiça. As suas palavras foram, resumidamente, estas: que, em nome do conjunto dos juízes alemães, podia garantir que colaborariam com determinação e com todas as suas forças para atingir os objetivos fixados pelo Governo. Em primeiro lugar, por estarem convencidos de que o bolchevismo cerca o atual governo, mas também porque no coração de cada juiz está ancorada a convicção do dever de empregar toda a sua força para defender o bem do Estado e preservá-lo […]

O senhor chanceler do Reich declarou-se claramente identificado com estas palavras e esclareceu que seria mantida a independência dos juízes mesmo quando fossem necessárias certas medidas.

Linz concluiu o seu relato com uma afirmação tranquilizadora para os seus colegas:

[…] Em consciência podemos, portanto, garantir que as disposições estipuladas na Lei da Administração Pública serão revogadas assim que for possível.

Já em dezembro de 1932 se queixara Linz, no mesmo jornal, de estarem a acontecer muitas coisas «nada proveitosas para o prestígio dos tribunais e dos juízes». Mas agora, essas preocupações pareciam ter sido esquecidas. Em poucos meses, Linz convertera-se num auxiliar dedicado do governo nacional-socialista. E não era um caso isolado. A maioria dos juízes alemães apoiava o governo nacional-socialista e não se pode esquecer de que a magistratura organizada não o fazia desde 1919.

As «certas medidas» a que Hitler se referira foram postas em prática. O que estava em causa era, afinal, a «revolução nacional». E, por outro lado, não era vantajosa a depuração da magistratura? Poderiam, assim, libertar-se finalmente dos funcionários que ainda pensavam em partidos na linha da República de Weimar e até seria proibida a recalcitrante União Republicana dos Juízes.

É certo que a nova lei sobre a administração pública não conseguiu obter o êxito imediato e abrangente que o Governo nacional-socialista havia prometido, embora tivesse permitido que os juízes presidentes dos tribunais distritais e de círculo passassem a ser «forças nacionais de confiança», quando o Governo ainda só tinha um ano de vida.

A centralização unificadora também avançou a passos largos no setor da justiça. E mesmo quando, no início, a presidência da União dos Juízes procurou taticamente salvaguardar a sua independência da associação, uma grande maioria das associações locais que se lhes haviam juntado já exigia aos seus membros que se incorporassem «na frente de luta comum de Adolfo Hitler» e que se unissem à União dos Juristas Alemães Nacional-Socialistas.

Já no começo do verão de 1933, o Governo começou a dissolver as associações profissionais dos magistrados. E com grande êxito. Num telegrama datado de 23 de maio, e dirigido ao «Chefe dos Juristas do Reich», Hans Frank, a presidência da União dos Juízes anunciou a sua «entrada colaborante na União dos Juristas Nacional-Socialistas», com as uniões regionais associadas, reconhecendo «a direção do senhor chanceler do Reich, Adolfo Hitler».

Em 30 de maio de 1933, começaram a ser unificadas e integradas todas as associações de juízes. E em breve passou a haver apenas uma «Frente da Justiça Alemã» sob a liderança da União dos Juristas Alemães Nacional-Socialistas. Os juízes alemães apressaram-se a pedir para serem sócios e, de 1600 em janeiro de 1933, o número de membros passou a ser de 30 mil no fim do ano, o que levou a que se considerasse que, não havendo trabalho para tanta gente, se erguesse um limite temporário para as entradas.

O primeiro grande momento em que foi possível demonstrar publicamente a adesão à nova ordem foi o do Dia do Jurista Alemão, celebrado no início de outubro de 1933. Tendo como lema «Pelo nacional-socialismo, o Direito para o povo alemão», participaram nas festividades mais de dois mil homens de leis. O apogeu da celebração foi a manifestação organizada diante do Tribunal do Reich. Frank, o führer dos juristas do Reich, saudou os colegas com os gritos de «Juristas alemães! Heil! Heil!», falando de seguida sobre «O património ideológico da revolução nacional-socialista e a organização do Direito alemão». E, ao terminar, exortou os juízes a prestar um «juramento sagrado». A aliança indivisível com o Führer foi evocada com palavras vigorosas:

Juristas alemães, peço-vos que unam as vossas vozes à minha: juramos por Deus eterno, juramos pelo espírito dos nossos mortos, juramos por todos aqueles que uma vez foram vítimas de uma justiça alheia ao povo, juramos pela alma do povo alemão que, como juristas alemães que somos, seguiremos o nosso Führer pelo seu caminho e até ao fim dos nossos dias.

Com tonitruantes gritos de «Sieg-Heil! Sieg-Heil! Sieg-Heil!» terminou o quase religioso encontro de massas. Com a manchete «O Juramento de Rütli diante do Tribunal Supremo», a edição de outubro do Deutschen Richterzeitung mostrava, aludindo a um juramento coletivo das lendas nórdicas, uma cena histórica: em primeiro plano, os juízes que erguiam aos céus o braço direito e depois a escadaria do Tribunal do Reich com diversas figuras do nacional-socialismo ladeadas por bandeiras com a cruz suástica. Um povo, um império, um partido, um Führer… e uma justiça.

Apesar da lei sobre a administração pública, apesar da supressão dos direitos fundamentais da Constituição de Weimar, apesar das irritações causadas pelo terror da SS, cujas tropas fanáticas haviam bloqueado todas as intenções das autoridades judiciais de investigar as suas atividades desenfreadas, e apesar também da dissolução das associações de juízes, a magistratura cerrava fileiras atrás do governo nacional-socialista. A unificação exigida cedera a uma unificação voluntária algum tempo antes. O juramento judicial passava a ser efetuado com o braço direito no ar. Os juízes apoiavam Hitler.

E, uma vez mais, foi o presidente da União dos Juízes, Linz, a única pessoa a ver desenvolvimentos positivos nas novidades mais recentes. Assim, por exemplo, elogiou o novo «sentimento de identidade comum» dos membros da união nas páginas da nova revista Deutschen Richterzeitung que passou a ser publicada com a indicação de ser o órgão do «grupo especializado de juízes e magistrados do Ministério Público da BNSDJ». Os juízes alemães até estavam melhor do que antes, nesta altura. Até porque o comissário do Reich para a Justiça, Frank, era um chefe «com coração para os juízes». «Na União dos Juristas Alemães Nacional-Socialistas, estamos bem seguros», asseverou Linz aos seus colegas, concluindo o seu texto jubiloso com o obrigatório juramento de lealdade:

Queremos, para todo o futuro, dirigir o nosso olhar para o Führer do povo. A ele juramos lealdade até ao fim. Estamos à sua disposição com tudo o que temos e com todas as nossas forças. Ao nosso venerado chanceler Adolfo Hitler, Sieg Heil! Sieg Heil! Sieg Heil!

Mas não foi só a magistratura que, na esperança de resolver todos os seus problemas sociais, políticos e profissionais sofridos no período de Weimar, por meio da restauração autoritária do Estado e da justiça sob a bandeira da suástica, se lançou com a maior rapidez aos braços dos nacional-socialistas. Também a ciência do Direito descobriu a sua «verdadeira vocação» e pôs a pesquisa e o saber ao serviço do «despertar nacional». Certas construções teóricas e legais, que hoje nos podem pôr os cabelos em pé, ajudaram a transformar sistematicamente a jurisprudência e a administração da justiça naquilo que os nacional-socialistas queriam.

Os professores de Direito alemães esforçaram-se e competiram entre si em livros, artigos, conferências e aulas magistrais, criando neologismos e conceitos novos como «Führertum» (as qualidades do Führer), «völkische Ordnung» (ordenação étnica) e «rassische Artgleichheit» (semelhança racial) e procurando novos desafios para a doutrina jurídica. Sendo, na sua maioria, antirrepublicanos e antidemocratas, nunca se haviam dedicado muito às conquistas do Estado de Direito liberal, como a igualdade perante a lei, as garantias legais do indivíduo e as restrições ao poder do Estado, mas também não foi nesta altura que o fizeram. O que fizeram foi misturar a mentalidade autoritária com uma ideologia estatal também autoritária.

Os professores puseram-se, então, a redefinir o conceito de «Estado de Direito» e, claro, na perspetiva dos governantes nacional-socialistas. «O Estado que criámos merece o título de “Estado de Direito”», dissera Hermann Göring, num discurso sobre «A imperialização da justiça». Dissera-o diante da magistratura, acrescentando que «o Direito e as leis [do Estado] têm o seu fundamento na comunidade do povo».

Carl Schmitt, professor de Direito público e dirigente principal da ala nacional-socialista dos juristas, um homem que alimentava a convicção de que «o conjunto do Direito alemão há de estar dominado exclusivamente pelo espírito do nacional-socialismo», sugeriu, para evitar referências ao «Estado de Direito liberalista», combinações de palavras como «Estado de Direito alemão», «Estado de Direito nacional-socialista» e até «Estado de Direito alemão de Adolfo Hitler». Nos numerosos escritos que publicou, Schmitt procurou introduzir o «elemento nacional» na conceção nacional-socialista do Direito e transmitir à magistratura «um pensamento jurídico puro». Este excerto data de 1934:

Sabemos, não por intuição, mas por nos basearmos no conhecimento científico mais rigoroso, que todo o Direito é o Direito de um determinado povo. É uma verdade da teoria do conhecimento que só aquele que, ao se integrar numa série e segundo a maneira determinada pela raça, forma parte de uma comunidade criadora de Direito e pertence-lhe existencialmente, sendo então capaz de ver os factos corretamente, de ouvir corretamente as declarações, de compreender corretamente as palavras e de valorizar corretamente as impressões que retém de pessoas e coisas. O homem vive, na realidade, dessa pertença ao povo e à raça até nas inflexões de ânimo mais profundas e inconscientes, mas também no mais pequeno filamento do seu cérebro. Não é objetivo todo aquele que o quer ser e que, com consciência subjetiva, acredita que se esforçou o suficiente para ser objetivo. Um indivíduo de outra raça já pode adotar uma atitude crítica e esforçar-se com inteligência e pode escrever ou ler quantos livros quiser. Pensará sempre e compreenderá de maneira diferente porque está feito de outra maneira e em cada raciocínio crucial continuará sujeito às condições existenciais da sua raça […]

Nós procuramos um compromisso que seja mais fiável, mais vivo e mais profundo do que o vínculo falacioso com as letras tortuosas de mil cláusulas legais. Em que outra parte pode estar o compromisso senão em nós e na nossa raça? Também aqui, perante a inseparável relação entre o compromisso com a lei, o conjunto dos funcionários e a independência dos juízes, todas as perguntas e todas as respostas vão ter à exigência da igualdade da raça, sem a qual o Estado total do Führer não poderá durar nem mais um dia.

As considerações de Carl Schmitt foram compreendidas pela magistratura: os magistrados ficavam dependentes da liderança política. E aceitavam-no: Era o Führer como juiz supremo. Mas regressemos ainda a Schmitt:

O Führer protege o direito contra os piores abusos, porém, num momento de perigo, é ele o legislador máximo, devido, precisamente, à sua condição de Führer, impõe justiça imediata como senhor máximo […] O verdadeiro líder também é sempre juiz. E a qualidade de juiz emana da sua condição. Quem quer separar uma coisa da outra ou mesmo confrontá-las converte o juiz em contralíder ou em instrumento de um contralíder e procura, com a ajuda da justiça, desestabilizar o Estado […] Na realidade, o que fez o Führer foi uma verdadeira jurisdição. Não está submetido à justiça e foi, em si, a mais elevada justiça.

Carl Schmitt e diversos outros juristas nacionalistas fundaram, justificaram e aperfeiçoaram o terror jurídico do nacional-socialismo. «Aquilo de que necessitamos é do homem político e nacional-socialista», afirmou, em 1934, Otto Koellreutter, professor de Direito, como Schmitt, no seu escrito «Der Deutsche Führerstaat» («O Estado alemão do Führer»), dirigindo-se aos seus colegas e acrescentando «Educá-lo no espírito do Führer e, com isso, contribuir para os alicerces do Estado alemão do Führer, parece-me hoje a tarefa mais importante de todos os professores universitários alemães no âmbito do seu trabalho. Heil Hitler!»

Os professores dispostos a adaptar-se competiram na criação e na adoção de nova terminologia quando se tratou, por exemplo, de definir um conceito como «Estado de Direito civil». Na sua opinião, aplicar a justiça era uma coisa que só devia ser feita por «um homem com raízes no povo e, por isso, capaz de julgar aquilo que é benéfico e que é prejudicial para o povo», nas palavras de Göring, que descreve, assim, o seu ideal de juiz.

As fraquezas do indivíduo já não serão aceites, ao contrário do que acontecia no Estado liberalista. Contra o delinquente, contra o inimigo do Estado e o inimigo da comunidade do povo, só há uma medida, no que se refere à dimensão e à execução da pena: severidade absoluta e, caso seja necessário, aniquilação total. Aprendemos, finalmente, que a forma do crânio e outras características raciais do homem não são obra do acaso nem um fator de indiferença, mas sim a expressão e o fundamento do seu sentir e da sua vontade mais íntima.»

Este tipo de afirmações tão exaltadas, como as que foram expressas por um jovem assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Breslávia, não eram elucubrações fanáticas de um indivíduo isolado, mas sim um exemplo daquilo que pensavam. E que não iriam ficar apenas no círculo das discussões académicas sobre credos e conceitos. O debate em torno do «novo» pensamento do Estado de Direito teve consequências práticas.

Foram abolidos gradualmente todos os princípios de um Direito penal humano e, em última instância, com a legitimação da ciência e da teoria do Direito. Já não foi a proteção do indivíduo perante o Estado que passou a figurar como prioridade, antes a proteção do Estado perante o indivíduo. «Em casos decisivos», determinou o pensador oficial Carl Schmitt, «a normalização só pode significar um compromisso do Führer em benefício do desobediente.» Dito de outro modo: deixavam de existir a proteção do indivíduo e a segurança jurídica. O ponto central era apenas a «proteção da comunidade do povo».

Este «Direito protetor» não foi aplicado como defesa contra as «associações criminosas», mas contra os adversários políticos do sistema. Se o elemento do povo ainda podia ser aceite pelos seus ou se lhe devia ser aplicada a «severidade absoluta» ou a «aniquilação total» era algo que ficava ao cuidado de uma comissão oficial do Direito penal na dependência do ministro da Justiça, Gürtner. E, além do «Direito protetor», era importante, para os juristas nacional-socialistas, o «dever de lealdade ao povo». Dos seus princípios, destacavam-se considerações desta natureza:

O Direito penal nacional-socialista deve ser construído com base no dever de lealdade nacional. Esse dever é, para o pensamento nacional-socialista e alemão, uma obrigação moral fundamental para com o povo. O pensamento alemão vê harmonia entre o valor moral, o sentimento do dever e o sentimento de justiça […] A tarefa do Estado nacional-socialista é a de castigar com uma pena justa e expiatória o indivíduo desleal que, com a sua traição, se afastou da sociedade. A punição dura serve para fortalecer, proteger e garantir mais segurança à comunidade do povo, além de educar e de melhorar o criminoso e o seu compatriota que ainda não está perdido.

Todo os delitos, mesmo o furto mais simples, passavam a ser considerados «quebra de confiança» contra o Führer e o povo. Muitos juristas especializados em Direito penal avançaram ainda para outras considerações, ultrapassando as fronteiras da jurisprudência, sobre a relação entre o povo, o Estado e o Führer.

Dificilmente havia uma conferência ou um ensaio que não estivesse imbuído dos conceitos de «confiança», «honra» e «dever»; nem uma área do Direito, quer fosse o civil ou o comercial, em que os professores de Direito nacional-socialistas não quisessem entrar.

Quem violava as leis punha-se fora da «comunidade do povo», cometia «traição» e era um inimigo do povo. Nos processos judiciais não se perdia tempo a perguntar se e qual o motivo pelo qual o réu infringira uma lei, mas apenas se continuava a pertencer à comunidade. Não era o delito, mas a personalidade do criminoso o que justificava a decisão de reinserção do acusado na comunidade do povo ou se devia ser eliminado. Neste domínio, os juristas, em colaboração com colegas das faculdades de Medicina, forneceram o instrumento necessário: uma tipologia criminal insidiosa. Onde se formulassem leis e normas — da lei contra os delinquentes perigosos reincidentes ou contra os criminosos menores de idade ou as normas sobre os parasitas do povo, ou ainda a reformulação das leis sobre o homicídio —, aparecia sempre no centro de tudo a «personalidade» do perpetrador. A tese fundamental era esta: «A pessoa não se torna criminosa. A pessoa é criminosa.»

O contributo dos cientistas das leis foi também muito vasto para a definição e a criação de uma justiça nacional-socialista misantrópica. E os professores alemães deixaram-se envolver, com entusiasmo e voluntariamente, produzindo a base teórica que iria permitir a «barbarização» do Direito.

Foram poucas as vozes críticas que se ouviram. Tal como a magistratura, os juristas afastaram-se sem grandes problemas dos seus colegas judeus e social-democratas. A Lei de Restauração da Administração Pública fez com que, só em abril de 1934, fosse despedida uma terça parte dos 378 professores de Direito, na sua maioria por motivos raciais. Os lugares dos «não arianos» foram ocupados por profissionais do setor privado, de ideologia nacional-socialista. Também se garantia, deste modo, que a nova geração de juristas ficasse a conhecer o novo pensamento jurídico da Pátria, como «causa nacional».

Além dos magistrados e dos docentes universitários, havia também os advogados, setor que os novos governantes nacional-socialistas quiseram depurar, dele afastando os «politicamente indesejáveis e não arianos». E isto quando a advocacia era uma profissão com uma forte presença judaica. Em 1933, havia 19 500 advogados com autorização para exercer, dos quais 4394 (vinte e dois por cento) eram judeus. Em grandes cidades como Frankfurt e Berlim, a percentagem era muito mais elevada. Também havia numerosos judeus na direção da associação profissional dos advogados, a Sociedade Alemã de Advogados, situação que os nacional-socialistas alteraram radicalmente.

Com a Lei da Restauração da Administração Pública, foram revogadas as licenças a 1500 advogados, na maioria de origem judaica. A integração das associações de advogados deu origem a novas diretrizes. Em Berlim, por exemplo, foi declarada imprópria a criação ou existência de uma associação comum de advogados arianos e não arianos, e os alemães que se faziam representar por um advogado não ariano começaram a ser atacados publicamente. Em 28 de agosto de 1933, foi tornada pública pelo Hessische Volkswacht uma lista com os nomes dos litigantes «que não tinham vergonha de recorrer a advogados judeus».

Na primavera de 1933, a União dos Juristas Alemães Nacional-Socialistas declarou que nunca deixaria de «exigir que se excluíssem sem exceção todos os Judeus de qualquer forma de atividade jurídica». Mesmo nesta altura não se ouviu nenhum tipo de protesto entre os advogados alemães.

Todos se regiam pela batuta nacional-socialista. As associações regionais de advogados exigiram aos seus membros «não arianos» que saíssem. E o semanário Juristische Wochenschrift informou que, de acordo com as novas normas determinadas pela sua direção, só publicaria colaborações «de autoria ariana».

Entre os homens de leis alemães, já não havia lugar para judeus nem para social-democratas. Os advogados também deixaram de ser considerados «advogados livres» ou profissionais liberais, para serem declarados «funcionários do Reich». E sentiram-se — ignorando o seu passado — obrigados, de repente, a uma relação de lealdade para com o Estado.

O ministro da Justiça, Gürtner, apurou-o com satisfação: «O advogado, na sua qualidade de advogado de defesa, está agora mais próximo do Estado e da comunidade […] está integrado na comunidade dos juristas e perdeu a sua posição anterior de defensor unilateral dos interesses do acusado.» Se bem que alguns advogados tenham tentado manter-se na situação de profissionais «livres» quando ela era agora um «exercício de uma função estatal», a realidade mudou mesmo. Quem, por exemplo, acreditasse que na sala de audiências pudesse abster-se de fazer a «saudação alemã», arriscava-se a uma repreensão da comissão de deontologia dos advogados. Mas, na maior parte das vezes, nem era necessária alguma admoestação, porque a maioria dos advogados sentia bem o peso da justiça nacional-socialista a pairar sobre a sua cabeça. A «saudação alemã» passara a ser tão importante como a toga.

A exortação de Carl Schmitt, de que todo o Direito alemão devia estar submetido apenas e só ao «espírito do nacional-socialismo» tornara-se uma realidade sem deparar com residência digna desse nome. Juízes, procuradores do Ministério Público, professores de Direito e advogados marchavam de braço dado, formando a «Frente dos Juristas». A integração funcionava de cima e a autointegração de baixo.

Um povo, um chefe, uma justiça. Uma frente combativa contra todos os que pensassem de maneira diferente, contra os que sentissem e vivessem de maneira diferente, e que não queriam, ou não podiam, se submeter à mundivisão nacional-socialista. Quem não fosse pela «revolução nacional» era considerado «traidor» e «inimigo do povo».

Eram a esses inimigos do povo e traidores que se destinava o Tribunal do Povo, e havia um homem disposto a encabeçá-lo e a lutar: Roland Freisler.