A história da economia política moderna termina, com Ricardo e Sismondi – polos antitéticos em que um fala inglês e o outro, francês –, exatamente como começa no final do século XVII, com Petty e Boisguillebert. A literatura político-econômica posterior se perde seja em compêndios ecléticos, sincréticos, como a obra de J. St. Mill, seja na elaboração aprofundada de áreas particulares, como A history of prices [Uma história dos preços], de Tooke[1], e, em geral, os escritos ingleses mais recentes sobre a circulação – a única área em que foram feitas descobertas efetivamente novas, pois a literatura sobre a colonização, a propriedade fundiária (em suas diferentes formas), a população etc. só se distingue da mais a ntiga pela maior riqueza de material –, seja na reprodução de antigas controvérsias econômicas para um público mais amplo e na resolução prática de problemas cotidianos, como os escritos sobre o |livre comércioi e protecionismoi, seja, por fim, em elucubrações tendenciosas sobre as orientações clássicas, uma relação em que estão, por exemplo, de Chalmers a Malthus e de Gülich a Sismondi, e, em certo aspecto, de McCulloch e Senior, em suas primeiras obras, a Ricardo. Trata-se de uma literatura totalmente de epígonos, de reprodução, de maior refinamento da forma, de apropriação mais extensa do material, de ênfase, de popularização, de síntese, de elaboração dos detalhes, sem fases de desenvolvimento decisivas e distintivas; por um lado, registro inventário, por outro, crescimento do detalhe.
As únicas exceções, aparentemente, são os escritos de Carey, o ianque, e de Bastiat, o francês, mas o último admite que se baseia no primeiro[2]. Ambos compreendem que a oposição à economia política – socialismo e comunismo – tem seu pressuposto teórico nas obras da própria Economia clássica, especialmente em Ricardo, que tem de ser considerado sua expressão última e mais perfeita. Por essa razão, ambos consideram necessário atacar, como equívoco, a expressão teórica que a sociedade burguesa ganhou historicamente na Economia moderna, e provar a harmonia das relações de produção ali onde os economistas clássicos ingenuamente retratavam seu antagonismo. O ambiente nacional a partir do qual ambos escrevem, apesar de totalmente diferente, inclusive contraditório, impele-os aos mesmos esforços. Carey é o único economista original dentre os norte-americanos. Pertence a um país em que a sociedade burguesa não se desenvolveu sobre a base do feudalismo, mas começou a partir de si mesma; em que a sociedade burguesa não aparece como o resultado remanescente de um movimento secular, mas como o ponto de partida de um novo movimento; em que o Estado, em contraste com todas as formações nacionais anteriores, desde o início esteve subordinado à sociedade burguesa e à sua produção e jamais pôde ter a pretensão de ser um fim em si mesmo; enfim, em um país em que a própria sociedade burguesa, combinando as forças produtivas de um velho mundo com o imenso terreno natural de um novo, desenvolveu-se em dimensões e liberdade de movimento até então desconhecidas e suplantou em muito todo trabalho anterior no domínio das forças naturais; e onde, enfim, os antagonismos da própria sociedade burguesa aparecem unicamente como momentos evanescentes. O que poderia ser mais natural do que as relações de produção nas quais esse imenso novo mundo se desenvolveu de maneira tão rápida, tão surpreendente e afortunada serem consideradas, por Carey, como as relações normais e eternas da produção e do intercâmbio sociais, relações que, na Europa, em especial na Inglaterra, que para ele é na verdade a Europa, eram simplesmente inibidas e prejudicadas pelas barreiras herdadas do período feudal, o que poderia ser mais natural que tais relações só lhe parecessem vistas, reproduzidas ou generalizadas de maneira distorcida ou falsificada pelos economistas ingleses porque eles confundiam as distorções contingentes daquelas relações com seu caráter imanente? Relações americanas contra relações inglesas: a isso se reduz sua crítica da teoria inglesa da propriedade fundiária, do salário, da população, dos antagonismos de classes etc. Na Inglaterra, a sociedade burguesa não existe de forma pura, correspondente ao seu conceito, adequada a si mesma. Como os conceitos dos economistas ingleses da sociedade burguesa poderiam ser a expressão verdadeira e cristalina de uma realidade que eles não conheciam? Para Carey, o efeito perturbador de influências tradicionais sobre as relações naturais da sociedade burguesa, influências que não emergiam de seu próprio seio, reduz-se em última instância à influência do Estado sobre a sociedade burguesa, a suas intervenções e ingerências. O salário, por exemplo, cresce naturalmente com a produtividade do trabalho. Se achamos que a realidade não corresponde a essa lei, temos unicamente de abstrair a influência do governo, impostos, monopólios etc., seja no Hindustão, seja na Inglaterra. As relações burguesas consideradas em si mesmas, i.e., após a dedução das influências do Estado, sempre confirmarão de fato as leis harmônicas da economia burguesa. Naturalmente, Carey não investiga em que medida essas próprias influências estatais, |dívida pública, impostosi etc., têm origem nas relações burguesas – e, por conseguinte, na Inglaterra, por exemplo, de modo algum aparecem como resultados do feudalismo, mas de sua dissolução e superação, e na própria América do Norte cresce o poder do governo central com a centralização do capital. Desse modo, enquanto Carey confronta os economistas ingleses com a maior potência da sociedade burguesa na América do Norte, Bastiat confronta os socialistas franceses com a menor potência da sociedade burguesa na França. Vocês creem que se revoltam contra as leis da sociedade burguesa em um país em que jamais se permitiu que essas leis se realizassem! Vocês as conhecem unicamente na atrofiada forma francesa, e consideram sua forma imanente o que é somente sua deformação nacional francesa. Vejam a Inglaterra. Aqui em nosso país é preciso libertar a sociedade burguesa dos grilhões que lhe pôs o Estado. Vocês desejam multiplicar esses grilhões. Primeiro desenvolvam as relações burguesas em sua forma pura e depois podemos conversar novamente. (Nesse caso Bastiat tem razão, uma vez que na França, em virtude de sua configuração social peculiar, muito do que passa por socialismo é, na Inglaterra, economia política.)
Carey, cujo ponto de partida é a emancipação da sociedade burguesa do Estado na América do Norte, termina, entretanto, com o postulado da intervenção do Estado para que o desenvolvimento puro das relações burguesas, como de fato ocorreu na América do Norte, não seja perturbado por influências exteriores. Ele é protecionista, ao passo que Bastiat é livre-cambista. A harmonia das leis econômicas aparece em todo o mundo como desarmonia, e os primeiros indícios dessa desarmonia surpreendem Carey inclusive nos Estados Unidos. De onde vem esse estranho fenômeno? Carey o explica a partir da influência destrutiva da Inglaterra sobre o mercado mundial com sua ambição ao monopólio industrial. Originalmente, as relações inglesas foram distorcidas no interior do país pelas falsas teorias de seus economistas. Atualmente, como poder dominante do mercado mundial, a Inglaterra distorce a harmonia das relações econômicas em todos os países do mundo. Essa é uma desarmonia real, de maneira nenhuma baseada meramente na concepção subjetiva dos economistas. O que a Rússia é politicamente para Urquhart, a Inglaterra é economicamente para Carey. A harmonia das relações econômicas, para Carey, baseia-se na cooperação harmônica de cidade e campo, de indústria e agricultura. Essa harmonia fundamental, que a Inglaterra dissolveu em seu interior, ela destrói por meio de sua concorrência no mercado mundial e, assim, é o elemento destrutivo da harmonia universal. Só as proteções aduaneiras – o bloqueio nacional à força – podem constituir uma defesa contra a força destrutiva da grande indústria inglesa. Consequentemente, o último refúgio das “|harmonias econômicasf” é o Estado, que antes fora estigmatizado como o único perturbador dessas harmonias. De um lado, Carey expressa aqui outra vez o desenvolvimento nacional particular dos Estados Unidos, sua oposição e concorrência com a Inglaterra. E o faz de forma ingênua, recomendando aos Estados Unidos destruir o industrialismo propagado pela Inglaterra desenvolvendo-se mais rápido por meio de proteções aduaneiras. Abstraindo dessa ingenuidade, com Carey a harmonia das relações de produção burguesas termina com a mais completa desarmonia dessas relações ali onde se apresentam no terreno mais grandioso, o mercado mundial, no desenvolvimento mais grandioso de relações entre nações produtoras. Todas as relações que lhe parecem harmônicas no interior de determinadas fronteiras nacionais ou, inclusive, na forma abstrata de relações universais da sociedade burguesa – concentração do capital, divisão do trabalho, assalariado etc. –, parecem-lhe desarmônicas ali onde se apresentam em sua forma mais desenvolvida – em sua forma de mercado mundial –, como as formas internas que produzem o domínio da Inglaterra sobre o mercado mundial e que, como efeitos destrutivos, são a consequência desse domínio. É harmônico quando, no interior de um país, a produção patriarcal dá lugar à produção industrial, e o processo de dissolução que acompanha esse desenvolvimento é apreendido exclusivamente por seu aspecto positivo. Mas se torna desarmônico quando a grande indústria inglesa dissolve a produção nacional estrangeira patriarcal, pequeno-burguesa ou outras formas que se encontrem em estágios inferiores. Para ele, a concentração do capital no interior de um país e o efeito dissolvente dessa concentração só têm aspectos positivos. Mas é desarmônico o monopólio do capital concentrado inglês com seus efeitos dissolventes sobre os pequenos capitais nacionais de outros povos. O que Carey não compreendeu é que essas desarmonias do mercado mundial são unicamente as expressões adequadas últimas das desarmonias que [são] fixadas nas categorias econômicas como relações fixas ou que têm uma existência local em menor escala. Não surpreende que, por outro lado, ele esqueça o conteúdo positivo desses processos de dissolução – o único aspecto que examina das categorias econômicas em sua forma abstrata ou das relações reais no interior de determinados países, das quais as categorias são abstraídas – em sua manifestação plena no mercado mundial. Por isso, onde as relações econômicas se apresentam a ele em sua verdade, i.e., em sua realidade universal, Carey passa de seu otimismo por princípio para um pessimismo exasperado e denunciante. Essa contradição constitui a originalidade de seus escritos e lhes confere seu significado. Ele é [norte-]americano tanto em sua afirmação da harmonia no interior da sociedade burguesa quanto na afirmação da desarmonia das mesmas relações em sua configuração de mercado mundial. Em Bastiat, não há nada disso. A harmonia dessas relações é um além que começa justamente ali onde terminam as fronteiras francesas, um além que existe na Inglaterra e na América [do Norte]. É simplesmente a forma ideal, imaginária, das relações anglo-americanas não francesas, e não a forma real que o confronta em seu próprio território. Portanto, como em Bastiat a harmonia não resulta de modo algum da riqueza da experiência vivida, mas é antes o produto afetado de uma reflexão frágil, ligeira e contraditória, o único momento de realidade nele é a exigência de que o Estado francês renuncie a suas fronteiras econômicas. Carey vê as contradições das relações econômicas tão logo elas aparecem como relações inglesas no mercado mundial. Bastiat, que simplesmente imagina a harmonia, só começa a ver a sua realização ali onde termina a França e onde concorrem entre si, liberadas da supervisão do Estado, todas as partes constitutivas da sociedade burguesa nacionalmente separadas. No entanto, inclusive essa sua última harmonia – e o pressuposto de todas as suas harmonias imaginárias anteriores – é um simples postulado, que deve ser realizado pela legislação de livre comércio.
Por essa razão, se Carey, independentemente do valor científico de suas investigações, ao menos possui o mérito de expressar em forma abstrata as grandes relações americanas e, inclusive, em oposição ao velho mundo, o único pano de fundo real em Bastiat seria a pequenez das relações francesas, que, por todo lado, metem o nariz em suas harmonias. Todavia, o mérito é supérfluo, pois as relações de um país tão antigo são suficientemente conhecidas e o que menos precisam é de tal desvio negativo para serem conhecidas. Em consequência, Carey é rico em pesquisas, por assim dizer, bona fide[a] na ciência econômica, como as pesquisas sobre crédito, renda etc. Bastiat se ocupa unicamente com paráfrases gratificantes de pesquisas inconclusivas: |a hipocrisia do contentamentof. A universalidade de Carey é a universalidade ianque. Para ele, França e China estão igualmente próximas. Ele é sempre o homem que vive tanto no litoral do oceano Pacífico como no do Atlântico. A universalidade de Bastiat é fazer vista grossa para todos os países. Como genuíno ianque, Carey absorve de todos os lados o abundante material que o velho mundo lhe oferece, não para identificar a alma imanente desse material e, desse modo, reconhecer-lhe o direito da vida particular, mas para elaborá-lo como evidências mortas, como material indiferente para seus propósitos, para suas proposições abstraídas desde seu ponto de vista ianque. Daí seu perambular por todos os países, sua estatística massiva e acrítica, sua erudição de catálogo. Bastiat oferece, ao contrário, uma história fantástica, com abstrações ora na forma de raciocínio, ora na forma de presumidos acontecimentos que, todavia, não ocorreram nunca em lugar nenhum, da mesma forma que o teólogo trata o pecado ora como lei da essência humana, ora como a história do pecado original. Por conseguinte, ambos são igualmente anistóricos e anti-históricos. No entanto, o momento anistórico de Carey é o princípio histórico atual da América do Norte, ao passo que o elemento anistórico em Bastiat é mera reminiscência da moda francesa de generalização do século XVIII. Carey, portanto, é informe e difuso, Bastiat, afetado e lógico do ponto de vista formal. O máximo que consegue Bastiat são lugares-comuns expressos de maneira paradoxal, polidos |em facetasf. Em Carey, algumas teses gerais são antecipadas em forma axiomática. Elas vêm seguidas de um material informe, a compilação como prova – a matéria de suas teses não é de modo nenhum elaborada. Em Bastiat, o único material – abstraindo de alguns exemplos locais ou de fenômenos ingleses normais dispostos de maneira fantástica – consiste só das teses gerais dos economistas. A principal antítese de Carey é Ricardo, em síntese, os modernos economistas ingleses; a de Bastiat, os socialistas franceses[3].
As principais teses de Bastiat são as seguintes[4]: todos os homens aspiram a uma fixidez no rendimento, a uma |renda fixaf. {Autêntico exemplo francês: 1) Todo homem quer ser funcionário público ou fazer de seu filho um funcionário público. (Ver p. 371[b].)} O salário é uma forma fixa de remuneração (p. 376) e, portanto, uma forma muito aperfeiçoada de associação, em cuja forma originária predomina “o aleatório”[5], porquanto “|todos os associadosf” estão sujeitos “|a todos os riscos do empreendimentof”[6]. {Se o capital assume o risco por conta própria, a remuneração do trabalho se fixa sob o nome de saláriof. Se o trabalho deseja assumir para si as boas e más consequências, a remuneração do capital se destaca e se fixa sob o nome de juros (p. 382).} (Sobre essa associação, ver ainda p. 382-3.) Todavia, se originalmente predomina o aleatório na |condição do trabalhadorf, a estabilidade no assalariado ainda não está suficientemente assegurada. É um “|degrau intermediário que separa o aleatório da estabilidadef”[7]. Esse último nível é alcançado mediante “|a poupança, nos dias de trabalho, do que satisfaz às necessidades dos dias de velhice e de doençaf” (p. 388). O último nível desenvolve-se por meio das “|sociedades mútuas de segurof” (idem) e, em última instância, pelo “|fundo de pensão dos trabalhadoresf”[8] (p. 393). (Da mesma forma que o ser humano partiu da necessidade de se converter em funcionário público, ele termina com a satisfação de receber uma pensão.)
Ad. 1. Suponha que tudo o que Bastiat diz sobre a fixidez do salário seja correto. O fato de que o salário seja subsumido às “|rendas fixasi” não nos permite conhecer o verdadeiro caráter do salário, sua determinação característica. Seria destacada uma das relações do salário – relação que ele tem em comum com outras fontes de renda. Nada mais. Certamente, isso já seria algo para o advogado que pretende defender as vantagens do salariado. Entretanto, não seria nada para o economista que deseja compreender a peculiaridade dessa relação em toda a sua extensão. Fixar uma determinação unilateral de uma relação, de uma forma econômica, e panegirizá-la em comparação com a determinação inversa: essa prática ordinária de advogado e apologista caracteriza o raciocinantef Bastiat. Portanto, em lugar de salário, suponha: fixidez do rendimento. Não é boa a fixidez do rendimento? Todo mundo não adora poder contar com o seguro? Especialmente todo francês pequeno-burguês e mesquinho? |O homem sempre necessitadof? A servidão foi defendida do mesmo modo, e talvez com mais razão. O oposto poderia ser também afirmado, e tem sido afirmado. Suponha o salário igual à não fixidez, i.e., avanço para além de certo ponto. Quem não prefere avançar em lugar de ficar parado? Pode-se dizer que é má, portanto, uma relação que torna possível um progressus in infinitum burguês? Naturalmente, o próprio Bastiat em outro lugar considera o salário como não fixidez. De que outra maneira, senão pela não fixidez, pela flutuação, poderia ser possível ao trabalhador deixar de trabalhar, tornar-se capitalista, como deseja Bastiat[9]? Por conseguinte, o salariado é bom porque é fixidez; ele é bom porque é não fixidez; é bom porque não é nem uma coisa nem outra, mas é tanto uma quanto a outra. Que relação não é boa quando é reduzida a uma determinação unilateral, e esta última é considerada como posição, não como negação? Todo palavrório raciocinante, toda apologética, toda sofistaria pequeno-burguesa repousa sobre tal abstração.
Depois desse comentário preliminar geral, chegamos à verdadeira construção de Bastiat. Seja dito ainda, de passagem, que seu arrendatáriof de Landes[10], o tipo que reúne em sua pessoa a infelicidade do trabalhador assalariado com o azar do pequeno capitalista, de fato poderia se sentir feliz se recebesse salário fixo. – A |história descritiva e filosóficaf de Proudhon[11] dificilmente chega ao nível da de seu adversário Bastiat. À forma originária de associação, em que todos os associadosf compartem os riscos do acaso, segue-se a forma em que a remuneração do trabalhador é fixada, associação de nível superior e voluntariamente integrada por ambas as partes. Não desejamos chamar a atenção aqui para a genialidade que primeiro pressupõe, de um lado, um capitalista e, de outro, um trabalhador, para em seguida fazer surgir do acordo entre ambos a relação entre capital e trabalho assalariado.
A forma de associação em que o trabalhador está exposto a todos os riscos do negócio – em que todos os produtores estão igualmente expostos a tais riscos – e que imediatamente precede o salário, em que a remuneração do trabalho ganha fixidez e torna-se estável, da mesma forma que a tese precede a antítese – é o estado, como ouvimos de Bastiat[12], em que a pesca, a caça e o pastoreio constituem as formas sociais e produtivas dominantes. Primeiro, o pescador, o caçador e o pastor nômades – e, em seguida, o trabalhador assalariado. Onde e quando se deu essa transição histórica do estado semisselvagem para o moderno? No máximo, no charivari. Na história efetiva, o trabalho assalariado resulta da dissolução da escravidão e da servidão – ou do declínio da propriedade comunal, como se deu entre povos orientais e eslavos – e, em sua forma adequada que faz época, forma que abarca toda a existência social do trabalho, procede da destruição da economia das corporações, do sistema estamental, do trabalho natural e da renda em espécie, da indústria operando como atividade rural acessória, da pequena economia rural ainda de caráter feudal etc. Em todas essas transições históricas efetivas o trabalho assalariado aparece como dissolução, como destruição de relações em que o trabalho era fixado em todos os aspectos, em seu rendimento, seu conteúdo, sua localização, sua extensão etc. Portanto, como negação da fixidez do trabalho e de sua remuneração. A transição direta do fetiche do africano ao |ser supremof de Voltaire, ou do equipamento de caça de um selvagem norte-americano ao capital do Banco da Inglaterra, não é tão grosseiramente avessa à história quanto a transição do pescador de Bastiat ao trabalhador assalariado. (Além disso, em todos esses desenvolvimentos não há nenhuma evidência de modificações intencionais resultantes de acordo recíproco.) Inteiramente digna dessa construção histórica – em que Bastiat ilude a si mesmo com sua abstração superficial sob a forma de um evento – é a síntese em que as |sociedades mútuasi inglesas e as caixas de poupança aparecem como a última palavra do salariado e a superação de todas as antinomias sociais.
Historicamente, portanto, o caráter de não fixidez do salariado é o oposto da construção de Bastiat. No entanto, como ele chegou, afinal, à construção da fixidez como a determinação do salariado que tudo compensa? E como chegou a pretender apresentar historicamente o salariado nessa determinabilidade como forma superior de remuneração, da remuneração do trabalho em outras formas de sociedade ou de associação?
Todos os economistas, tão logo discutem a relação existente entre capital e trabalho assalariado, entre lucro e salário, e demonstram ao trabalhador que ele não tem nenhum direito a participar das oportunidades do lucro, enfim, desejam tranquilizá-lo sobre seu papel subordinado perante o capitalista, sublinham que ele, em contraste com o capitalista, possui certa fixidez da renda mais ou menos independente das |grandes aventurasi do capital. Exatamente como Dom Quixote consola Sancho Pança [com a ideia] de que, embora certamente leve todas as surras, ao menos não precisa ser valente. Portanto, uma determinação que os economistas atribuem ao salariado em contraposição ao lucro, Bastiat converte em uma determinação do salariado em contraposição às formas antigas do trabalho e em um progresso na remuneração do trabalho em comparação com as relações mais antigas. Um lugar-comum que se apresenta na dada relação, e que consola um polo contra o outro, é retirado dessa relação pelo sr. Bastiat e convertido em fundamento histórico de sua gênese. Na relação entre salário e lucro, entre trabalho assalariado e capital, dizem os economistas, a vantagem da fixidez corresponde ao salário. O sr. Bastiat afirma que a fixidez, i.e., um dos polos na relação entre salário e lucro, constitui o fundamento histórico da gênese do salariado (ou a vantagem que corresponde ao salário não em oposição ao lucro, mas às formas anteriores de remuneração do trabalho) e, portanto, também do lucro, logo, de toda a relação. Em suas mãos, por conseguinte, um lugar-comum sobre um aspecto da relação entre salário e lucro converte-se no fundamento histórico da inteira relação. Isso se dá porque ele está continuamente atormentado pela reflexão sobre o socialismo, que, então, é sonhado em toda parte como a primeira forma da associação. O que constitui um exemplo da importância que assumem, nas mãos de Bastiat, os lugares-comuns apologéticos correntes que acompanham as análises econômicas.
Para retornar aos economistas. Em que consiste essa fixidez do salário? O salário é inalteravelmente fixo? Isso contradiria inteiramente a lei da demanda e oferta, o fundamento da determinação do salário. Nenhum economista nega as oscilações, a elevação e a queda do salário. Ou o salário é independente das crises? Ou das máquinas, que tornam supérfluo o trabalho assalariado? Ou das divisões do trabalho, que o deslocam? Afirmar tudo isso seria heterodoxo, e não se afirma. O que se quer dizer é que, em média, o salário realiza um nível médio aproximado, i.e., o mínimo do salário para toda a classe tão detestado por Bastiat, e que tem lugar uma certa continuidade média do trabalho; por exemplo, o salário pode manter-se mesmo em casos em que o lucro diminui ou momentaneamente desaparece por completo. Ora, o que significa isso senão que, pressuposto o trabalho assalariado como a forma dominante do trabalho e o fundamento da produção, a classe trabalhadora vive do salário, e que o trabalhador individual em média possui a fixidez de trabalhar por salário? Em outras palavras, tautologia. Onde capital e trabalho assalariado é a relação de produção dominante, há a continuidade média do trabalho assalariado, logo, fixidez do salário para o trabalhador. Onde existe o trabalho assalariado, existe a fixidez. E isso é considerado por Bastiat o seu atributo que tudo compensa. Em adição, o fato de que no estado social em que o capital está desenvolvido a produção social, no geral, é mais regular, mais contínua, mais variada – logo, também a renda para os que nela se ocupam é mais “fixa” – do que ali onde o capital, ou seja, a produção, não se desenvolveu a esse nível é outra tautologia contida no próprio conceito de capital e de uma produção nele baseada. Em outras palavras: quem nega que a existência universal do trabalho assalariado pressupõe um desenvolvimento mais elevado das forças produtivas em relação aos estágios anteriores ao trabalho assalariado? E como ocorreria aos socialistas formular exigências superiores se não pressupusessem esse desenvolvimento superior das forças produtivas sociais promovido pelo trabalho assalariado? Na verdade, tal desenvolvimento é o pressuposto de suas exigências.
Nota: a primeira forma em que o salário se apresenta de modo generalizado é o soldo militar, que aparece com o declínio dos exércitos nacionais e das milícias de cidadãos. De início, o soldo era pago aos próprios cidadãos. Logo em seguida, foram substituídos por mercenários, que não precisavam ser cidadãos.
2) (É impossível prosseguir com esse nonsense. |Portanto, nós deixamos de lado o sr. Bastiati.)
[1]Thomas Tooke, A history of prices, and of the state of the circulation (Londres, Longman, Orme, Brown, Green and Longmans, 1838-57, 6 v.). Em junho de 1857, pouco antes da redação do esboço sobre Bastiat e Carey, Marx estudou e extratou o tomo 6 da obra de Thomas Tooke e William Newmarch, A history of prices, and of the state of the circulation, during the nine years 1848-1856 (Londres, Longman, Orme, Brown, Green and Longmans, 1857, v. 6).
[2] Frédéric Bastiat, Harmonies économiques (2. ed., Paris, Guillaumin, 1851), p. 364, nota do editor: “[Bastiat] propôs-se |como declarou, a se basear principalmente nos trabalhos de M. Carey, da Filadélfia, para combater a teoria de Ricardof”.
[a] Autênticas, de boa-fé. (N. T.)
[3] A parte inferior da quarta página do manuscrito está em branco. Provavelmente Marx pretendia, após o “|Prólogof” – que ocupa as primeiras três páginas e a parte superior da quarta página do manuscrito e contém uma descrição geral das ideias de Frédéric Bastiat e de Henry Charles Carey –, caracterizar com mais detalhe o livro de Bastiat, Harmonies économiques, cit.
[4] Trata-se do capítulo 14 da segunda edição do livro de Frédéric Bastiat, Harmonies économiques, cit. No total, a segunda edição contém 25 capítulos.
[b] Os números de páginas indicados no parágrafo são referências de Marx ao livro de Bastiat. (N. T.)
[5] Em Frédéric Bastiat, Harmonies économiques, cit., p. 379.
[6] Ibidem, p. 380.
[7] Ibidem, p. 384.
[8]Segundo Bastiat, os “|fundos de pensão dos trabalhadoresf” devem ser formados a partir dos recursos dos próprios trabalhadores; somente assim eles podem assegurar o grau adequado da “estabilidade” (Frédéric Bastiat, Harmonies économiques, cit., p. 395).
[9] Ibidem, p. 402: “|A elevação dos salários [...] facilita a poupança e a transformação do assalariado em capitalistaf”.
[10] Ibidem, p. 378-9 e 388.
[11]Pierre-Joseph Proudhon, Système des contradictions économiques ou Philosophie de la misère (Paris, Guillaumin, 1846) [ed. bras.: Sistema das contradições econômicas ou Filosofia da miséria, São Paulo, Ícone, 2003].
[12] Frédéric Bastiat, Harmonies économiques, cit., p. 379-82.