Mario Duayer
Os Grundrisse constituem o primeiro de uma série de manuscritos redigidos por Karl Marx no desenvolvimento de sua crítica da economia política, que culmina na publicação do livro I de O capital, em 1867. Na verdade, como se sabe, essa crítica tem uma primeira versão publicada em 1859 (portanto, logo em seguida à redação dos Grundrisse), sob o título Para a crítica da economia política[a] – o volume inicial do primeiro livro de uma obra inicialmente projetada para seis livros. As investigações preparatórias dos demais terminaram por suscitar a modificação do projeto original e resultaram nos chamados Manuscritos de 1861-1863 e de 1863-1865. Na década e meia que transcorre desde os primeiros estudos de economia política até a redação do primeiro caderno dos Grundrisse, Marx deixa registrado em inúmeros cadernos de extratos e notas o imenso material que testemunha o longo processo de elaboração de sua crítica da economia política. Os Grundrisse marcam exatamente o princípio da consolidação desse processo que assume uma forma definitiva, ainda que parcial, somente dez anos mais tarde, no livro I de O capital.
Os estudos de economia política de Marx remontam à década de 1840. O Prefácio de Para a crítica da economia política inclui uma breve descrição do itinerário de suas pesquisas sobre o tema, situando a decisão de investigar as questões econômicas nos anos 1842-1843. A necessidade desses estudos ficou patente quando, naqueles anos, como redator da Rheinische Zeitung [Gazeta Renana], Marx se viu na embaraçosa situação de não dominar o assunto e, portanto, não poder intervir nos debates relativos aos chamados “interesses materiais”, suscitados pelas deliberações da Assembleia Legislativa renana sobre roubo de lenha e parcelamento da propriedade fundiária ou pelas controvérsias a respeito de livre-cambismo e protecionismo. Divergências com os diretores acerca da condução da revista, segundo Marx, ofereceram-lhe o ensejo para deixar a publicação, retirar-se da cena pública e retomar os estudos[1].
A revisão crítica da filosofia do direito de Hegel, cuja introdução[b] aparece nos Deutsch-Französische Jahrbücher [Anais Franco-Alemães] publicados em Paris, em 1844, foi o primeiro trabalho de Marx para esclarecer tais dúvidas. Essa investigação permite-lhe concluir que
nem as relações jurídicas nem as formas de Estado podem ser compreendidas a partir de si mesmas ou do assim chamado desenvolvimento geral do espírito humano, tendo antes a sua origem nas condições materiais de vida, cujo conjunto Hegel [...] resume sob o nome “sociedade civil”, e que a anatomia da sociedade civil deve ser buscada na economia política.[2]
Essa é a justificativa teórica para os estudos da economia burguesa no período que se estende de 1843 a 1849. Em 1844, por exemplo, Marx sublinha no prefácio aos Manuscritos econômico-filosóficos que o “leitor familiarizado com a Economia Nacional” perceberia com facilidade que os resultados ali obtidos foram produto “de uma análise inteiramente empírica, fundada num meticuloso estudo crítico da Economia Nacional”[3].
Ao longo desses anos, Marx combina a atividade científica com uma intensa atuação política. Na verdade, não se pode afirmar que realiza plenamente a intenção de retornar ao gabinete de estudos, tanto em razão de seu envolvimento político quanto das frequentes mudanças de cidade e país, quase todas resultado de perseguição política. Em 1845, é expulso de Paris, para onde havia se mudado dois anos antes, após deixar a redação da Gazeta Renana. Dali transfere-se para Bruxelas, onde vive até 1848, quando é deportado da Bélgica. Retorna a Paris e, imaginando que a revolução de 1848 se alastraria à Alemanha, regressa a Colônia. Com a vitória da contrarrevolução em toda a Europa, é banido da cidade alemã em 1849 e, finalmente, se refugia em Londres, onde vive pelo resto da vida.
Nesse período, mesmo em condições longe de favoráveis à atividade científica, Marx prepara, entre outros, os seguintes trabalhos (alguns dos quais em parceria com Engels): em 1843, Sobre a questão judaica e Crítica da filosofia do direito de Hegel; em 1844, “Glosas críticas ao artigo ‘O rei da Prússia e a reforma social. De um prussiano’”, “Crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução” e Manuscritos econômico-filosóficos; em 1845, A sagrada família e as Teses sobre Feuerbach; em 1846, A ideologia alemã; em 1847, Miséria da filosofia e Trabalho assalariado e capital; e, em 1848, Manifesto Comunista[c].
O imenso volume de materiais, como livros, revistas, jornais, relatórios oficiais e estatísticas, consultado por Marx na elaboração dessas e outras obras pode ser conhecido com detalhamento graças ao caráter sistemático de seu método de trabalho. Já em novembro de 1837, aos dezenove anos, ele comenta em uma carta ao seu pai que havia adotado o “hábito de fazer extratos de todos os livros que leio [...] e, incidentalmente, rabiscar minhas próprias reflexões”[4]. O que significa dizer que os extratos redigidos por ele no curso de sua extensa atividade intelectual documentam minuciosamente os temas e autores que foram objeto de sua investigação, permitindo não só acompanhar a evolução de seus estudos, as áreas específicas de interesse que deles se desdobram, mas, sobretudo, compreender o seu método de trabalho. Por esse motivo, costuma-se dizer que examinar os Grundrisse (e, nesse sentido, os demais materiais inéditos) é como ter acesso ao laboratório de estudos de Marx.
Daí se compreende a absoluta relevância da IV Seção da MEGA, exclusivamente dedicada à publicação dos excertos, anotações e glosas de Marx e Engels. Para ter noção do volume gigantesco de material pesquisado por Marx, basta dizer que para a IV Seção está previsto um total de 32 volumes, que, a julgar pela dimensão dos dez já publicados, terão entre 700 e 1.700 páginas cada. Escritos em idiomas diversos – alemão, grego antigo, latim, francês, inglês, italiano, espanhol e russo –, os cadernos de extratos compreendem uma diversidade impressionante de disciplinas, com trechos recolhidos em livros de filosofia, arte, religião, política, direito, literatura, história, economia política, relações internacionais, tecnologia, matemática, psicologia, geologia, mineralogia, agronomia, etnologia, química e física[5].
Recorrendo a esses cadernos, redigidos no período que se estende de 1843 (quando Marx chega a Paris) a 1849 (data de seu exílio em Londres), é possível constatar que ali começam seus primeiros estudos de economia política. Ao todo, são 27 cadernos de extratos compostos ao longo desses anos – e nas condições sublinhadas acima –, assim discriminados: “Cadernos de Paris” (1843-1845, nove volumes); “Cadernos de Bruxelas” (1845, seis volumes); “Cadernos de Manchester” (1845, nove volumes); e três cadernos que extratam a obra de Gustav von Güllich, Historical Account of Commerce[6]. Além da variedade de matérias englobadas pelos estudos de Marx, tais como história moderna, história antiga, política, filosofia, teoria social, no que diz respeito à economia política os “Cadernos de Paris” já trazem extratos das obras de Adam Smith, David Ricardo, Jean-Baptiste Say, James Mill e John McCulloch. Nos “Cadernos de Bruxelas” aparecem extratos de Jean Sismondi, Nassau Senior, François Ferrier e Heinrich Storch, para mencionar apenas os nomes mais conhecidos. O mesmo se pode dizer dos “Cadernos de Manchester”, concentrados em autores como William Petty, Edward Misselden, Charles Davenant, Thomas Tooke, James Gilbart, William Thompson etc[7].
Parece possível afirmar que, nesse período, em conformidade com seu método de investigação, Marx começa a se apropriar do discurso da economia política de seu tempo e, simultaneamente, a delinear sua crítica, de algum modo já exercitada em Miséria da filosofia e Trabalho assalariado e capital, ambos de 1847, bem como no Manifesto Comunista, no ano seguinte. Entretanto, a apropriação da economia política burguesa não estava completa, tampouco a sua crítica, como demonstra o fato de que Marx, a partir de 1850, já na Inglaterra, retoma seus estudos de temas econômicos. No Prefácio de Para a crítica da economia política, Marx lista alguns motivos que o fizeram decidir “começar tudo do início e proceder a uma assimilação crítica do novo material”: o imenso volume de informação disponível no Museu Britânico sobre a história da economia política; Londres como posto de observação privilegiado da sociedade burguesa; e o novo surto de desenvolvimento experimentado pela economia burguesa com a descoberta do ouro australiano e californiano[8]. Além disso, a seu ver, após a derrota das revoluções de 1848, o estudo da estrutura e dinâmica da economia capitalista constituía igualmente um imperativo para a luta política e a transformação social. Em 1850, na Neue Rheinische Zeitung [Nova Gazeta Renana], revista publicada em parceria com Engels, em Londres, Marx sublinhava que “uma nova revolução só é possível em consequência de uma nova crise [...]”[9].
O resultado dessa etapa de estudos é outra imensa coleção de extratos, reunida nos chamados “Cadernos de Londres”, formados por 26 volumes escritos de setembro de 1850 a agosto de 1853. Os cadernos I a VI (1850-
-1851) totalizam cerca de 600 páginas impressas e contêm extratos, entre outros, dos seguintes autores: John Stuart Mill, John Fullarton, Tooke, Robert Torrens, Gilbart, James Taylor, Senior, Germain Garnier, William Jacob, Ricardo, Henry Carey, John Gray, William Cobbett e John Locke. Os estudos concentram-se em questões relativas a dinheiro, crédito, sistema bancário e crises[10].
O volume 8 da IV Seção da MEGA, de cerca de 750 páginas, compreende os cadernos VII a X, de março a junho de 1851, que resenham textos dos seguintes pensadores da economia política: Ricardo, Smith, James Stuart, Thomas Malthus, John Tuckett, Thomas Chalmers, McCulloch, George Ramsay, Thomas de Quincey, entre outros. Além disso, inclui dois cadernos de notas intitulados “Bullion: o sistema monetário completo”, nos quais Marx sintetiza o resultado de sua investigação sobre o assunto. Neles, anota o que seriam as passagens mais importantes dos textos dos 91 autores examinados e tece alguns comentários. Por isso, Marcello Musto sugere que “Bullion” pode ser considerado a “primeira formulação autônoma da teoria do dinheiro e da circulação [de Marx]”[11].
Os cadernos XI a XIV, de julho a setembro de 1851, fazem parte do volume 9 da Seção IV da MEGA, com cerca de 540 páginas de texto. Os autores de economia política estudados nesses cadernos são, entre outros, Senior, Thomas Hopkins, Ricardo, Joseph Townsend, David Hume, Malthus e Adolphe Dureau de La Malle. Em conexão com temas de economia política, Marx resenha também obras sobre demografia, colonização, tráfico de escravos e outros temas.
Os volumes 10 e 11 da Seção IV da MEGA infelizmente ainda não foram publicados. Não obstante, podemos recorrer às informações fornecidas por Musto para ter uma ideia de seu conteúdo. Os cadernos XV e XVI, de setembro a novembro de 1851, pertencentes ao volume 10, dedicam-se à história da tecnologia e a questões variadas de economia política, respectivamente[12]. Os últimos “Cadernos de Londres” (XVII a XXIV) são escritos entre abril e agosto de 1852, quando Marx retoma o trabalho de investigação anteriormente interrompido, entre outras razões, para redigir O 18 de brumário de Luís Bonaparte[d]. O tema central desses cadernos são os “vários estágios do desenvolvimento da sociedade humana [...] grande parte da pesquisa volta-se para os debates históricos sobre a Idade Média e a história da literatura, da cultura e dos costumes”[13]. Por fim, cabe mencionar os últimos cadernos de extratos redigidos antes do início do trabalho nos Grundrisse (de setembro de 1853 a janeiro de 1855), a saber, nove extensos volumes sobre a história da diplomacia e da Espanha, investigação em grande medida vinculada ao seu trabalho como correspondente do New York Tribune, a partir de 1851[14].
Esses milhares de páginas de extratos documentam, portanto, o processo de investigação de Marx, ou, em suas palavras, a pesquisa destinada a “captar detalhadamente a matéria, analisar suas várias formas de evolução e rastrear a sua conexão íntima. Só depois de concluído esse trabalho é que se pode expor adequadamente o movimento do real [...]”[15]. Tal é o processo de assimilação e crítica das formas de pensamento científicas sobre a economia burguesa do qual os Grundrisse constituem, na verdade, a tentativa inicial de consolidação e sistematização. Na já mencionada carta a Engels de dezembro de 1857, Marx refere-se justamente aos Grundrisse ao informar que “trabalho como um louco […] na síntese dos meus estudos econômicos” para ao menos ter claros os “esboços antes do dilúvio”. Os seus estudos de economia política desde o início tiveram o propósito de investigar a estrutura, a dinâmica e as contradições da economia capitalista, pois as crises daí decorrentes constituem, em sua opinião, aberturas para as práticas revolucionárias e transformadoras. Compreende-se, portanto, que o prognóstico de uma crise econômica iminente – o “dilúvio” – forneceu a Marx estímulo para pôr no papel as descobertas de longos anos de estudos de economia política e dar uma primeira forma à sua crítica.
Perplexo com o impressionante trabalho de investigação registrado nos cadernos de extratos, Maximilien Rubel se pergunta sobre essa paixão, essa mania de copiar de Marx, sobretudo quando se leva em conta, além de suas inúmeras atividades como ativista político, jornalista e escritor, as condições de vida miseráveis que teve de enfrentar justamente no período que coincide com os anos de preparação de sua crítica da economia política[16]. Vivendo em extrema pobreza, permanentemente sitiado por credores, cliente habitual de lojas de penhor, castigado por vários problemas de saúde e devastado pela morte prematura de quatro de seus sete filhos – decerto em virtude das condições materiais em que vivia a família –, o que de fato surpreende é como ele foi capaz de produzir, nessas circunstâncias, não só um trabalho magnífico, uma das teorias científicas mais importantes e influentes de todas as épocas, mas, acima de tudo, uma obra motivada por uma paixão genuína pelo ser humano. Obra que, nas palavras de Marx em carta a Ferdinand Lassalle, em novembro de 1858, era o “produto de quinze anos de pesquisa, i.e., os melhores anos de minha vida”[17].
Tendo em vista que Marx só pôde completar uma parte relativamente pequena de um processo de pesquisa de extraordinária amplitude, a divulgação dos escritos não publicados tem enorme significado, pois dá acesso a dimensões de seu pensamento que de outra forma permaneceriam inacessíveis. Os Grundrisse, além dessa qualidade que compartilham com os demais textos inéditos, têm a particularidade de ser o primeiro esboço da obra-prima O capital. Ademais, a despeito de seu caráter inacabado, há intérpretes que sugerem que os Grundrisse são o único trabalho em que a teoria do capitalismo, da gênese ao colapso, foi delineada por Marx em sua totalidade. Pode-se dizer que constituem a única obra completa de economia política escrita por ele, não importa se obscura e desordenada[18].
Outros autores têm interpretação semelhante. Admitindo que nos Grundrisse a teoria crítica marxiana não estava inteiramente desenvolvida, Moishe Postone sublinha que o manuscrito exibe de maneira muito clara a orientação geral de sua “crítica madura da modernidade capitalista e a natureza e significância das categorias fundamentais daquela crítica”[19]. Na mesma linha, Musto argumenta que o texto, apesar de sua complexidade, é também muito gratificante, pois “fornece o roteiro único de toda a extensão do tratado de que O capital é somente uma fração”[20].
Esta apresentação não tem o propósito de oferecer uma descrição minuciosa do manuscrito marxiano, muito menos busca prefaciá-lo com uma análise que sancionaria uma interpretação substantiva. Tendo enfatizado as circunstâncias que marcaram seu longo processo de maturação e destacado o formidável material bibliográfico de que se valeu Marx para reunir condições para prepará-lo, cabe agora comentar as principais descobertas que fizeram dos Grundrisse a formulação inicial da crítica em que, para seu autor, “uma importante visão das relações sociais é exposta cientificamente pela primeira vez”[21].
As categorias descobertas por Marx não aparecem nos dois textos que abrem os Grundrisse, “Bastiat e Carey” e “Introdução”. O primeiro, a despeito do seu interesse como crítica ao que Marx denomina concepções harmonicistas do capitalismo, não tem o objetivo de expor a nova teoria crítica. A “Introdução”, por seu lado, talvez seja um dos escritos mais discutidos da obra marxiana, apesar de ter sido deixado de lado pelo próprio autor, que o menciona apenas uma vez[22], e aparentemente ignorado por Engels. O interesse que o texto atrai pode ser explicado pelo fato de que, embora inacabada, a “Introdução” representa um dos raros momentos em que as questões “metodológicas” são tratadas por Marx de maneira autônoma. Entre tantos outros projetos irrealizados, ele não encontrou tempo, como pretendia, para redigir um pequeno ensaio que tornaria acessível para o “leitor comum o núcleo racional do método dialético que Hegel descobriu, mas também mistificou”[23].
Ao fim do último caderno do manuscrito há uma pequena seção intitulada “Valor”, que traz praticamente a mesma frase que abre O capital: “A primeira categoria em que se apresenta a riqueza burguesa é a da mercadoria”[24]. O que significa dizer que, ao finalizar os Grundrisse, Marx já se decidira pela forma de apresentação: a mercadoria como ponto de partida para a exposição do objeto – a economia capitalista. Sem a estruturação formal da obra definitiva, no “Capítulo do dinheiro” o manuscrito de 1857-1858 propriamente dito inicia, ao contrário, com uma crítica ao livro De la réforme des banques, do autor proudhoniano Alfred Darimon, publicado em 1856. O exame de Darimon oferece a Marx a oportunidade de se antecipar a eventuais propostas de inspiração proudhoniana – a seu ver, pseudossocialistas – para a crise, ou seja, “o dilúvio” que justamente motivara a redação dos Grundrisse. A crítica à proposta de reforma do sistema bancário de Darimon, da mesma forma que às ideias de Proudhon em Miséria da filosofia, procura mostrar que, sob a aparência de uma proposta socialista, o que existe de fato é uma teoria positiva das relações sociais postas pelo capital. Em lugar de transformação radical da realidade, nas obras de inspiração proudhoniana o que se tem são propostas para reformar as estruturas existentes. Por essa razão, a crítica a Darimon se desdobra na primeira formulação da teoria do dinheiro de Marx, onde aparecem os desenvolvimentos então inéditos de elementos essenciais de sua análise da forma mercadoria da riqueza na sociedade capitalista, de sua teoria do valor, além da exposição da gênese do dinheiro como resultado necessário do desenvolvimento da mercadoria.
No entanto, a despeito da importância desse primeiro esboço da teoria do dinheiro, talvez seja possível afirmar que o aspecto mais original e fundamental do capítulo, do ponto de vista da crítica da economia política, é a análise da forma de dominação suprapessoal implicada pela mercadoria, pelo valor, enfim, pelo caráter mercantil da sociedade capitalista. Logo após concluir sua crítica a Darimon, Marx sublinha que
A dissolução de todos os produtos e atividades em valores de troca pressupõe a dissolução de todas as relações fixas (históricas) de dependência pessoal na produção, bem como a dependência multilateral dos produtores entre si. [...]
A dependência recíproca e multilateral dos indivíduos mutuamente indiferentes forma sua conexão social. Essa conexão social é expressa no valor de troca [...]; o indivíduo tem de produzir um produto universal – o valor de troca, ou este último por si isolado, individualizado, dinheiro. [...] o poder que cada indivíduo exerce sobre a atividade dos outros ou sobre as riquezas sociais existe nele como o proprietário de valores de troca, de dinheiro. Seu poder social, assim como seu nexo com a sociedade, [o indivíduo] traz consigo no bolso.[25]
A articulação entre os produtores, portanto, deixa de ser operada por relações de dominação e subordinação pessoais e passa a ser realizada pela troca. O que conecta os sujeitos – agora produtores de mercadorias – é a sua necessidade de produzir valor, riqueza universal, dinheiro. Em uma palavra, os sujeitos são articulados como produtores, isto é, como meros trabalhadores, e nessa condição têm de produzir valor, riqueza abstrata e, por isso, crescente. Como resultado dessa forma particular de sociabilidade determinada pela relação mercantil, os sujeitos – reduzidos a trabalhadores – estão subordinados à dinâmica incontrolada do produto de sua própria atividade, de seu trabalho. Nessas circunstâncias, como o valor é a categoria determinante do produto do trabalho, segue-se que o sentido da produção é a quantidade, e, portanto, o seu crescimento ilimitado. Trata-se, desse modo, de uma forma de dominação abstrata em que o sentido do produto, o sentido da produção da riqueza, está perdido para os sujeitos.
Não cabe aqui, evidentemente, explorar em detalhe essa elaboração teórica nos Grundrisse, quase perdida em meio à análise das determinações do dinheiro, suas funções como medida de valor, meio de circulação etc., sem mencionar uma descrição minuciosa dos metais preciosos como portadores da relação monetária. No entanto, é preciso dar-lhe o devido destaque, pois essa concepção de vida social estranhada e de dominação abstrata é central para a dimensão crítica do pensamento marxiano. São essas relações sociais de produção que, em razão da dominação abstrata que pressupõem e de sua tendência à reprodução contínua e ampliada, desqualificam as propostas de reforma, conferem sentido à teoria que informa as ações por sua transformação radical e inspiram as lutas pela emancipação dessas estruturas sociais de dominação autoproduzidas. Dispensável dizer que esse tema aparece em diversos momentos de O capital, como na seção sobre o caráter fetichista da mercadoria e nas considerações sobre a maquinaria, que, na qualidade de elemento do capital, em lugar de objetivação da produtividade do trabalho social se apresenta como poder externo que submete o trabalhador e suga trabalho vivo.
O “Capítulo do capital”, o mais extenso do manuscrito, traz pela primeira vez, embora ainda de maneira lacunar e pouco sistemática, as categorias fundamentais da crítica da economia política marxiana, tais como “mais-valor (à diferença de suas formas derivadas), força de trabalho (ou capacidade de trabalho) como mercadoria [...], trabalho necessário e mais-trabalho, mais-valor absoluto e relativo, capital constante e variável [...]”[26].
Produção capitalista, sendo produção de valor, tem necessariamente de ser produção de mais-valor. Mais-valor, por sua vez, subentende um processo por meio do qual um dos envolvidos no processo de produção – no caso, o trabalhador – produz mais valor do que recebe sob a forma de salário. Por conseguinte, a determinação da produção capitalista como produção de valor pressupõe a exploração do trabalhador, descoberta por Marx, e uma série de outras categorias fundamentais da economia capitalista: duplo caráter do trabalho, processo de trabalho e processo de valorização etc. O mais-valor, contudo, além de desvendar o mecanismo de acumulação de capital, isto é, a expropriação do trabalhador, expressa um processo ainda mais fundamental: mais do que significar a exploração do trabalho, como de fato o faz, o mais-valor representa a objetivação, estranhada dos sujeitos, do potencial que possui o trabalho (social) de reproduzir de forma ampliada as suas condições antecedentes.
Pode-se compreender melhor o mais-valor como expressão do estranhamento da produtividade do trabalho social quando se leva em conta que o trabalho, como categoria especificamente humana, diferencia o metabolismo da espécie humana com a natureza. Nos outros animais esse metabolismo é sempre uma adaptação passiva, geneticamente determinada, às mudanças das condições do ambiente, ao passo que no ser humano o metabolismo caracteriza-se por uma adaptação ativa, metabolismo por meio do qual, pelo trabalho, o ser humano cria as condições materiais de sua própria reprodução. Em virtude dessa constituição interna do trabalho, a situação típica no ser humano é a reprodução ampliada[27]. O mais-valor, nesse sentido, é expressão historicamente específica dessa capacidade, dessa potência humana, autonomizada em relação aos seres humanos reduzidos a meros trabalhadores, potência que deveio riqueza que opera como um “sujeito automático” sob a forma de capital. Riqueza sempre crescente e crescentemente estranhada.
O capital, riqueza autonomizada dos sujeitos, é o que Marx denomina “contradição em processo” em uma das passagens mais brilhantes e, ao mesmo tempo, esclarecedoras de sua crítica da relação social do capital. Por essa razão, citamos nesta apresentação tal fragmento dos Grundrisse, que sintetiza tão bem o espírito da obra marxiana:
A troca de trabalho vivo por trabalho objetivado, i.e., o pôr do trabalho social na forma de oposição entre capital e trabalho assalariado, é o último desenvolvimento da relação de valor e da produção baseada no valor. O seu pressuposto é e continua sendo a massa do tempo de trabalho imediato, o quantum de trabalho empregado como o fator decisivo da produção da riqueza. No entanto, à medida que a grande indústria se desenvolve, a criação da riqueza efetiva passa a depender menos do tempo de trabalho e do quantum de trabalho empregado que do poder dos agentes postos em movimento durante o tempo de trabalho, poder que – sua |poderosa efetividadei –, por sua vez, não tem nenhuma relação com o tempo de trabalho imediato que custa sua produção, mas que depende, ao contrário, do nível geral da ciência e do progresso da tecnologia [...]. A riqueza efetiva se manifesta antes [...] na tremenda desproporção entre o tempo de trabalho empregado e seu produto, bem como na desproporção qualitativa entre o trabalho reduzido à pura abstração e o poder do processo de produção que ele supervisiona. O trabalho não aparece mais tão envolvido no processo de produção quando o ser humano se relaciona ao processo de produção muito mais como supervisor e regulador. [...] Não é mais o trabalhador que interpõe um objeto natural modificado como elo mediador entre o objeto e si mesmo [...]. Ele se coloca ao lado do processo de produção, em lugar de ser o seu agente principal. Nessa transformação, o que aparece como a grande coluna de sustentação da produção e da riqueza não é nem o trabalho imediato que o próprio ser humano executa nem o tempo que ele trabalha, mas a apropriação de sua própria força produtiva geral, sua compreensão e seu domínio da natureza por sua existência como corpo social – em suma, o desenvolvimento do indivíduo social. O roubo de tempo de trabalho alheio, sobre o qual a riqueza atual se baseia, aparece como fundamento miserável em comparação com esse novo fundamento desenvolvido, criado por meio da própria grande indústria. Tão logo o trabalho na sua forma imediata deixa de ser a grande fonte da riqueza, o tempo de trabalho deixa, e tem de deixar, de ser a sua medida e, em consequência, o valor de troca deixa de ser [a medida] do valor de uso. O trabalho excedente da massa deixa de ser condição para o desenvolvimento da riqueza geral, assim como o não trabalho dos poucos deixa de ser condição do desenvolvimento das forças gerais do cérebro humano. Com isso, desmorona a produção baseada no valor de troca, e o próprio processo de produção material imediato é despido da forma da precariedade e contradição. [Dá-se] o livre desenvolvimento das individualidades e, em consequência, a redução do tempo de trabalho necessário não para pôr trabalho excedente, mas para a redução do trabalho necessário da sociedade como um todo a um mínimo, que corresponde então à formação artística, científica etc. dos indivíduos por meio do tempo liberado e dos meios criados para todos eles. O próprio capital é a contradição em processo, [pelo fato] de que procura reduzir o tempo de trabalho a um mínimo, ao mesmo tempo que, por outro lado, põe o tempo de trabalho como única medida e fonte da riqueza. Por essa razão, ele diminui o tempo de trabalho na forma do trabalho necessário para aumentá-lo na forma do supérfluo; por isso, põe em medida crescente o trabalho supérfluo como condição – |questão de vida e mortef – do necessário. Por um lado, portanto, ele traz à vida todas as forças da ciência e da natureza, bem como da combinação social e do intercâmbio social, para tornar a criação da riqueza (relativamente) independente do tempo de trabalho nela empregado. Por outro lado, ele quer medir essas gigantescas forças sociais assim criadas pelo tempo de trabalho e encerrá-las nos limites requeridos para conservar o valor já criado como valor. As forças produtivas e as relações sociais – ambas aspectos diferentes do desenvolvimento do indivíduo social – aparecem somente como meios para o capital, e para ele são exclusivamente meios para poder produzir a partir de seu fundamento acanhado. |De fatoi, porém, elas constituem as condições materiais para fazê-lo voar pelos ares.[28]
Para finalizar, algumas considerações sobre a tradução. Como os Grundrisse são um esboço, um texto de trabalho, sem o polimento estilístico do próprio autor, a orientação geral seguida foi interferir o mínimo possível no original, evitando toda paráfrase. Com isso, acreditamos que os leitores desta tradução certamente poderão perceber o caráter inacabado do texto e, tanto quanto isso é possível em uma tradução, terão acesso ao original livre de interpretações. Pelo mesmo motivo, ao contrário de outras traduções, optamos por não atenuar certas expressões utilizadas por Marx, talvez em momentos de grande irritação com as tolices que submetia à crítica, as quais poderiam ser consideradas grosseiras ou obscenas. Afinal, trata-se de um texto que o autor não destinava à publicação e que, por isso, expressa seu estado de espírito.
Em determinados momentos, o emprego de neologismos mostrou-se inevitável. Nesses casos, procuramos observar os usos correntes na literatura marxista em português. A única e importante exceção refere-se à categoria “Mehrwert”, que tradicionalmente vem sendo traduzida como “mais-valia”. Em nossa opinião, é impossível justificar tal tradução, seja em termos literais ou teóricos. Literalmente, “Mehrwert” significa “mais-valor”. Poderia também ser traduzida como “valor adicionado” ou “valor excedente”. Uma vez que não é tradução literal de “Mehrwert”, o uso de “mais-valia” teria de ser justificado teoricamente. Essa tarefa é impossível, pois, como “valia” nada significa nesse contexto, não há como justificar “mais-valia” do ponto de vista teórico pela simples anteposição do advérbio. Ademais, além de ser uma tradução ilícita, a expressão “mais-valia” converte uma categoria de simples compreensão em algo enigmático, quase uma coisa. Produção capitalista, como se viu, é produção de valor, e produção de valor tem de ser produção crescente. Portanto, produção capitalista é, por definição, produção de mais-valor. Em síntese, nesta edição dos Grundrisse adotou-se “mais-valor” porque, além de ser a tradução literal de “Mehrwert”, contribui para esclarecer o conteúdo da categoria.
A revisão técnica e a uniformização do trabalho dos tradutores exigiu uma constante troca de informações, comparações e correções. A versão em português dos Grundrisse representa a consolidação de um processo de trabalho que envolveu inúmeras pessoas, desde os tradutores até os responsáveis pela edição da Boitempo, incluindo os colegas que apoiaram de diversas maneiras o projeto, e aos quais gostaria de deixar aqui registrados os meus sinceros agradecimentos: em primeiro lugar aos outros tradutores, particularmente ao Nélio Schneider, sempre disponível para dirimir dúvidas; aos colegas e amigos da Universidade Federal Fluminense (UFF) João Leonardo Medeiros e Virgínia Fontes, pelo apoio e pelas discussões sobre aspectos teóricos da tradução; ao colega e amigo, também da UFF, Victor Hugo Klagsbrunn, pela consultas sobre expressões em alemão; a Rodrigo Moerbeck, pelas sugestões de organização do texto; a Marcello Musto, pelos esclarecimentos relativos à edição da MEGA. Agradeço, igualmente, o apoio da Boitempo, de sua editora Ivana Jinkings, da editora-adjunta Bibiana Leme e da responsável pelo trabalho de preparação de texto Mariana Tavares.
[a] Belo Horizonte, Autêntica, 2010. (N. E.)
[1] Karl Marx, “Prefácio”, Para a crítica da economia política, cit., §3.
[b] Karl Marx, “Crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução”, em Crítica da filosofia do direito de Hegel (São Paulo, Boitempo, 2005). (N. E.)
[2] Karl Marx, “Prefácio”, Para a crítica da economia política, cit., §4.
[3] Karl Marx, “[Prefácio (do Caderno III)]”, Manuscritos econômico-filosóficos (São Paulo, Boitempo, 2004), p. 19.
[c] Karl Marx, Sobre a questão judaica (São Paulo, Boitempo, 2010); Karl Marx, “Crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução”, em Crítica da filosofia do direito de Hegel, cit.; Karl Marx, “Glosas críticas ao artigo “O rei da Prússia e a reforma social. De um prussiano”, em Lutas de classes na Alemanha (São Paulo, Boitempo, 2010); Karl Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, cit.; Karl Marx e Friedrich Engels, A sagrada família (São Paulo, Boitempo, 2003); Karl Marx, “Ad Feuerbach”, em Karl Marx e Friedrich Engels, A ideologia alemã (São Paulo, Boitempo, 2007); Karl Marx, Miséria da filosofia (São Paulo, Expressão Popular, 2009); Karl Marx, Trabalho assalariado e capital & Salário, preço e lucro (São Paulo, Expressão Popular, 2006); Karl Marx, Manifesto Comunista (São Paulo, Boitempo, 1998). (N. E.)
[4] Karl Marx, Marx-Engels Collected Works (MECW), v. 1, 1835-1843 (Nova York, International Publishers, 1975), p. 11.
[5]Marcello Musto, “The formation of Marx’s critique of political economy: from the studies of 1843 to the Grundrisse”, Socialism and Democracy, v. 24, n. 2, jul. 2010, p. 70, nota. 11.
[6] Ibidem, p. 99.
[7] MEGA-2, IV/2 a 7.
[8] Karl Marx, “Prefácio”, Para a crítica da economia política, cit., § 7.
[9] MECW, v. 10, 1849-1851 (Nova York, International Publishers, 1978), p. 135.
[10] MEGA-2 IV/7.
[11] Marcello Musto, “The formation of Marx’s critique of political economy”, cit., p. 82.
[12] Ibidem, p. 85.
[d] São Paulo, Boitempo, 2011. (N. E.)
[13] Marcello Musto, “The formation of Marx’s critique of political economy”, cit., p. 87.
[14] MEGA IV/12.
[15] Karl Marx, “Prefácio à segunda edição alemã”, em O capital (São Paulo, Nova Cultural, 1996).
[16] Maximilien Rubel, “Les cahiers d’étude de Marx”, International Review of Social History, v. 2, n. 3, 1957, p. 392-420.
[17] MECW, v. 40, 1856-1859 (Nova York, International Publishers, 1983), p. 353-5.
[18]Martin Nicolaus, “The unknown Marx”, New Left Review, n. 48, v. I, mar.-abr. 1968, p. 43.
[19] Moishe Postone, “Rethinking Capital in light of the Grundrisse”, em Marcello Musto (org.), Karl Marx’s Grundrisse: foundations of the critique of political economy 150 years later (Londres/Nova York, Routledge, 2008), p. 120-37.
[20] Idem, “Foreword”, em ibidem, p. xxiii.
[21] Nessa carta a Lassalle, acima citada, Marx declara que já detém o material para preparar o manuscrito, sendo o atraso devido à sua preocupação com a forma. Pode-se assumir, portanto, que a essa altura ele considerava o processo de investigação substancialmente completo. Com relação à forma de exposição, essa carta mostra que o seu otimismo – não importa se por razões muito diversas – era infundado. MECW, v. 40, cit., p. 354.
[22] Karl Marx, “Prefácio”, Para a crítica da economia política, cit., § 3.
[23]Carta de Marx para Engels, janeiro de 1858. MECW, v. 40, cit., p. 248.
[24]Grundrisse, p. 758 desta edição.
[25]Grundrisse, p. 102-3 desta edição.
[26] MEGA-2 II/Apparat, p. 776.
[27] G. Lukács, Zur Ontologie des gesellschaftlichen Seins (Darmstadt, Luchterhand, 1986), p. 10 [ed. bras.: Para uma ontologia do ser social, São Paulo, Boitempo, no prelo].
[28]Grundrisse, p. 589-91 desta edição.