CAPÍTULO CINCO
CONTRA OS TRAIDORES E OS PARASITAS DO POVO
A «era Freisler», que começou em 15 de outubro de 1942, não pode ser apresentada sem regressarmos ainda ao Direito penal, porque a sua aplicação e a sua interpretação foram transferidas para o Tribunal do Povo, sendo o seu ponto central as leis relativas à alta traição e à traição à Pátria. Nas páginas seguintes, também serão brevemente comentadas algumas disposições processuais e as atribuições e a influência da Gestapo (a polícia secreta do regime).
O pensamento nacional-socialista baseava-se, e não apenas para Freisler, em três princípios fundamentais: o papel da traição, o conceito de comunidade do povo e o princípio do Führer. Em sítio nenhum se usaram esses três pilares do pensamento nacional-socialista de forma mais consequente do que no Tribunal do Povo, cuja sede foi transferida para o número 15 da Bellevuestrasse, em Berlim. Todos quantos tiveram de comparecer nas salas de audiências do Tribunal do Povo foram considerados inimigos do povo e foi para eles que se alargou e que em grande medida se tornou mais gravoso o Código Penal.
Veremos, em seguida, alguns exemplos de alta traição e de traição à Pátria. Segundo o parágrafo 81.º da respetiva lei, a alta traição era um delito cujo objetivo era alterar a Constituição ou o território do Reich. Os parágrafos 83.º e 84.º ocupavam-se das conspirações associadas à alta traição. O parágrafo 86.º, finalmente, especificava o carácter punível dos preparativos para a alta traição.
As disposições relativas à traição à Pátria foram, no início, enumeradas na mesma secção do Código Penal que incluía as relativas à alta traição. O delito de traição à Pátria ocorria quando um alemão tentava, juntamente com uma potência estrangeira, lançar uma guerra contra a Alemanha. O parágrafo 90.º enumerava todas as ações consideradas traição à Pátria, da instigação à deserção, passando pela sabotagem de material bélico, pela espionagem e pela divulgação de planos de operações, ao incitamento à revolta nas forças armadas alemãs (a Wehrmacht).
Devido ao Decreto do Presidente do Reich para a Proteção do Povo e do Estado, e ao Decreto do Presidente do Reich contra a Traição ao Povo Alemão e as Atividades de Alta Traição, aprovados e promulgados depois do incêndio do Reichstag, em 28 de fevereiro de 1933, começou a aplicar-se a pena de morte aos dois crimes tipificados de traição e que antes eram só castigados com penas de prisão efetiva. Para mostrar que estavam dispostos a agir com o máximo de severidade, os nacional-socialistas invocaram a Lei dos Plenos Poderes e introduziram a pena de morte por enforcamento ou decapitação para todos os que haviam cometido crimes de traição entre 31 de janeiro e 18 de fevereiro de 1933.
Marinus van der Lubbe, o jovem que compareceu perante o Tribunal do Reich como autor do incêndio do Reichstag, foi julgado e executado de acordo com essa lei.
O objetivo dos governantes nacional-socialistas era claro: a alta traição e a traição à Pátria, e mesmo a intenção de trair, deviam ser castigadas de forma imediata e com severidade. O procurador-geral do Reich decidia se levava, ou não, o traidor a julgamento no Tribunal do Povo. Se tratasse, por exemplo, de atos preparatórios de traição, o procurador-geral também podia determinar se o processo seria transferido para a instância judicial imediatamente abaixo, que era o Tribunal Distrital. Mas Freisler mostrou-se inclinado, desde o início, a ver esses órgãos como simples anexos do Tribunal do Povo.
Em 1935, foi alargada a jurisdição do Tribunal do Povo: os «danos infligidos às Forças Armadas» e a «omissão de notificação de um caso de alta traição ou de traição à pátria» passaram a ser puníveis e a ser tratados como crimes de traição. Apesar da severidade das novas penas, nos primeiros tempos, o Ministério da Justiça do Reich ainda criticou a severidade diminuta das sentenças.
Aliás, de modo nenhum se poderia afirmar que a jurisprudência do Tribunal do Povo começara com excessos. Assim, por exemplo, a 1.ª Vara Criminal julgou um réu acusado de distribuir panfletos ilegais e armas na Polícia, condenando-o a dois anos de prisão, mais os sete meses que passara em prisão preventiva, por preparativos de alta traição e por violar a lei de porte de arma. Na 2.ª Vara, foi condenado outro a um ano e nove meses de prisão, a que se somariam os sete meses de prisão preventiva, por ser acusado de difundir escritos subversivos entre os membros das forças armadas. Considerando que os decretos de 28 de fevereiro de 1933 previam para esses delitos penas de prisão até três anos, foi uma sentença bastante indulgente. Mesmo assim, os juristas do Ministério da Justiça não deixaram de reparar que, em 30 de novembro de 1932, as varas do Tribunal do Povo se negaram a retirar os direitos civis a dois homens condenados a penas de prisão por atos de traição.
Até 1936, quando Thierack, membro do NSDAP, foi nomeado presidente do Tribunal do Povo, estas práticas não se alteraram muito. O novo presidente era da opinião — em total consonância com os nacional-socialistas — de que a justiça se devia sujeitar às exigências da liderança política e de que o Tribunal do Povo, definido em primeiro lugar como tribunal político, devia ter uma atitude dominante. O que Thierack, como ministro da justiça, escreveu a Freisler (presidente do Tribunal do Povo), em 1942, numa carta fechada, aplica-se também ao início da presidência de Thierack e sublinha o primado da política nacional-socialista:
Em nenhum outro tribunal que não seja o Tribunal do Povo se vê com tanta clareza que a jurisprudência deste tribunal político superior tenha de estar em consonância com a chefia do Estado. Dependerá de si, em grande medida, orientar os juízes nesta direção.
Thierack, aliás, ainda influenciava os juízes do Tribunal do Povo, considerando essencial que a magistratura tivesse uma «mentalidade alemã». Eis, na sua opinião, expressa num documento interno do Ministério da Justiça, como devia ser um juiz alemão:
No Tribunal Distrital […] o juiz é um homem justo, aberto, consciente do seu propósito e, ao mesmo tempo, com a discrição requerida e um bom comportamento. Em tempo de guerra, já se dedicou à organização do Partido e agora é chefe na SA e dirigente local do NSDAP. O seu comportamento, no serviço ou fora dele, é impecável e a sua atitude positiva relativamente ao Estado nacional-socialista revela-se através da sua colaboração ativa.
Era o modelo ideal do juiz alemão. Toda a magistratura devia estar talhada de acordo com o mesmo molde, até porque o que estava em causa era a preservação e a proteção do Estado nacional-socialista. Os juízes leais, membros do Partido, eram uma garantia para o funcionamento fluido da administração judicial nacional-socialista e, especialmente, do Tribunal do Povo. Aliás, os fundamentos jurídicos legitimavam por si esta conceção ditatorial do Direito.
Com o tempo, a competência inicial do Tribunal do Povo foi sendo alargada por intermédio de uma série vasta de preceitos. A lista de leis, delitos, infrações e penas correspondentes, que aqui se publica, revela a amplitude do Tribunal do Povo e o fundamento legal das suas decisões.
Lei |
Parágrafo |
Infração |
Pena |
Código Penal |
§ 80 |
Alta traição contra o País e a Constituição |
Morte |
§ 81 |
Incitação à alta traição |
Morte ou trabalhos forçados |
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§ 82 |
Atos preparatórios de alta traição |
Morte, trabalhos forçados ou prisão |
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§ 83 |
Casos menores de alta traição |
Trabalhos forçados ou prisão |
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§ 89 |
Traição à Pátria |
Morte ou trabalhos forçados |
|
§ 90 |
Espionagem |
Morte ou trabalhos forçados |
|
§ 90A |
Falsificação e traição à Pátria |
Trabalhos forçados |
|
§ 90B |
Divulgação de antigos segredos de Estado |
Prisão |
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§ 90C |
Relação com traidores à Pátria |
Prisão |
|
§ 90D |
Divulgação de segredos de Estado |
Prisão |
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§ 90E |
Divulgação voluntária de segredos de Estado |
Prisão |
|
§ 90F |
Traição ao povo por difamação |
Trabalhos forçados |
|
§ 90G |
Traição à Pátria por deslealdade |
Morte ou trabalhos forçados |
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§ 90H |
Traição à Pátria por destruição de provas |
Trabalhos forçados |
|
§ 90I |
Traição à Pátria por corrupção |
Trabalhos forçados |
|
§ 91 |
Estímulo de risco de guerra |
Morte ou trabalhos forçados |
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§ 91A |
Ajuda militar |
Morte ou trabalhos forçados |
|
§ 91B |
Cumplicidade com o inimigo |
Morte ou trabalhos forçados |
|
§ 92 |
Planos de traição à Pátria |
Trabalhos forçados |
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§ 94/1 |
Ataque ao Führer |
Prisão |
|
§ 139/2 |
Casos graves de encobrimento de infrações de alta traição e traição à Pátria e danos causados às Forças Armadas |
Morte ou trabalhos forçados |
|
Decreto de proteção das Forças Armadas (25/11/1939) |
§ 1/1 § 5 |
Danos graves causados às Forças Armadas Ameaça às Forças Armadas aliadas |
Morte ou trabalhos forçados Trabalhos forçados ou prisão |
Decreto de Proteção do Povo e do Estado (28/01/1933) |
§ 5/2 |
Planeamento de assassinato do Presidente do Reich ou de um membro do Governo |
Morte ou trabalhos forçados |
Lei contra a sabotagem económica (1/12/1936) |
§ 1 |
Fuga de capitais para o estrangeiro |
Morte |
Regulamento Especial sobre Crimes em Tempo de Guerra (17/08/1938) |
§ 1 |
Espionagem |
Morte |
Decreto de proteção da economia de guerra (23/01/1942) |
Art.º 1 |
Declarações falsas sobre necessidades ou existências |
Morte, trabalhos forçados ou prisão |
Regulamento Especial sobre Crimes em Tempo de Guerra alargamento de competências (29/11/1942) |
§ 1 Nr. 5 |
Desmoralização pública das forças militares |
Morte, trabalhos forçados ou prisão |
A abundância de leis deu lugar a dificuldades crescentes na separação de competências entre o Tribunal do Povo e o Tribunal de Guerra do Reich, depois de este, por uma lei de 26 de junho de 1936, ter passado a ser o tribunal militar superior. Os membros da Wehrmacht, no ativo ou na reserva, acusados dos crimes de alta traição e de traição à Pátria, só podiam responder na instância militar. Para garantir a harmonização da jurisprudência, foi acordado um intercâmbio dos veredictos dos dois tribunais e os oficiais destacados para o Tribunal de Guerra do Reich foram nomeados juízes leigos ou «honorários», do Tribunal do Povo.
Houve sempre problemas de competência entre os dois tribunais, principalmente a partir do começo da guerra. Processos contra civis poderiam ser transferidos para o Tribunal de Guerra se os civis fossem acusados de traição, de depreciação do moral militar ou de danos nas Forças Armadas. O essencial era que o presidente do Tribunal de Guerra declarasse que havia razões militares específicas para a condenação. Nesta base, o Tribunal de Guerra do Reich podia subtrair certos processos ao Tribunal do Povo.
Só em maio de 1940 é que passou para a alçada dos tribunais penais ordinários o julgamento de civis por desmoralização das forças militares, o que até então era da competência do tribunal militar. Posteriormente, a partir de janeiro de 1943, o Tribunal do Povo passou também a ter essa competência ainda que pudesse transferir os processos para um tribunal inferior se assim o considerasse. Finalmente, em 20 de setembro de 1944, Hitler ordenou que todos os atos políticos que pudessem ser definidos como infrações, mesmo os cometidos por membros da Wehrmacht, fossem julgados apenas no Tribunal do Povo ou em tribunais especiais, talvez por não andar muito confiante nos órgãos judiciários da Wehrmacht.
O crime de desmoralização das forças militares passou a ser o mais numeroso na estatística do Tribunal do Povo, seguido dos processos «noite e nevoeiro», com base num decreto de Hitler de 1941, de que falaremos mais adiante. Os que rebaixavam as Forças Armadas — os «derrotistas», os cidadãos que tinham manifestado dúvidas sobre a propaganda nacional-socialista — constituíram a maior parte dos condenados pelo Tribunal do Povo, especialmente nos últimos anos da guerra, caracterizados por dificuldades na frente interna. Uma frase mal pensada sobre a «iminente derrota do exército alemão ou uma piada frívola sobre o Führer ou o Partido podiam — porque havia denunciantes em todo o lado — significar a pena de morte.
Além do alargamento das competências originais do Tribunal do Povo, relativamente aos crimes de alta traição, e de traição à Pátria, houve um aumento gradual do território sob a sua jurisdição, que coincidiu com a violenta expansão do império nacional-socialista.
Depois das eleições no estado do Sarre, em 13 de janeiro de 1935, foi aprovado o Decreto sobre a Transferência da Administração da Justiça no Sarre e remetidas ao Tribunal do Povo as acusações que dissessem respeito à alta traição e à traição à Pátria. A seguir à anexação da Áustria, em 13 de março de 1938, foi feito um novo alargamento de competências. Quatro meses depois, em 1 de julho de 1938, entraram em vigor na Áustria as disposições do Código Penal sobre os crimes de alta traição e de traição à Pátria e os danos infligidos às Forças Armadas. Numa decisão posterior, foram concentrados todos os casos austríacos numa vara específica do Tribunal do Povo e tornou-se possível escolher juízes austríacos honorários para fazerem parte deste tribunal. Outro decreto posterior, de 13 de março de 1940, previu uma possibilidade de arbitragem no Tribunal Distrital, em Viena, onde se podiam tratar dos assuntos necessários, segundo as «decisões processuais do Reich alemão».
Depois da conferência de Munique, de 29 de setembro de 1938, quando foi decidida a anexação pelo Reich alemão da região dos Sudetas alemães, houve também do mesmo modo uma situação semelhante à da Áustria.
Na Checoslováquia, o que restava do antigo Estado checo foi também anexado ao Reich com o nome de Protetorado da Boémia e da Morávia e, nessa altura, foi aí introduzido o Direito penal alemão para os Alemães aí residentes. À população não alemã foram aplicadas várias disposições do Código Penal, nomeadamente as que abrangiam a traição à Pátria e os ataques ao Führer e os danos infligidos às forças militares. A região lituana de Memel foi também integrada no Reich, ficando abrangida pela mesma legislação, ao abrigo da lei de 23 de março de 1939.
Finalmente, terminada a campanha da Polónia, as leis aí em vigor foram gradualmente substituídas nos novos territórios do Reich (Prússia Ocidental e Posen) criados por Hitler. Em junho de 1940, foram introduzidos, nas regiões ocupadas no Leste, o Código Penal e os preceitos relativos ao processo penal com o aviso de que as penas seriam decididas com efeito retroativo e abrangeriam todos os delitos cometidos antes da sua aplicação. Um decreto de 5 de setembro de 1939 do comandante-chefe do Exército estipulou que o Direito penal alemão se aplicava quando os atos criminosos tivessem de ser julgados por tribunais da Wehrmacht ou por tribunais especiais. Um decreto posterior, de 15 de junho de 1940, aplicou a Lei de Organização Judiciária às «regiões orientais anexadas».
Mas não foi só no Leste que se aplicou o Direito alemão do Reich. A Oeste, foram também alargadas as leis alemãs ainda durante a campanha militar. Os tribunais imediatamente criados na Bélgica, no Luxemburgo e em França consideraram-se competentes para julgar certos delitos políticos, o que, no entanto, invadia a esfera do Tribunal do Povo. Na Holanda ocupada, registou-se uma situação excecional, porque os tribunais alemães foram instituídos paralelamente aos tribunais locais, intervindo nos crimes cometidos pelos alemães e pelos súbditos do protetorado, abrangendo delitos políticos, podendo aplicar-se tanto as leis holandesas quanto as alemãs. Como os delitos de alta traição e de traição à Pátria cometidos no estrangeiro se podiam castigar no estrangeiro, segundo o Direito alemão, e como o Tribunal do Povo era competente para aplicar esse direito, o comissário do Reich para os territórios ocupados dos Países Baixos estipulou que todas as questões de alta traição seriam remetidas ao procurador do Reich junto do Tribunal do Povo. O tipo de lei penal que seria aplicada já dependeria das disposições do Ministério da Justiça alemão. Não havendo uma coordenação com os tribunais estrangeiros, o processo transitava para os tribunais alemães na Holanda, onde se julgava de acordo com o Direito alemão sempre que o comissário do Reich aprovava o procedimento. Aos crimes de traição à Pátria, aplicava-se o mesmo princípio.
Estes exemplos mostram como o alargamento do Tribunal do Povo no âmbito jurídico e territorial avançou rapidamente com o começo da guerra. Para respeitar a regra básica de defender o Reich contra os traidores internos, foram propostas novas funções com um único propósito: manter e assegurar com carácter permanente o poder nacional-socialista em todas as regiões anexadas.
À medida que se alargavam as competências do Tribunal do Povo, as garantias processuais dos acusados e dos seus defensores iam sendo diminuídas. E ficou suficientemente claro que, depois da publicação da sua lei fundamental, de 24 de abril de 1934, o Tribunal do Povo era um tribunal especial onde não se aplicavam os direitos fundamentais.
Foi o que decidiu o Tribunal do Povo em primeira e última instância (§ 3.º, n.º 1, alínea 1), sem que houvesse um meio legal para recorrer dessa decisão. E nem sequer foi contemplada uma diminuição das garantias legais para os réus. As condições estipuladas para a instrução preliminar, antes obrigatória, foram maleabilizadas. Mais tarde, coube ao juiz-presidente ser a única instância com a capacidade de decidir se o acusado deveria ser julgado ou decretar ou manter a ordem de prisão tanto nos delitos mais simples quanto nos mais graves.
Foi também revogado o procedimento conducente à prisão preventiva, instituindo-se um controlo pontual tendente a reduzi-la o mais possível. Também foram alargados os critérios de arresto de bens, o que, para um grande número de réus, significava a privação dos seus meios de subsistência, mesmo se fossem punidos com uma pena muito ligeira ou absolvidos, o que raras vezes aconteceu na história do Tribunal do Povo.
Outro exemplo digno de registo é o das disposições relativas aos menores de idade e ao Tribunal de Menores, que deixaram de se aplicar. Não foram poucos os julgamentos realizados no Tribunal Popular em que os menores foram tratados como adultos, sendo alguns condenados a penas muito pesadas ou mesmo à morte.
A diminuição das garantias legais afetou tanto os réus quanto os seus advogados, o que aliás já estava previsto na legislação fundamental da justiça nacional-socialista. A presença de um advogado de defesa era obrigatória e nenhum acusado podia ser privado dela. Mas a escolha do advogado era da competência exclusiva do presidente, que podia revogar uma autorização anterior. A introdução de uma licença para o advogado limitava a capacidade de escolha do acusado e, além do mais, sujeitava o advogado ao controlo direto do juiz-presidente, cuja benevolência dependia da sua possibilidade de exercer. Deve registar-se que uma clarificação oficial estipulou que a exigência da autorização não limitava o direito do acusado a escolher um defensor, mas obrigava-o à escolha de um advogado de entre os admitidos pelo tribunal.
Mas é claro que a escolha livre de um advogado era, nestas circunstâncias, ilusória. A regulamentação excluía advogados que já tinham sido afastados pelas medidas de expurgo do regime nacional-socialista.
O advogado que fosse considerado indigno de confiança ou atraísse o desagrado do tribunal pela sua aparência podia contar com a revogação da sua licença ou com a sua não revalidação, enquanto o defensor (ou melhor, aquele que deixavam defender um réu) era ameaçado com medidas disciplinares que punham em perigo a sua subsistência.
O conselho deontológico observava com rigor se o advogado que defendia um «parasita do povo» ou um «traidor» tinha sempre presentes os interesses do povo alemão. Nas diretrizes destinadas aos advogados de defesa do Tribunal do Povo, alertava-se com clareza para a prática de apresentar «opiniões legais não alemãs e contraditórias aos sãos sentimentos populares».
O advogado encontrava-se, assim, sujeito a uma tripla censura: a do tribunal, a do Partido e a da organização profissional. Por isto, a defesa acabava por ser inútil para os acusados e só servia para manter uma farsa e um formalismo vazio. Como os defensores eram controlados mostra-o uma nota com instruções entregue aos advogados no momento da sua nomeação, em cumprimento de uma deliberação do presidente do Tribunal do Povo, cuja receção devia ficar comprovada pelos advogados. Em outubro de 1936, apareceram as duas primeiras folhas desse tipo, em processos de traição e de traição à Pátria, com instruções muito claras.
Um outro elemento que dificultou ainda mais a atividade dos advogados de defesa foi uma determinação do ministro da Justiça de 24 de junho de 1939, decretando que nos documentos a entregar ao advogado de defesa não podiam ser incluídas as partes do despacho de acusação que eram consideradas secretas. O advogado só tomava conhecimento dessas partes oralmente, e não em papel, no momento de ver os autos e sem ter nada preparado para esse efeito. Depois do julgamento, o advogado tinha de devolver o auto de acusação de cada caso. O acusado também não recebia o documento, nem sequer quando este não incluía nenhuma informação tida por confidencial. Se o acusado estivesse em liberdade, seria comunicado apenas que o auto seguia para o advogado. Se os domicílios do acusado e do defensor fossem muito distantes, o despacho de acusação seria enviado a um juiz que se encarregava de notificar o acusado. Se o acusado já estivesse detido, como acontecia na maior parte dos casos, competia ao estabelecimento prisional dar conhecimento ao réu da acusação, na presença de um funcionário inspetivo e guardá-lo de seguida. Também nestes casos não se davam a conhecer as partes do auto que deviam ser mantidas em segredo. Se os acusados fossem estrangeiros, um oficial de justiça traduzir-lhes-ia excertos do documento. Durante a guerra, a defesa também teve de lidar com outros obstáculos, devido à acumulação e à rápida sucessão de procedimentos e pela brevidade do prazo que mediava entre a notificação do auto da acusação e o início do julgamento. Era frequente o acusado não conhecer as acusações que impeliam sobre si até à véspera do julgamento. Por sua vez, o defensor recebia tardiamente a autorização para intervir e só tinha acesso ao despacho de acusação durante o julgamento, o que fazia com que, sendo curto o período entre a formulação da acusação e o julgamento, tornava-se quase impossível preparar a defesa. Regra geral, a nomeação de um defensor oficioso ocorria com a saída da acusação, motivo pelo qual o acusado ficava sem advogado de defesa durante uma parte não negligenciável do período de instrução.
Aliás, o Partido também esperava que os advogados pudessem mostrar uma atitude favorável. Numa nota do NSDAP dirigida a Thierack, de 15 de outubro de 1942, recordava-se que na conferência organizada pelo Tribunal do Povo em Viena, entre os dias 21 de setembro e 2 de outubro desse ano, dois advogados apresentaram modelos de comportamento em alegações consideradas exemplares. Para tornar útil esse estilo de defesa, e numa proposta dirigida ao Tribunal do Povo para a sua próxima conferência, sugeria-se, como «medida orientadora», a nomeação conjunta como advogados oficiosos de dois dos melhores advogados e um dos piores, quando se tratasse de um processo importante. Todos os advogados disponíveis deviam funcionar como espectadores, permitindo-se, depois, um «debate crítico e de especialistas». Para Goebbels, essa «forma prática de organização» era «a mais poderosa e eficaz». Ou seja, dava-se uma lição demonstrativa de como um advogado alemão faria uma alegação alemã, onde se aplicava a justiça alemã e onde se ditavam as sentenças alemãs: na sala de audiências. Mas o Ministério da Justiça recusou a proposta, bem como o pedido, também de Goebbels, de pôr à disposição dos advogados alemães as sentenças do Tribunal do Povo para estudo. Em vez disso, os julgamentos comuns foram enviados para as autoridades judiciais e, mais tarde, para a chancelaria do NSDAP.
Depois disto, não para os advogados alemães, mas para o povo alemão, começaram a aparecer, nas colunas de rua destinadas à publicidade, cartazes de um vermelho-sangue em que o Tribunal do Povo anunciava as sentenças de morte contra os «traidores e parasitas do povo», como prova de que todas as iniciativas contra o povo e o Estado deviam ser combatidas com rigor e castigadas sem clemência e com uma advertência bem visível para todos os que procurassem atraiçoar a «causa alemã». Com o passar dos anos, o Tribunal do Povo acabou mesmo por se tornar um tribunal como o haviam desejado os nacional-socialistas.
No final de 1941, o Tribunal do Povo já contava com seis varas, sendo a primeira encabeçada por Thierack, presidente do Tribunal do Povo. Nas seis varas, trabalhavam setenta e oito juízes e setenta e quatro procuradores, todos de carreira, com a competência inerente ao lugar, segundo o Direito alemão. Só cinco magistrados é que não eram militantes do NSDAP, depois da «avalancha de conversões», nas palavras de Freisler, ocorridas depois de 30 de janeiro de 1933. Dos oitenta e um juízes leigos, setenta e um pertenciam ao NSDAP e os restantes aos três ramos das Forças Armadas. O Tribunal do Povo era, portanto, um órgão integralmente nacional-socialista cujo único compromisso era constituído pela devoção ao Führer, ao Partido e à «causa alemã».
Os governantes nacional-socialistas podiam, assim, ter como certo que o Tribunal do Povo seria a garantia de que todas as formas de oposição seriam objeto da mais rigorosa perseguição e liquidação. Para isso, também contribuiu a colaboração íntima com a Gestapo, encarregada da instrução de quase todos os processos de traição levados ao Tribunal do Povo. Criticada por alguns dos juízes que o integravam, a influência da polícia secreta era tão grande em certos aspetos, que os procuradores e os juízes do Tribunal do Povo quase pareciam um simples prolongamento da Gestapo. Os acusados, que normalmente passavam vários meses detidos, eram vítimas de maus tratos e vexames. Mais tarde, e especialmente durante a fase final da guerra, chegaram a ser sistematicamente torturados. Os juízes do Tribunal do Povo não escondiam o seu desagrado por essa intervenção, porém, geralmente, não se demoravam na sua abordagem, nem mesmo quando um réu dava o dito por não dito, argumentando que fora forçado a confessar devido aos violentos métodos de interrogatório da Gestapo.
O poder absoluto da Gestapo revelava-se também no facto de poder, livremente, deter as mesmas pessoas que haviam sido postas em liberdade uma vez cumprida a prisão preventiva, quando os réus eram absolvidos ou libertos depois de cumprida a pena ou de serem indultados. Os detidos eram de seguida deportados para um campo de concentração, sendo ignoradas as decisões dos tribunais e dos órgãos executivos que podiam decretar os indultos.
Numa conferência realizada, em 11 de novembro de 1936, em Berlim, sobre «A Justiça e a Gestapo», Freisler, que então era secretário de Estado, mostrou uma compreensão muito invulgar pelos processos da Gestapo, embora exigisse que tivessem base legal. Travava-se nessa altura uma batalha pelos espaços de atuação e de competência entre o sistema judicial e a Gestapo, e a conferência de Berlim serviu para as duas partes tentarem chegar a um entendimento. No fim, foi divulgada uma declaração conjunta onde se defendia uma colaboração mais estreita para lidar mais eficazmente com as «atividades de traição». Pouco depois, Heinrich Himmler, o comandante-chefe da SS, ordenou que houvesse um intercâmbio regular entre a Gestapo e o Tribunal do Povo em todos os processos de traição.
Mas mesmo quando o descontentamento relativo à crescente influência da Polícia Secreta do Estado começou a alastrar — e não apenas entre os juristas do Tribunal do Povo —, a praxis jurídica não se alterou. Com base num édito de Heydrich, chefe da Polícia de Segurança (SiPo), sobre «Os princípios de segurança interna do Estado durante a guerra» (de 3 de setembro de 1939), a Gestapo estabeleceu a sua justiça penal a fim de dar sequência a todo o tipo de processos da sua jurisdição, sobrepondo-se, por isso, à jurisdição comum. Apesar do desagrado e de protestos pontuais, o sistema judicial limitou-se a ficar a ver como se esvaíam gradualmente algumas das suas competências. E mesmo onde conseguia manter a sua atividade, só podia esperar que, a qualquer momento, houvesse uma intervenção do próprio Hitler a alterar as decisões que lhe pudessem desagradar.
Por outro lado, o próprio Tribunal do Povo ia promovendo a intervenção da Gestapo, transferindo para a polícia secreta os casos que eram de importância secundária. Thierack, enquanto presidente do Tribunal do Povo, enviou ao ministro da Justiça do Reich uma carta, em 14 de agosto de 1940, em que considerava ser um erro «conceder a honra de um processo no Tribunal do Povo» a delinquentes que eram apenas cúmplices menores, sendo mais correto «levá-los à razão» com um internamento temporário num campo de concentração. Ou seja, seria muito mais conveniente do que optar por um caminho longo, dispendioso e pesado de um processo judicial.
Não subsiste a menor dúvida: apesar de algum desagrado, o sistema judicial alemão, principalmente a sua magistratura, submeteu-se à orientação nacional-socialista. E o certo é que não se ouviram críticas que ficassem registadas.
Foram poucas as vozes proeminentes que se fizeram ouvir. Uma delas foi a de Hans Frank. Destacara-se como presidente da Academia para o Direito Alemão, era um nacional-socialista de convicções profundas, acabara de sair da chefia do departamento jurídico do NSDAP, fora governador-geral da Polónia e exercera um poder tirânico e implacável e era, agora, um dos que lamentavam a crescente insegurança do Direito dentro das fronteiras do Reich, o que, na sua opinião, era atribuível ao papel dominante das autoridades de segurança do Estado e à interferência da Polícia. Frank reivindicara sempre uma «justiça independente» e salientava agora a sua importância. E num discurso vigoroso, em julho de 1942, tentou explicar o que entendia por independência da justiça:
Não há império sem Direito — nem o nosso Reich! Não há Direito sem juízes — nem o Direito alemão! Não há juízes sem poder concreto — nem os alemães! Para mim, que dentro do nosso movimento sempre defendi em todo o lado as conceções do Direito, não é uma alegria ter de avisar que aqui e ali se ouvem vozes que dizem: no Estado autoritário em que vivemos não precisamos de juízes nem de uma administração judiciária independente. Eu, com toda a força das minhas ideias, demonstrarei sempre que seria muito mau que quiséssemos os ideais próprios de um Estado policial como uma transposição do nacional-socialismo sem atender às conceções do antigo Direito alemão.
O «antigo Direito alemão» e os preceitos que lhe estavam associados deviam — salientou Frank — ser de novo aplicados. Na mesma altura, escreveu no seu diário:
Nunca me foram postas tantas dificuldades na afirmação destes princípios, que proclamei solenemente e em grande escala perante 25 mil pessoas no último Dia do Direito Alemão, em Leipzig, em 1939. Foi só com a ascensão de todo o aparato da Polícia Secreta do Estado e da crescente influência de uma liderança policial autoritária, que o meu ponto de vista faz com que me oponha cada vez mais a atitudes de natureza contrária que não deixam de se fortalecer. Quando, especialmente nos últimos anos e num número de ocasiões cada vez maior, tive conhecimento, por meio de diversos testemunhos, da irritação pessoal do Führer para com os magistrados, quando as interferências do Estado na justiça começaram a ser cada vez mais fortes e a relação entre os órgãos da Polícia e da justiça acabaram com um domínio quase total da justiça por parte dos órgãos da Polícia, tornou-se claro para mim que, pessoalmente, se tornaria mais difícil afirmar as minhas ideias, que tenho como sagradas, como antes. Tem aparecido em todo o lado toda a espécie de obstáculos, e não pude senão aperceber-me, com grande clareza, da atitude pouco favorável dos poderosos deste tempo que é contrária às minhas reflexões.
Isso também fez com que a situação em que me encontrava passasse a ser mais difícil, uma vez que, neste domínio, a debilidade vai ficando mais e mais percetível perante a ênfase dos argumentos antijurídicos que são apresentados com uma força demonstrativa bombástica. Nenhum juiz se atreverá a ditar a sua decisão sem levantar os olhos a alguma posição de autoridade, o que, naturalmente, terá como significado que um desespero sinistro se apoderará do futuro do Direito na Alemanha. O jornal oficial das SS, o Schwarze Korps, tem-se empenhado, sem que ninguém visivelmente se lhe oponha, a usar um tom cada vez mais agressivo e ofensivo contra todas as instituições jurídicas e todos os juristas.
Frank compreendeu que a sua conceção do Direito nacional-socialista corria perigo e, com ela, a estabilidade do Estado em geral. No seu diário, ao criticar as opiniões antijurídicas, não excluiu a crítica a Hitler, ainda que ela tenha sido feita dissimuladamente, como não poderia deixar de ser:
Tem sido, infelizmente, evidente que também nas fileiras da liderança do Estado nacional-socialista se comece a impor a noção de que a autoridade está mais segura quanto mais absoluta for a insegurança jurídica dos cidadãos submetidos ao poder. O alargamento do uso arbitrário dos plenos poderes conferidos ao órgão executivo da Polícia alcançou um nível em que já se pode falar de uma total expropriação da proteção dos nossos compatriotas. É claro que esta circunstância é justificada pelas necessidades da guerra ou pela necessidade de fazer convergir num único objetivo todas as energias nacionais juntamente com a necessidade de eliminar completamente a possibilidade de a oposição perturbar o desenvolvimento do programa de libertação popular. Por outro lado, sou da opinião de que o carácter alemão tem um sentido de justiça tão eminentemente vigoroso, que, se o satisfizessem, iluminar-se-iam com uma força infinita tanto a alegria do nosso povo quanto o seu espírito de iniciativa, que seriam preservados se não se verificassem sobressaltos repentinos de violência como está a acontecer.
As divergências entre Frank e a direção nacional-socialista eram notórias; e tiveram consequências: Hitler exigiu-lhe que renunciasse aos seus cargos de natureza judicial, dando-lhe conta, ao mesmo tempo, da proibição absoluta de falar em público, com exceção do que tivesse de dizer como governador-geral da Polónia. Frank escreveu, a este respeito, no seu diário:
No começo da semana passada, o Führer nomeou como ministro da Justiça o até agora presidente do Tribunal do Povo, com quem eu e todo o universo do Direito estávamos em conflito, e grave, porque foi ele, como presidente do Tribunal do Povo, quem admitiu pela primeira vez representantes da Polícia como procuradores do Ministério Público nos processos penais de Praga à margem do próprio procurador do Tribunal do Povo, tendo expressado repetidamente o seu acordo total com o novo rumo. Ao mesmo tempo, foi também nomeado presidente nacional da União dos Juristas Nacional-Socialistas e presidente da Academia para o Direito Alemão, por mim fundada. […] O Führer deu mais destaque à nomeação, com a indicação que deu ao novo ministro da Justiça do Reich, Thierack, autorizando-o a desviar-se do Direito escrito na construção de uma administração judicial nacional-socialista, determinação essa que põe fim às ideias que eu defendi. Tendo em atenção que este novo rumo não me apanhou desprevenido, também não me afeta. O que aqui vejo não é uma crise no Direito, mas no Estado e, no meu íntimo, rogo a Deus que reduza ao mínimo possível as consequências disto.
Em outubro de 1942, Otto Ohlendorf, major-general da SS no Departamento Central de Segurança do Reich, reagiu às recriminações de Frank e dos seus simpatizantes. Numa tomada pública de atitude, criticou severamente os ataques de Frank e salientou que o juiz nacional-socialista estava submetido, em primeiro lugar, à ideologia nacional-socialista e só em segundo lugar à lei geral.
E referiu-se também à ameaça que caía sobre a Alemanha e às medidas que essa ameaça exigia e que obrigavam a «desviar o olhar do que é individual para a comunidade». A segurança do Reich, insistiu Ohlendorf, não era a segurança do indivíduo, mas a da comunidade. Só nesta perspetiva é que se podiam valorizar as ações políticas.
Fossem quais fossem as divergências entre a justiça, a Gestapo e a Polícia, a Alemanha estava em guerra, e a guerra ditava as suas leis.
A partir deste ponto de vista, Ohlendorf defendeu, sem vacilar, a existência de uma magistratura unida nos aspetos político e ideológico.
E a sua conclusão era a de que um juiz negligente no cumprimento dos seus deveres teria, no futuro, de ser despedido, e sem contemplações. Já não existia o «vínculo exclusivo» entre o juiz e a lei, e agora o primeiro plano era ocupado pelo vínculo entre o juiz e a ideologia nacional-socialista. Enquanto os juízes identificassem essa ideologia com os seus princípios e dirigissem os seus processos de acordo com ela, seriam defensores da lei e independentes.
As afirmações de Ohlendorf estavam perfeitamente alinhadas com a direção nacional-socialista e Hitler, que criticara sempre a justiça, exigindo mudanças que, em conjunto, só visavam um propósito: eliminar o que restava da independência da justiça.
Os preceitos totalitários do Estado nacional-socialista não toleravam outras fontes de poder. E, neste aspeto, a instituição que era a justiça enfrentava agora o que Hitler repetidamente exigira e a maioria dos magistrados defendia: a total simbiose entre a justiça e o Estado.
No topo de tudo, estava o Führer. O seu papel era o de juiz supremo — e os homens de leis obedeciam-lhe. Que Hitler nem sequer os tinha em grande conta e que não fizera disso segredo era algo de que, de bom grado, se esqueciam. Desde sempre que Hitler manifestara, em conversas informais, grandes dúvidas sobre a justiça em geral e não poucas vezes se irritara a comentar sentenças. Coube-lhe a decisão de diminuir a administração judicial em dez por cento dos seus efetivos numa «seleção real». Em finais de março de 1942, numa pequena tertúlia, voltou a expressar a sua opinião a respeito dos juízes, dizendo que todos eram «defeituosos por natureza» ou que o viriam a ser com o tempo. Na origem deste desabafo, esteve um caso julgado no Tribunal Distrital de Oldenburg, em que um operário da construção civil maltratara a mulher durante anos até lhe causar uma depressão e a mulher morrera num manicómio, devido aos maus tratos recebidos. Em 19 de março de 1942, o tribunal condenou o marido a cinco anos de prisão. Hitler soube da decisão e ficou fora de si por a condenação ser tão leve. E, não pela primeira vez, chamou o seu secretário de Estado Schlegelberger e exigiu-lhe uma pena mais pesada. Quando Schlegelberger lhe disse que não o podia fazer, Hitler gritou-lhe que isso era característico do conjunto da justiça. Havia centenas de milhares de homens a arriscar as suas vidas na frente de combate e, em casa, um assassino era obrigado a viver à conta do Estado. E até ameaçou Schlegelberger com a transferência da justiça penal para o comando-chefe da SS.
Não foi um caso isolado. Estas explosões temperamentais suscitadas pelas sentenças escandalosas que lhe chegavam ao conhecimento causavam momentos de inquietação e de atividade frenética, expressas nos seus círculos mais próximos. Quando fez o seu discurso no Reichstag — o último, na última sessão do Reichstag —, deixou bem claro o seu desagrado com a justiça. Parecera-lhe que chegava o momento de falar abertamente sobre o Direito e a justiça e de fazer as suas exigências:
Espero, aliás, uma coisa: que a nação me conceda o direito de intervir imediatamente e de ser capaz de o fazer em consonância, sempre que o Direito não esteja de modo incondicional ao serviço da tarefa maior de se ser, ou não, obedecido, e não aja como deve. A frente externa e interna, os transportes, a administração e a justiça só podem ater-se a um único pensamento, que é alcançar a vitória. Neste nosso tempo, ninguém pode insistir nos seus direitos ganhos a peso de ouro, mas todos devem saber que hoje só têm deveres. Por isso, solicito ao Parlamento alemão a confirmação explícita de que eu possuo o direito legal de a todos obrigar a cumprir o seu dever ou a condenar aqueles que não o cumpram, de acordo com a minha opinião taxativa, ou de aplicar uma decisão de os afastar do seu posto ou de lhes retirar a licença, afastando-os do seu posto sem contemplações, sejam eles quem forem ou que direitos adquiridos possuam. […]
Do mesmo modo, espero que os magistrados alemães compreendam que não é a nação que existe por eles, mas que são eles que existem pela nação, ou seja, que não se deve reduzir a escombros o mundo, incluindo a Alemanha, para que o Direito formal possa viver, mas sim que a Alemanha deve viver mesmo que as interpretações da justiça a possam contradizer. […] A partir de agora, intervirei nesses casos e afastarei dos seus cargos os juízes que não percebam o que está em causa.
Os deputados levantaram-se para expressar o seu acordo. Ficou, assim, ratificada pelo Reichstag a autorização para o Führer decidir como queria. O ataque de Hitler à justiça foi um êxito completo. Os últimos restos de independência da justiça deixaram de existir.
É verdade que o discurso de Hitler gerou uma agitação intensa entre os homens de leis, mas não houve em todo o Reich um juiz ou um procurador do Ministério Público que se demitisse.
O que Goebbels — de modo nenhum um amigo da justiça — poucos dias depois anotou no seu diário, em 13 de maio de 1942, sugerindo que a magistratura humilhada devia receber «um pequeno comprimido estimulante» para se animar, na próxima oportunidade, nem sequer foi necessário. Os juristas acompanharam o líder, de algum modo. Alguns sentiam-se rebaixados, outros desanimados e deprimidos, mas todos obedeceram ao «supremo juiz» sem um protesto.
Goebbels interveio, em 22 de julho de 1942, perante o Tribunal do Povo. Este tribunal e os seus magistrados não haviam sido incluídos na dura crítica de Hitler — pormenor em que quase nem se reparou —, todavia, Goebbels recuperou no seu discurso as críticas já feitas. Logo no início, sublinhou que o que ia dizer tinha um peso especial, no âmbito da política do Estado, até porque Hitler aprovara a sua intervenção em manuscrito. Goebbels censurou a atitude de muitos juízes que considerou estarem vinculados às «maneiras antigas de pensar» e criticou algumas das sentenças do Tribunal do Povo. Os juízes que pronunciavam sentenças dessas deviam ser demitidos, tal como os generais o podiam ser. Cada juiz devia, no momento da sua decisão, inspirar-se menos na lei do que na necessidade fundamental de afastar da comunidade do povo quem violava a lei. Na guerra, não interessava, do mesmo modo, se uma decisão desse tipo seria justa ou injusta, se seguiria ou não a lei, mas se seria eficaz. O Estado devia, do mesmo modo, defender-se de forma também eficaz dos seus inimigos internos e de os eliminar definitivamente. Era necessário suprimir completamente o conceito de «autoria por convicção». O propósito da administração da justiça não era, em primeiro lugar, o de obter um arrependimento ou uma reparação, mas defender o Estado. Não era baseado na lei, mas na decisão de que um indivíduo devia ser afastado. Aceitá-lo, por difícil que fosse, era tarefa da justiça, e havia decisões tomadas que eram ridículas. A justiça também devia reconhecer que uma das suas tarefas políticas era o modo de se ocupar dos Judeus, o que excluía alguma atitude guiada pela emoção. Em jeito de conclusão, Goebbels repetiu, mais uma vez, que o Estado devia deitar mão a todos os recursos de que necessitasse para se defender dos seus inimigos, tanto externos quanto internos, e que, por esse motivo, a justiça devia considerar em primeiro lugar a questão da eficácia. Seria de esperar que Thierack, como presidente do Tribunal do Povo, dirigisse um agradecimento especial a Goebbels pela exposição dos desígnios fundamentais da justiça e que lhe pedisse que no futuro lhes repetisse as palavras que eram tão definidoras e estimulantes. Mais tarde, o próprio Thierack (entretanto nomeado ministro da Justiça) encarregar-se-ia de estimular nas suas «Richerbrefe» («Cartas aos Juízes», de sua iniciativa) a nova maneira alemã de ministrar a justiça.
As suas «cartas» destinavam-se a orientar os juízes para que estes tomassem as suas decisões de acordo com o sentido político desejado. A primeira, datada de 1 de outubro de 1942, era um apelo:
Senhores juízes alemães!
Segundo a interpretação do antigo Direito germânico, o líder [«Führer»] do povo era sempre o seu supremo juiz. Portanto, quando outorgava a outro homem a sua função de juiz, isso significava não apenas que ele recebia do líder o seu poder jurídico, sendo, por isso, responsável perante ele, mas que a condição de líder e de juiz eram semelhantes em carácter e natureza.
O juiz é, por isso, o depositário da autopreservação do povo. É o protetor dos valores do povo e o que põe fim à falta de valores. Cabe-lhe a ordenação dos processos vitais que são enfermidades que afetam a vida do corpo do povo. Uma magistratura forte é indispensável à preservação de uma verdadeira comunidade do povo.
Com esta tarefa, o juiz torna-se um colaborador direto da chefia do Estado. É um cargo que, elevando-o, lhe permite reconhecer as limitações das suas tarefas que, ao contrário do que poderá crer uma doutrina liberalista, não servem para controlar a chefia do Estado. E se o Estado não possui uma organização que dê a liderança ao melhor, a justiça não pode substituir essa seleção pela sua atividade. […]
Um corpo de magistrados não se deve apoiar sem sentido crítico nas muletas da lei. Não procurará na lei, amedrontado, algo que o proteja, mas, responsavelmente e no âmbito da lei, chegará à decisão que melhor ajude a organização da vida da comunidade do povo.
A guerra, e é um exemplo, põe os magistrados perante exigências que são muito diferentes das dos tempos de paz. Cada juiz tem de se adaptar a estas mudanças. E só o pode fazer quando conhece as intenções e os propósitos da chefia do Estado. O juiz deve, por isso, estar em contacto estreito com a chefia do Estado. Só deste modo é que se pode assegurar de que ele cumpre a sua destacada tarefa em prol da comunidade do povo e de que a administração da justiça — e à margem das verdadeiras tarefas que tem a seu cargo em prol da organização da vida do povo — não se vê como um fim em si. Daqui, resulta o sentido e a necessidade de uma liderança para a justiça.
Goebbels e Hitler não poderiam estar mais satisfeitos. E Thierack, que se havia afirmado presidente do Tribunal do Povo, não só chegou a ministro da Justiça, como também a presidente da Academia para o Direito Alemão e líder da União dos Magistrados Nacional-Socialistas.
Thierack não estava apenas subordinado ao Führer, mas também ao chefe da chancelaria do NSDAP, Martin Bormann. Hitler teve esse cuidado ao aprovar o Decreto sobre os Plenos Poderes da Justiça, onde se lia:
Para cumprir as tarefas do Grande Reich Alemão, exige-se uma forte administração da justiça. Por isso, atribuo ao ministro da Justiça plenos poderes e a tarefa, de acordo com as minhas linhas orientadoras e instruções, de estabelecer uma administração nacional-socialista da justiça, em articulação entre o ministro do Reich, e chefe da chancelaria do Reich, e o chefe da chancelaria do Partido, para tomar todas as medidas necessárias a este propósito. Nisto, pode divergir do Direito vigente.
Com a nomeação de Thierack para ministro da Justiça do Reich, houve mais mudanças de pessoas no Ministério da Justiça. O veterano secretário de Estado Schlegelberger foi reformado, com uma remuneração de 100 mil marcos, e o seu lugar foi ocupado por Curt Rothenberger.
Num primeiro momento, chegou a estar prevista a nomeação de Freisler como presidente da Academia para o Direito Alemão, mas Hitler, que sabia das simpatias de Freisler pelas ideias de Frank, preferiu oferecer-lhe o lugar de presidente do Tribunal do Povo depois da saída de Thierack.
No seu período final, o Tribunal do Povo ganhou, assim, como presidente um homem que, como poucos, colaborara de várias maneiras e em diversas funções com o estabelecimento de uma jurisprudência nacional-socialista, como advogado, conferencista, membro do partido, publicista e secretário de Estado. Sempre na primeira linha — da frente interna, pode dizer-se —, chegou ao topo do Tribunal do Povo. Foi o começo da última fase da sua carreira e, ao mesmo tempo, o começo da luta impiedosa do Tribunal do Povo.