VERSOS DO PRISIONEIRO — ÚLTIMA CARTA DO PRESO AO POETA
Durmo sem corpo
como um cão
que, em si mesmo,
inventa um travesseiro.
Enroscado como o feto
que adia o dia
e procura a luz
na raiz do próprio ventre.
Aqui se dorme como se vive:
com pouca pátria e muita insónia.
Dormirei tudo, sim,
quando valer a pena despertar.
No enquanto da espera,
me vou, por vezes, suicidando.
Nesses dias, não risco o tempo nas paredes.
E é tanto o desejo de desviver
que já não me basta morrer.
A morte perdeu validade,
de tanto nela me aconchegar.
A ausência que desejo
é a da viagem sem distância,
sombra sem teto nem parede.
Onde reine, não o silêncio,
mas a palavra emudecida.
Que eu sonho a morte
como o poeta quer o poema:
um falso morrer
de quem não quer viver em falso.
Maputo, 2006